01 Abril 2021
País tem novo recorde de mortes. Hospitais entram em colapso em 17 estados. Anestésicos para intubação começam a faltar em 18. Presidente dá de ombros e diverte-se com ministério. E mais: os novos vaivéns com segurança das vacinas.
O texto é de Raquel Torres, publicado por OutrasPalavras, 31-03-2021.
A Alemanha acaba de mudar, mais uma vez, as orientações para o uso do imunizante de Oxford/AstraZeneca: agora, a vacina fica restrita a maiores de 60 anos. Na segunda-feira, o Canadá tomou decisão semelhante, suspendendo o uso para menores de 55 anos. Mais uma vez, o problema são os coágulos sanguíneos.
Desde o começo dessa polêmica, especialistas têm reforçado que não há evidências sobre uma eventual relação entre essa vacina e os coágulos. Falamos bastante disso aqui e aqui. Mas dados recentes mostram que essa história pode não ser tão simples quanto parece.
É que as condições identificadas pelas autoridades em vários países europeus não são coágulos comuns. Uma matéria publicada no site da Science no fim de semana explica: o que se vê são pessoas com coágulos por todo o corpo e, ao mesmo tempo, baixa contagem de plaquetas no sangue – o que é paradoxal, porque as plaquetas são células sanguíneas que justamente ajudam a formar os coágulos. O problema é mesmo bastante raro, mas, sendo tão específico, não daria para apenas compará-lo com a incidência de outros problemas relacionados a coágulos em geral na população, como se vem fazendo.
O pesquisador alemão Andreas Greinacher, da Universidade de Greifswald, diz que os sintomas se parecem aos de um raro efeito colateral da heparina, medicamento usado para tratar e prevenir coágulos. Esse efeito se chama trombocitopenia induzida por heparina (HIT), e a pesquisa de Greinacher, ainda não revisada por pares, sugere que possa estar acontecendo uma “síndrome de trombocitopenia imune protrombótica induzida por vacina”. O caso não está fechado – continuamos sem saber se é a vacina que induz ao problema. Mas várias entidades médicas estão levando essas considerações a sério.
É sempre bom lembrar que aprovações emergenciais de vacinas envolvem uma avaliação dos riscos e benefícios. E, nos locais onde o vírus está mais alastrado e para as populações que correm mais risco de morrer por covid-19, o impacto do uso desse imunizante é claramente positivo. A dúvida é sobre o quanto vale a pena usá-lo em quem não está nos grupos de risco.
Em artigo publicado ontem no site The Atlantic, Hilda Bastian, especialista em análise de dados de ensaios clínicos, trata da tênue linha que separa uma comunicação eficiente sobre riscos e a disseminação de pânico total. Mas o medo do segundo efeito, defende ela, não pode excluir a necessidade de tratar as informações com transparência.
E há um ponto crucial nisso tudo: apesar de todas as incertezas, os raros coágulos são uma condição tratável. Portanto, se as autoridades de saúde mundo afora alertarem suas populações e serviços de saúde para os sintomas, a recuperação dos pacientes é possível. Tais sintomas, segundo a EMA (agência reguladora europeia), são os seguintes: falta de ar, dor no peito, inchaço nas pernas, dor abdominal persistente, dores de cabeça fortes ou persistentes, visão turva e hematomas ou pequenas manchas na pele.
Assim como acontecia na semana passada, Amazonas e Roraima são os únicos estados brasileiros em que menos de 80% dos leitos de UTIs estão ocupados. Neles, as taxas são de 76% e 62%, respectivamente. No resto do país os números permanecem críticos, com 17 estados e o Distrito Federal mostrando taxas superiores a 90%. No Amapá e no Mato Grosso do Sul, ela chegou a 100%. Os dados são do boletim Observatório Covid-19, da Fiocruz.
Os pesquisadores chamam a atenção para a sinalização que o colapso em São Paulo traz para o resto do país. Cerca de 26% dos municípios brasileiros com estrutura para o enfrentamento da pandemia estão lá: são 111. Em comparação, no Amazonas e em Roraima só há essa estrutura na capital. “No momento atual, mesmo São Paulo (…) apresenta seu sistema de saúde em colapso. Se Amazonas/Manaus com o colapso do seu sistema de saúde constituiu um alerta do que poderia ocorrer em outros estados, a situação hoje de São Paulo é um alarme do quanto esta crise pode ser mais profunda e duradoura do que se imaginava até então”, escrevem.
O Brasil bateu ontem novo recorde de óbitos: 3.780, segundo o Ministério da Saúde.
No estado que concentra boa parte do PIB brasileiro, a taxa de ocupação das UTIs está em 92,3%. As medidas restritivas da chamada “fase emergencial” de São Paulo completaram 15 dias ontem e, no fim de semana, a média móvel de novas internações diárias caiu pela primeira vez desde 16 de fevereiro. É uma redução ainda pequena, de 16% (3.999 novas hospitalizações na sexta-feira contra 3.346 ontem). E, mesmo com ela, o número de internações ainda é o dobro do que o registrado na primeira quinzena de fevereiro. Mas não deixa de ser uma notícia animadora: estaríamos diante dos primeiros efeitos das restrições? O coordenador do Centro de Contingência da covid-19 no estado, João Gabbardo, acredita que sim.
Para os especialistas ouvidos pelo Estadão, pode ser, mas é cedo para avaliar. Os números ainda são altos demais, a taxa de isolamento está muito menor que a desejada, aglomerações frequentes seguem sendo registradas e, por fim, o período de duas semanas ainda dá margem para erro, devido ao tempo estimado entre os contágios e o início dos sintomas. Se a tendência de redução não se confirmar nos próximos dias, novas restrições deverão ser adotadas.
Em todo caso, deve levar semanas para que o efeito seja sentido no registro de mortes. Ontem foram 1.209 óbitos em 24 horas, maior número da pandemia até agora. Um dos maiores cemitérios da capital, o Vila Nova Cachoeirinha, suspendeu temporariamente seus enterros por falta de espaço.
Quase 900 bebês com menos de um ano morreram em 2020 por covid-19 no Brasil. Como eles não estão entre os mais vulneráveis ao vírus, o número pode parecer pequeno perto as outras faixas etárias. Mas a dimensão dessa tragédia fica muito clara quando se compara o dado aos óbitos de outros países. Nos Estados Unidos, líder mundial em óbitos pela doença, houve apenas 103 mortes em menores de 18 anos. Morreram mais bebês aqui do que crianças de todas as idades lá.
Na matéria do Estadão, pesquisadores apontam possíveis causas desse massacre. Uma delas é a falta de protocolos de atendimentos para grávidas e recém-nascidos nas unidades para covid-19. “Não houve nenhum protocolo para atendimento de gestantes e recém-nascidos, não houve alerta para obstetras, pediatras, não se separou hospitais de referência para gestantes com covid-19, não houve nada para organizar e orientar os atendimentos”, diz Fátima Marinho, consultora da organização Vital Strategies, que fez o levantamento.
Com os hospitais sobrecarregados, o problema não é só da porta para fora, nas filas. A reportagem da Folha mostra que a mortalidade entre os pacientes internados (não apenas nas UTIs) cresceu em fevereiro e bateu recorde em 11 estados. De cada 100 pacientes hospitalizados com a doença no Brasil, 40 morrem. Essa taxa só não é maior do que a de abril e maio de 2020, quando era 42%. Só que na época a alta mortalidade tinha a ver com o fato de que quase não se sabia nada sobre a melhor forma de lidar com a doença.
Agora, os problemas são diferentes. A falta de oxigênio (que o ministro da Saúde quer resolver com racionamento) é obviamente uma questão – em janeiro, no Amazonas 60% dos internados morreram. Mas tem outros fatores. Com as filas enormes, só os pacientes muito graves (às vezes nem eles…) são admitidos, e esses são justo os que têm mais risco de morrer. Até as pessoas podem, individualmente, fazer essa ‘escolha’: “Muitos não querem ir pro hospital porque não querem passar por essa confusão [esperar em filas], e só vão quando o quadro já é muito grave”, diz Renato Grinbaum, consultor da Sociedade Brasileira de Infectologia. Além disso, quando o hospital está lotado, as equipes de saúde têm que dar conta de mais gente, e o atendimento fica prejudicado.
O Ministério da Saúde informou que todos os estados e o Distrito Federal estão com “estoque crítico” de bloqueadores musculares, usados para a intubação de pacientes. O abastecimento de sedativos é insuficiente em 18 deles; e o de analgésicos, em nove.
Lembramos que, no último dia 22, a pasta havia informado à Procuradoria-Geral da República que a situação estava preocupante em seis estados – o que já era grave, até porque havia semanas que vários gestores locais denunciavam o problema. O coronel Luiz Otávio Franco Duarte, secretário de Atenção Especializada à Saúde da pasta, disse ontem em audiência pública que houve um “desequilíbrio nacional muito rápido”, relata o Estadão. Sem cravar prazos, ele afirmou que o governo está para receber produtos importados via Opas (a Organização Pan-Americana da Saúde), doações da Espanha e de uma multinacional, e ainda que está havendo uma “tentativa de doação” com a União Europeia.
A Polícia Federal prendeu ontem a mulher que teria aplicado ilegalmente vacinas no grupo de empresários do setor de transportes em Minas Gerais. Segundo os investigadores, Cláudia Freitas é cuidadora de idosos, mas se fez passar por enfermeira. Após realizarem busca e apreensão em sua casa e em uma cínica em Belo Horizonte, eles encontraram ampolas, seringas e soro fisiológico, que foram apreendidos e encaminhados para perícia.
A PF apura se houve importação ilegal ou desvio de doses do Ministério da Saúde, mas também trabalha com a hipótese de as vacinas serem falsas. O interessante em relação ao último cenário é que, nesse caso, os empresários passariam a ser “vítimas” de uma fraude…
A mulher vai responder pelos crimes de falsificação, corrupção e adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais. Se condenada, pode pegar até 15 anos de prisão. Já com os empresários, ainda não aconteceu nada. Nesta segunda, os donos da Saritur Rômulo e Robson Lessa prestaram depoimento à PF e admitiram compra ilegal, a R$ 600 por pessoa.
A Anvisa negou ontem o pedido de certificação de boas práticas para a Bharat Biotech, laboratório indiano que produz a Covaxin. Como se sabe, essa vacina é a grande aposta do setor privado no Brasil e, mais recentemente, passou a ser também objeto de interesse do governo federal, que comprou 20 milhões de doses. Porém, a certificação é pré-requisito para que o uso seja autorizado. A negativa foi publicada no Diário Oficial da União.
Segundo o órgão, foram identificados problemas relacionados a questões sanitárias, de controle de qualidade e de segurança na fabricação. O G1 explica bastante bem os principais deles. Um ponto que parece particularmente grave é que a empresa não validou um método de análise que comprove a inativação do vírus usado no imunizante; e uma das áreas de produção não tem todas as medidas necessárias para garantir o contato completo do vírus vivo com o agente inativante. O risco é que alguns vírus presentes na vacina não estejam realmente inativados, o que pode resultar na contaminação das pessoas, em vez da imunização. Além disso, os técnicos avaliaram que a fábrica não adota todas as precauções para garantir a esterelidade do produto, e também não adotou método controle específico para quantificar a potência da vacina – isso poderia gerar doses com eficácias variadas.
Fábricas envolvidas na produção da vacina da Janssen (da Johnsohn & Johnson) e da Sputnik V receberam da Anvisa seus certificados de boas práticas. No caso da Janssen, são três empresas responsáveis pela fabricação do insumo farmacêutico ativo, formulação e envase. Quanto à vacina russa, o documento se refere à fábrica da União Química em Guarulhos (SP) que vai fazer a formulação, esterilização e envase. O IFA vai ser produzido em uma unidade de Brasília, mas, para ela, a empresa ainda não solicitou a inspeção e certificação à Anvisa.
A OMS divulgou ontem o aguardado relatório da equipe internacional que investigou as origens do SARS-CoV-2 na China. Seu conteúdo já tinha sido ventilado em uma coletiva de imprensa em fevereiro, e não há grandes mudanças em relação ao que discutimos por aqui na época. São quatro as hipóteses sobre o surgimento do vírus: transmissão direta de um animal hospedeiro para humanos; transmissão indireta, com um segundo animal hospedeiro antes de chegar aos humanos; introdução por animais selvagens congelados vendidos nos mercados de Wuhan; e acidente de laboratório.
Especialistas apontam vários pontos fracos do relatório, diz o Health Policy Watch. Um deles é que não ficou clara a metodologia da equipe para classificar as hipóteses como mais ou menos prováveis. Por exemplo, o incidente em laboratório foi considerado “extremamente improvável” e a transmissão por alimentos congelados foi classificada como “muito provável” – mas tudo isso sem critérios de medição.
O diretor-geral da OMS, Tedros Ghebreyesus, não foi ao evento de divulgação do relatório. Mas antes, em uma reunião a portas fechadas com Estados membros, deu uma alfinetada na equipe: “Embora os investigadores tenham concluído que um vazamento de laboratório é a hipótese menos provável, isso requer uma investigação mais aprofundada, com missões adicionais envolvendo especialistas especializados, que estou pronto para implantar… Não acredito que esta avaliação foi extensa o suficiente. Mais dados e estudos serão necessários para chegar a conclusões mais robustas”, disse. Ele também criticou o fato de que a missão internacional não teve acesso aos dados brutos sobre os primeiros casos de covid-19 em Wuhan.
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Enquanto Bolsonaro brincava de Forte Apache… - Instituto Humanitas Unisinos - IHU