16 Abril 2021
Por que a volta de Lula areja o ambiente e sacode o tabuleiro, mas não resolve o jogo. O possível segundo turno e o papel de Ciro Gomes. A chance desperdiçada em 2013. O golpe que a ultradireita, derrotada, tentará – e como enfrentá-lo.
A entrevista é de Márcio Ferrari e Paulo Henrique Pompermaier, publicada por Revista Cult e reproduzida por Outras Palavras, 13-04-2021
O número de mortos pelo novo coronavírus no país já passa de 300 mil, no momento mais crítico da pandemia até agora, agravado por uma crise econômica aguda e pelo aumento da pobreza. O presidente Jair Bolsonaro segue em sua estratégia de governar por vetos e para os cerca de 30% da população que o apoiam desde que tomou posse. Um núcleo menor dos apoiadores, mais fanático, forma com o Centrão e os militares um tripé de sustentação pouco homogêneo. “Bolsonaro assiste de camarote às forças se digladiarem”, afirma nesta entrevista o filósofo e cientista político Marcos Nobre. “Como é um presidente antissistema, pode delegar aos outros a função de gerir o Estado.”
Com o impeachment como possibilidade remota, Nobre vê formar-se um quadro eleitoral para 2022 que pode livrar o país de mais um mandato de Bolsonaro. O retorno do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao cenário político sinaliza, mas não garante, uma articulação das forças democráticas visando sobretudo ao segundo turno.
Mestre e doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP) e presidente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), Nobre procura entender o cenário político por meio de uma análise dos movimentos dos personagens no tabuleiro institucional. Além disso, tem o trabalho desafiador de tentar compreender como pensam o presidente e o “núcleo duro” que lhe dá apoio incondicional.
Em maio de 2020 saiu seu e-book Ponto- final: a guerra de Bolsonaro contra a democracia, sobre a situação política no primeiro momento da pandemia. O que mudou e o que não mudou desde então?
Existia uma expectativa, no primeiro semestre de 2020, de que seria possível isolar Jair Bolsonaro e caminhar para o impeachment. Abriu-se uma janela com a queda da taxa de aprovação e o aumento da rejeição ao presidente, além de um brutal sofrimento social, uma quantidade de mortes assustadora. Mas essa expectativa não se confirmou. E o próprio livro tinha uma resposta para isso: não se formou uma coalizão anti-Bolsonaro para fazer um impeachment regenerador, como aconteceu com Fernando Collor. No caso de Dilma Rousseff, não foi regenerador; apenas continuou uma história de destruição da convivência das forças políticas do país. Além disso, claro, há a pandemia que nos impede de ir para as ruas e atrapalha a mobilização de massa.
O que mantém Bolsonaro no poder?
A estratégia de Bolsonaro de focar em um terço de aprovação dos brasileiros continua se confirmando. Na pesquisa do Datafolha de 17 de março, a desaprovação aumentou, mas, se olharmos para a taxa de aprovação, continua no mesmo lugar. Temos que explicar esse fenômeno, e não apenas os fatores que provocam a rejeição. Bolsonaro nunca pretendeu governar para a maioria. Ele mira no apoio de cerca de um terço porque é uma espécie de seguro anti-impeachment e, ao mesmo tempo, o que o garante no segundo turno em 2022. E é uma estratégia bem-sucedida. Ele conseguiu convencer essa base de apoio de que sua narrativa da pandemia faz sentido e é razoável. Quando montou o governo de guerra em abril de 2020 e expulsou [o então ministro da Justiça] Sérgio Moro do governo, perdeu parte desse terço, que depois foi recuperada e até ampliada com a criação do auxílio emergencial. Isso vai definir a política até 2022. Bolsonaro tomou medidas para que a janela do impeachment não se reabrisse, ao fazer um acordo com o núcleo do Centrão formado por partidos herdeiros da ditadura militar. Ele se preparou para uma eventual grande coalizão anti-Bolsonaro.
É possível que a ideia de impeachment seja retomada pelo Congresso se a popularidade do presidente continuar caindo? As suspeitas de envolvimento criminal da família Bolsonaro podem acelerar o processo?
Sobre as suspeitas, Bolsonaro tomou medidas muito importantes de autoproteção. Indicou para o Supremo Tribunal Federal (STF) um juiz que está tendo papel central – é algo muito raro ver um novato como Kassio Nunes Marques com atuação tão importante no STF. Bolsonaro mudou a direção dos órgãos de controle e das polícias que estão a seu alcance e fez nomeações para o Judiciário. São movimentos muito importantes de blindagem jurídica. E de blindagem política, pois o acordo com uma parte do Centrão, aquele que [o presidente da Câmara dos Deputados] Arthur Lira chama de “Centrão raiz”, é também um pacto para que os pedidos de impeachment não sejam acatados. Entre o eleitorado, é preciso que a rejeição suba e se organize politicamente em torno da ideia de impeachment, e isso está longe de acontecer. Temos a impressão de que Bolsonaro está fraco, mas ele sempre sai das cordas e consegue manter sua parcela de apoio social. Ele mesmo afirma que governa apenas para os “bons brasileiros”. Se conseguir, em um segundo mandato, implantar de fato seu projeto autoritário, os “maus brasileiros” terão como destino possível a prisão, a tortura, a morte e o exílio.
A parcela de apoio rígido ao presidente deseja um governo autoritário?
É muito importante entender como se compõem esses 30% de apoio, que representam um número enorme de eleitores. A pesquisa recente do Datafolha reafirma o tamanho do núcleo duro com o qual eu tenho trabalhado. É de 12% a 15% do eleitorado, que tudo indica ser um contingente autoritário mesmo. Isso significa várias coisas. Em primeiro lugar, que ditaduras demoram para morrer: não se passam 21 anos de ditadura [1964-1985] e, de repente, todo mundo é democrata. Pode até ser no discurso, mas não na cabeça e na prática. Esse eleitorado realmente autoritário andou disperso depois da redemocratização. Votava em candidaturas de protesto, de extrema direita, como é o caso de Enéas Carneiro, mas era um movimento tratado como folclórico, apesar de ser um erro grave tratar o autoritarismo como folclórico. Em 2018 a dispersão deu lugar à adesão a uma rede de informação e desinformação ligada a Bolsonaro e chegou ao poder de uma vez só. É muito difícil acreditar que conseguiremos fazer o apoio baixar a 15% ou menos. Os outros 15% a 18% da base de Bolsonaro são compostos de cerca de 9% de simpatizantes, e os outros 7% a 8% reagem a medidas como o auxílio emergencial. O que me impressiona, e me preocupa, é a base estável de apoio ao Bolsonaro, pois é isso que põe em risco a democracia. Se ele for reeleito, a democracia no Brasil acabará, e então teremos uma luta muito mais difícil e com menores chances de sucesso.
Antes disso, está mantida a ameaça de golpe?
Sim, está sempre presente. Digamos que Bolsonaro não seja reeleito – para mim é certo que ele vai tentar um golpe, e existem diversas razões para acreditar nisso. A questão é qual será a natureza do golpe: seguindo o modelo dos novos populismos autoritários, de minar a democracia por dentro, ou um golpe clássico, com o fechamento do regime de maneira abrupta. Não sabemos se será bem-sucedido, mas tal golpe terá sustentação nas forças de segurança.
O governo está armando explicitamente as bases sociais que o apoiam, e em muitos lugares as polícias estaduais não respondem mais aos governadores. É um processo de convencimento, uma guerra cultural para aumentar a parcela de ação e de pensamento autoritários no Brasil.
Mantém-se o tripé de sustentação de fanáticos, Centrão e militares?
É o nódulo de funcionamento do Bolsonaro e não mudou. Tomemos como exemplo um presidente clássico, pode-se escolher Luiz Inácio Lula da Silva ou Fernando Henrique Cardoso ou qualquer outro. Em geral eles permitem certa diversidade na coalizão de governo e principalmente na equipe ministerial, pois dessa maneira conhecem visões diferentes, e muito informadas, do mesmo assunto. Já Bolsonaro não arbitra. Ele veta. Quando o assunto não implica a manutenção da fidelidade de base, deixa que os conflitos entre o núcleo duro, militares e Centrão ocorram de maneira solta e selvagem, e assiste de camarote às forças se digladiarem. Porque, como ele é um presidente antissistema, pode delegar aos outros a função de gerir o Estado.
Há um conservadorismo inerente à política brasileira?
Não gosto de essencializar pessoas nem povos. Do ponto de vista da análise, fazer isso significa deixar de enxergar o que acontece. Como uma população vota à esquerda em uma década e à direita em outra? O que eu diria é que a democracia brasileira, em um momento crucial que eclodiu em junho de 2013, preferiu se blindar, deixando passar a insatisfação popular e tomando medidas cosméticas para resolver um problema estrutural. Naquele momento, era preciso ter repensado o funcionamento da democracia, que havia sido rompido pelos protestos. Abriu-se o caminho para todo tipo de consequência – por exemplo, a Lava Jato, que tomou a reforma para si, o que é uma ilusão, pois o Judiciário não faz reforma política, muito menos na primeira instância. O sentimento antissistema também transbordou para partidos e forças políticas organizadas com a eleição, por exemplo, de Marielle Franco. Mas essa renovação foi minoritária, pois a maioria dos partidos não se abriu para o novo influxo de demandas por participação e deliberação.
E a extrema-direita se aproveitou do sentimento antissistema, identificando o sistema com a própria democracia. Quando a Lava Jato se fortaleceu, fez isso acuando o sistema político, que entrou em modo de autodefesa completa. Por isso 2013 é um marco do que poderíamos ter feito e não fizemos.
O que faltou, e falta, à esquerda para se mobilizar e responder a essa ruptura?
A decisão do sistema político como um todo de se blindar – o que inclui a esquerda – reforçou o sentimento de que ela fazia parte do establishment. Os governos petistas haviam procurado expandir, nos anos 2000, meios de participação e deliberação democráticos como o orçamento participativo – e de uma maneira que eu chamaria de analógica. Junho de 2013 mostrou que o eixo da política tinha mudado, e por isso era preciso transferir o projeto de inclusão democrática para o campo digital. Durante muito tempo a esquerda não foi capaz de fazer isso. Até agora continua atrás da extrema-direita nesse aspecto.
No cenário político recente, houve o retorno de um personagem fundamental, quando Lula recobrou seus direitos políticos. De imediato, qual é a consequência disso?
Foi enorme o efeito que a volta de Lula produziu no campo antibolsonarista, porque era muito grande a sensação de desorientação, sufocamento, desmobilização. O fato de Lula aparecer como possível candidato em 2022, sendo uma ameaça real a Bolsonaro, foi algo que provocou um sentimento de alívio sem paralelo. Desde que Bolsonaro foi eleito, governa sem oposição de fato. Existe uma oposição formal no Congresso, mas não na sociedade, dada a fragmentação do campo democrático. O problema é acharmos que tudo está resolvido pelo fato de Lula poder ser candidato e mostrar que é um estadista em comparação com o que temos como presidente. Em primeiro lugar, a fragmentação do campo democrático continua. Em segundo lugar, em 2022 vamos ter um incumbente candidatando-se à reeleição, o que não ocorreu em 2018. Se tivermos uma candidatura Lula capaz de se estender a todo o campo democrático, poderia ser uma candidatura não só da esquerda, mas da democracia contra um candidato autoritário. Se isso não acontecer (o que eu acho mais provável), será necessária uma candidatura de direita não bolsonarista. Inventar e lançar um novo nome a essa altura é muito difícil. Na minha visão, a única saída para a organização dessa direita seria uma aliança com uma candidatura como a de Ciro Gomes – ou seja, a adoção pela direita não bolsonarista de um candidato que se perfila à esquerda, algo que já aconteceu diversas vezes na história do Brasil. Esse candidato teria possibilidade de organizar o voto que fica entre o lulismo e o bolsonarismo, e permitiria que se formasse um pacto, que precisa ser celebrado antes do primeiro turno da eleição, um pacto de que quem passar para o segundo turno contra Bolsonaro terá o apoio do restante do campo democrático.
O discurso de Lula no dia 10 de março foi marcado por tom conciliatório. É possível traçar paralelo entre esse discurso e a “Carta ao Povo Brasileiro”, de 2002?
Sim, creio que sejam equivalentes. Mas não é necessária uma segunda carta. Lula fez o discurso e respondeu às perguntas na coletiva de imprensa, e com isso mostrou que atua sob os controles democráticos exercidos pela imprensa, mesmo que a critique em suas falas. Precisamos ter clareza de que eleição não significa apenas lançar candidaturas, mas também impedir que outras sejam lançadas. É do interesse de Bolsonaro e Lula que entre ambos não haja caminho intermediário – a direita não bolsonarista – para que possam ampliar seus respectivos arcos de alianças. Só faz sentido falar em petismo e antipetismo enquanto o PT está no poder; precisamos perceber que agora se trata de bolsonarismo e antibolsonarismo. A afirmação de Fernando Henrique Cardoso de que votaria em Lula contra Bolsonaro, o que não fez no caso de Fernando Haddad em 2018, é uma mudança importante, um sinalizador.
Em Ponto-final, você diz que um dos motivos da eleição de Bolsonaro foi a campanha de Haddad centrada na promessa de volta “aos velhos e bons tempos do lulismo”. Com a possível candidatura de Lula, estaríamos em um cenário diferente?
Não tenho a menor dúvida. Em 2018 houve uma operação política complicadíssima, a transferência de votos. Foi necessário passar todo o primeiro turno identificando Haddad a Lula – uma operação na qual, necessariamente, perde-se uma parcela de votos. Em 2022, o problema da transferência já não existe de saída e Lula pode preparar um segundo turno em que teria apoio das demais candidaturas do campo democrático. O inimigo será Bolsonaro, e digo inimigo, não adversário, pois ele é inimigo da democracia. Não é uma coisa normal. O que tivemos no Brasil não foi alternância de poder, foi uma maluquice, elegemos o candidato mais extremista de direita do mundo. Até 2022 há tempo para muitos ajustes, entre eles mudar a imagem do que foram os governos petistas.
Como é entender e analisar um governo sem paralelo na história do Brasil?
É extremamente difícil. O tipo de análise que faço não é julgar o sistema político da minha perspectiva; tento ver do ponto de vista do próprio jogo institucional. Ou seja, dada a posição de determinada pessoa no tabuleiro da política, observar quais opções de movimentos ela tem. No caso de Bolsonaro é extremamente custoso, no aspecto pessoal mesmo, pois é necessário imaginar como é a cabeça de uma pessoa autoritária do tipo mais selvagem. Tento acompanhar o tipo de discussão da esfera pública bolsonarista e perceber como funciona essa rede de informação. Minha preocupação é, sobretudo, com a parcela de apoio que não é rigidamente autoritária. Que tipo de desespero é preciso para não ver outra alternativa além de Bolsonaro? É um erro muito grande atribuir a toda a esfera pública bolsonarista os mesmos valores e procedimentos do núcleo duro. Precisamos entender os bolsonaristas não rigidamente autoritários e convencê-los de que a democracia pode funcionar de modo diferente do que ocorreu nos 35 anos de redemocratização.
Você é filho de um parlamentar que foi ativo na oposição à ditadura militar [José Freitas Nobre] e é um pensador que se destaca na análise política. Como descreveria essa trajetória?
A minha casa era uma extensão do Parlamento. Eu brinco que, se quisesse uma mamadeira, precisava fazer um requerimento de urgência urgentíssima para a mesa da Câmara dos Deputados. A política institucional entrou na minha casa durante a ditadura. É muito difícil para uma criança não saber se o pai vai voltar para casa.
Eu vivi a ditadura como criança e adolescente, e foi algo tão tenebroso que é difícil contar. Meu pai não foi torturado, mas fez um exílio preventivo. Até os 3 anos eu fiquei indo de um lugar para outro. Aprendi com meu pai a fazer análise política da perspectiva de quem está na esfera institucional. Ele sempre me dizia para prestar atenção no que a pessoa falava, no que ela fazia, e que muitas vezes uma coisa não batia com a outra. Do ponto de vista da militância, quando cheguei aos 15 anos, a trajetória do meu pai e a minha foram para lugares diferentes. Eu tomei o caminho da corrente autonomista, que sempre achei, e ainda acho, muito compatível com uma visão do que deve ser o marxismo e a emancipação dos mecanismos de dominação.
Você preside o Cebrap, que também teve papel importante no período de abertura do regime militar. Que parâmetros orientam sua atuação?
Entendo minha função como não atrapalhar as pesquisadoras e pesquisadores para que possam desenvolver plenamente seus estudos. Eu me vejo como alguém que tenta buscar condições para que o maior número de pessoas envolvidas com o Cebrap possa desenvolver livre e plenamente suas pesquisas em um momento em que a ciência é decretada pelo presidente como inimiga do país. Ao mesmo tempo, tento absorver dessa instituição seu valor básico: foi criada para se opor à ditadura militar e apoiar a redemocratização nascente do Brasil. Vejo o Cebrap como um lugar de defesa e resistência da democracia por meio do conhecimento e do saber que produz e reverbera.
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A construção do pós-Bolsonaro. Entrevista com Marcos Nobre - Instituto Humanitas Unisinos - IHU