13 Março 2021
A pandemia teve o mérito de evidenciar contradições que antes se preferia ignorar. A sua violência revelou a maldade desse sistema, feito de exploração, prevaricação, violência, abusos.
Publicamos aqui um trecho do livro “Candido” (Ed. La Nave di Teseo), escrito por Guido Maria Brera, empresário e escritor italiano e chefe de investimentos do grupo Kairos Julius Baer, em coautoria com o coletivo I Diavoli.
O texto foi publicado por La Stampa, 12-03-2021. A tradução é de Anne Ledur Machado.
O capitalismo de plataforma começa a mostrar suas primeiras fissuras, a cidade volta a ser um lugar de conflito. A pandemia desmorona a utopia da metrópole pacificada, “just in time”, onde os desejos encontram a sua satisfação mais rápida no consumo: com um clique, tudo o que você sempre quis chega em sua casa o mais rápido possível.
E, dos escombros dessa falsa narrativa, emerge a utopia negativa da economia do compartilhamento [sharing economy]: a tecnologia não mais a serviço da humanidade, mas utilizada contra a humanidade, nesta ditadura do algoritmo que foi definida como capitalismo de vigilância. Na histórica sentença do mês passado em Milão, ao término da investigação sobre o trabalho dos entregadores, foi escrita a palavra “escravidão”.
A pandemia teve o mérito de evidenciar contradições que antes se preferia ignorar. A sua violência revelou a maldade desse sistema, feito de exploração, prevaricação, violência, abusos. E, assim, após o anúncio da greve nacional [na Itália] dos entregadores no dia 26 de março, vem a greve geral do dia 22 de março de todo o pessoal da cadeia produtiva da Amazon: os trabalhadores da logística nos armazéns e os entregadores de rua.
O sonho da metrópole pacificada acabou se revelando como um pesadelo. As plataformas se apropriaram dos mecanismos de socialidade e cooperação próprio do gênero humano, valorizando-os por meio dos algoritmos. Ao mesmo tempo, em todos os países ocidentais, uma série de leis de reforma em sentido regressivo do mercado de trabalho criaram uma nova força de trabalho livre de todos os direitos e tutelas. Livre para ser escrava.
O resultado é que as plataformas aumentaram os faturamentos, modificando o próprio tecido das metrópoles, o nosso modo de habitá-la. De repente, demo-nos conta disso durante os lockdowns, quando vimos as cidades desertas atravessadas apenas por seres humanos adeptos da catalogação, da estocagem, do transporte e da distribuição de mercadorias.
De repente, os invisíveis se tornaram visíveis, e essa visão se mostrou em toda a sua tremenda violência. Não máquinas, mas pessoas de carne e osso, força de trabalho explorada até o miolo, por meio dos algoritmos que relatam surtos, contágios, doenças, demissões ou dispensas não remuneradas. Enquanto as plataformas obtêm lucros incríveis.
Um rapaz que trabalha nos armazéns de logística no centro da Itália nos contou como, após a explosão de um surto no local de trabalho, eles pediram à vigilância sanitária local para fazer os testes, recebendo uma recusa. Só depois de proclamar uma manhã de greve e interromper a produção, aquela que deveria ser a guarnição territorial da saúde pública e, portanto, obedecer às leis do Estado, sem falar da ética do cuidado, repentinamente decidiu que distribuiria os testes. A resposta que a saúde pública não deu aos pedidos legítimos daqueles trabalhadores veio somente depois da solicitação da iniciativa privada, que viu seus ganhos diminuírem por causa da greve.
Eis a trágica fotografia da utopia negativa do capitalismo de plataforma: um sistema social em que até o direito à saúde é subordinado e regulado pelas necessidades do lucro. E precisamente nessa fissura da sociedade que se achava pacificada, nessas fraturas que hoje atravessam as metrópoles silenciosas, readaptadas às necessidades da economia de compartilhamento, redesenhadas segundo as necessidades do“just in time”, emergem prepotentemente as esperanças de um futuro melhor.
Novos mecanismos de solidariedade e cooperação, a partir da greve local que permitiu aos trabalhadores daquele armazém obter os testes da vigilância sanitária, até as greves gerais e nacionais dos entregadores e carregadores nos dias 22 e 26 de março.
Novas formas de protesto e resistência que nos trazem de volta para uma dimensão em que o conflito é o motor do progresso. Em que a paz não é a narcotização dos desejos através de uma efêmera e rapidíssima satisfação das necessidades, basta-me um clique para eu ter aquilo que quero, ou aquilo que eu acho que quero, aqui e agora, o mais rápido possível, mas uma nova ideia de desenvolvimento sustentável baseado no livre acesso aos dados e aos algoritmos que regulam as economias das metrópoles.
Para repensar, aqui e agora, uma sociedade em que a tecnologia não seja utilizada como instrumento de opressão para acorrentar os novos escravos, mas como instrumento de libertação a serviço do bem-estar coletivo.
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Quando a pandemia expõe o capitalismo de vigilância - Instituto Humanitas Unisinos - IHU