A campanha dos trabalhadores da Amazon para se sindicalizar no Estado do Alabama, nos EUA, com uma votação que terminou no dia 29 de março, marca uma nova era em 500 anos de história de luta trabalhista nos EUA.
A reportagem é de John W. Miller, publicada por America, 29-03-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Os historiadores dizem que foi uma força de trabalho colonial escravizada que lançou o movimento sindical. O primeiro levante foi uma revolta de escravos em 1526. A Revolução Industrial deu início a um segundo capítulo. Organizando-se em siderúrgicas, minas de carvão e frigoríficos, os sindicatos modernos conquistaram o direito ao fim de semana, às férias, à aposentadoria e à jornada de trabalho de oito horas.
Na terceira era, os trabalhadores dos depósitos de empresas como a Amazon estão buscando o direito de negociar coletivamente em uma economia de serviços pós-industrial e altamente automatizada, que depende dos seus baixos salários.
No dia 29 de março, serão anunciados os resultados de uma votação por correspondência organizada pela Retail, Wholesale, and Department Store Union em um depósito da Amazon em Bessemer, Alabama, que emprega quase 6.000 trabalhadores.
“Eles nos tratam como se fôssemos apenas um número, como se fôssemos ninguém”, disse Dale Richardson, um empregado de Bessemer.
A tentativa mais ambiciosa de sindicalização nos 26 anos de história da Amazon foi amplamente endossada, inclusive pelo senador Marco Rubio. E poderia marcar o início de um novo capítulo para os sindicatos.
Em 2020, apenas 10,8% dos estadunidenses pertenciam a um sindicato, em comparação com um terço há 50 anos. “A votação do Alabama é empolgante, porque mostra que nenhuma empresa é intocável, ao contrário do que as pessoas pensavam sobre o Walmart e a Amazon”, disse-me J. D. Wilson, representante da United Steelworkers, com sede na Virgínia Ocidental. “As pessoas não precisam apenas de empregos”, acrescentou Wilson. “Elas precisam de empregos que paguem bem.”
A Amazon está no centro do debate porque a empresa de Jeff Bezos, que vale 1,6 trilhão de dólares [9,3 trilhão de reais], se conectou a quase todas as partes da economia dos EUA. A sua força de trabalho de 1,3 milhão de pessoas, perdendo apenas para o Walmart, inclui mais de 500.000 indivíduos que classificam, separam e embalam os produtos em 800 depósitos em todo o país. É a nova US Steel, General Motors e Pennsylvania Railroad, empacotada em um caminhão sorridente que entrega o seu papel higiênico de emergência.
Durante a pandemia da Covid-19, ela se tornou ainda mais dominante. A Amazon acrescentou 9,7 bilhões de dólares [56 bilhões de reais] em lucro a seus resultados financeiros em 2020, ao persuadir uma nação sobre a sua virtuosa utilidade. Na guerra contra a Covid, “a Amazon foi o nosso porta-aviões”, escreveu Alec MacGillis em seu novo livro “Fulfillment: Winning and Losing in One-Click America”, que narra como a Amazon prospera dividindo os EUA em lugares ricos, onde encontra empregados de escritório, programadores e seus melhores clientes, e comunidades pobres, que classificam e entregam os produtos.
O novo movimento sindical busca uma vida melhor para pessoas como Courtenay Brown. Aos 30 anos, ela trabalha em um depósito da Amazon Fresh no norte de Nova Jersey, que entrega comida para os nova-iorquinos. Existem milhões de pessoas como Brown, trabalhando silenciosamente nas margens de cidades onde o vencedor leva tudo, entregando maçãs, refrigerantes, carregadores de celular e milhares de outros itens essenciais para os trabalhadores de colarinho branco. Como essa prosperidade ao alcance de um clique não está facilmente disponível para pessoas como ela, “o sonho americano é como um truque de mágica para mim”, disse ela.
A adesão a um sindicato daria a Brown e a outros o direito de negociar coletivamente por melhores salários, por proteção contra a demissão arbitrária e por um ambiente de trabalho mais humano. Trabalhadores em empresas com forte presença sindical, como a US Steel, podem ganhar mais de 100.000 dólares [578.000 reais] por ano com horas extras.
Mas um amplo aumento salarial cortaria os impressionantes lucros da Amazon, e é por isso que a empresa pressionou agressivamente os trabalhadores para resistirem à sindicalização – demitindo ou dispensando trabalhadores que promovem sindicatos e divulgando um site que diz aos trabalhadores: “Seja um DOER [alguém que faz], permaneça amigável e faça as coisas em vez de pagar os impostos”.
Na Amazon, a questão não é apenas em termos de compensação. A empresa instituiu um salário inicial de 15 dólares [87 reais] por hora. O problema é uma cultura de trabalho desumanizante, que inclui o rastreamento dos intervalos para ir ao banheiro durante turnos de 11 horas, o fato de colocar os trabalhadores uns contra os outros enquanto eles classificam e separam centenas de itens por hora e a demissão de trabalhadores por uma insubordinação menor. E é perigoso. A taxa de lesões em 23 depósitos da Amazon que foram estudados foi o dobro da média nacional para a indústria de armazenamento. A Amazon não retornou um pedido de comentário para esta reportagem.
Para Brown, uma veterana sem diploma universitário que começou ganhando cerca de 13 dólares [75 reais] e hoje ganha cerca de 19 dólares [110 reais] por hora, “eu sinto que é uma trapaça, porque dizem para você querer todas essas coisas, como a faculdade, mas são todas muito caras para pessoas como eu”.
Essa “trapaça” está em profunda tensão com o ensino social católico, que reitera que todas as pessoas possam se dar ao luxo de participar plenamente na sociedade. Um salário digno e o apoio aos sindicatos também são essenciais para o ensino social católico, que enfatiza a dignidade de cada trabalhador e se inspira na história de Deus que veio morar em uma família de refugiados da classe trabalhadora. “Não há boa sociedade sem um bom sindicato”, disse o Papa Francisco em um discurso aos líderes trabalhistas em 2017.
Quase dois terços dos estadunidenses aprovam os sindicatos, incluindo o presidente Joe Biden, que inspira a sua filosofia no ensino social católico. “Os sindicatos levantam os trabalhadores, tanto os sindicalizados quanto os não sindicalizados, e especialmente os trabalhadores negros e pardos”, disse o presidente Biden, que é o presidente mais pró-sindical desde Franklin D. Roosevelt, de acordo com todos os historiadores que eu entrevistei.
Na histórica encíclica papal de 1891 Rerum Novarum, o Papa Leão XIII escreveu que é “um ‘impulso natural’ para os seres humanos formarem comunidades no local de trabalho para que, assim, possam buscar seu propósito dado por Deus junto com outros”. Ele também “viu corretamente os sindicatos como necessários para proteger a dignidade e os direitos dos trabalhadores e de suas famílias, já que os capitalistas, que detêm um desequilíbrio de poder sobre os trabalhadores, muitas vezes não dão aos trabalhadores aquilo que lhes é devido”, afirmou Gerald Beyer, professor de Ética Cristã na Villanova University.
Na verdade, os sindicatos não são perfeitos. Eles coletam grandes quantias de dinheiro que podem ser uma tentação à corrupção para suas lideranças. Eles tornam ainda mais difícil para as empresas a parada e o reinício dos trabalhos em suas unidades, e tornam mais complicado demitir um trabalhador incompetente. E os sindicatos não são a única forma de proteger os trabalhadores. Na Europa, leis trabalhistas rígidas também são eficazes.
Mas, em geral, os sindicatos são uma das melhores formas de se opor ao imperativo capitalista de maximizar os lucros às custas das pessoas, especialmente quando o equilíbrio entre capital e trabalho é inexistente.
De 1973 a 2016, a produtividade por hora do trabalhador aumentou seis vezes mais rapidamente do que a remuneração por hora, de acordo com “Beaten Down, Worked Up”, a história do movimento trabalhista de autoria de Steven Greenhouse. O salário mínimo federal de 7,25 dólares [42 reais] por hora é 37% menor do que o nível de 1968, levando-se em conta a inflação. Os diretores-executivos das 350 maiores corporações ganham 320 vezes o salário de um trabalhador médio do setor privado, contra 21 vezes em 1965.
Não por coincidência, “temos a força de trabalho sindicalizada mais fraca do mundo industrializado”, disse Greenhouse.
Não era o que acontecia em meados do século XX, quando os sindicatos conquistavam a lealdade de milhões de pessoas e atraíam a atenção nacional com greves frequentes. Eles apareceram nas músicas de cantores como Woody Guthrie, Pete Seeger e Paul Robeson, em filmes como “Sindicato de Ladrões” e em sucessos da Broadway como “The Pajama Game”.
Mas, nos anos 1970, os sindicatos perderam sua força de atração. A indústria estadunidense reinou suprema por décadas, então o governo dos EUA não viu nenhum problema em permitir a entrada de importações estrangeiras com tarifas baixas. A Alemanha enviou Volkswagens, o Japão enviou Toyotas e Sonys, e o mundo inteiro, ao que parecia, enviou aço para o mercado estadunidense. Os fabricantes estadunidenses em dificuldades caíram como dominós, levando os sindicatos junto com eles.
Ao longo dos anos 1980, o número de metalúrgicos caiu de 450.000 para 170.000. E o governo Reagan, que derrotou uma greve do sindicato dos controladores de tráfego aéreo, defendeu os patrões contra os trabalhadores.
Lutando para sobreviver, os sindicatos estreitaram seu foco na preservação de salários e de condições de trabalho para seus membros, afastando-se do seu papel como bloco político em pé de igualdade com a mídia, a comunidade empresarial e o governo.
Na era dos sindicatos enfraquecidos, as empresas fugiram para os chamados “Estados do direito ao trabalho”, como o Alabama, que permitiam que os trabalhadores optassem por não se associar e pagar as taxas sindicais. A Reality TV ajudou a minar os sindicatos dos atores em Hollywood. As agências de emprego temporário se transformaram em empresas de bilhões de dólares.
A gig economy liderada pela Uber eclodiu. Na nova economia pós-industrial, dominada por empresas como o Walmart, a Amazon e o McDonald’s, os sindicatos eram um incômodo a ser evitado.
Os sindicatos do setor público se saíram melhor. A sua taxa de sindicalização é de 34,8%, em comparação com os 6,3% do setor privado.
Esse é o mundo em que Courtenay Brown e suas duas irmãs cresceram. Filhas de mãe jamaicana e pai estadunidense negro no Brooklyn, elas encontraram seu primeiro emprego na Macy’s e no Home Depot. No fim, gravitaram em torno da novidade da época, a Amazon. Por um tempo, todas as três trabalharam lá ao mesmo tempo.
Courtenay agora trabalha das 6h às 17h, dirigindo o tráfego nas docas de carga. Como muitos na Amazon, ela não tem carro. O deslocamento ao trabalho leva meia hora, e, por isso, ela trabalha a sua primeira hora só para pagar as passagens.
Ironicamente, os trabalhadores da Amazon têm mais influência do que imaginam, porque gerenciam nós estruturais importantes. Como os mineiros de carvão e os metalúrgicos em meados do século XX, eles podem subverter a vida estadunidense.
Afinal, Brown ajuda a alimentar a cidade de Nova York. Em lugares como o Inland Empire, o depósito central a leste de Los Angeles que processa os itens vindos da China através do Pacífico para o resto do país, os trabalhadores “têm um poder gigantesco para impor demandas ao governo federal e ao Estado”, disse Erik Loomis, autor de “A History of America in Ten Strikes”. “Foram os sindicatos que usaram essa vantagem que ajudaram a construir o sonho americano.”
A força da Amazon impulsionou o movimento Fight for $15, lançado depois que a crise financeira de 2008 inspirou greves e protestos esporádicos, e mais tarde impulsionou as campanhas presidenciais de Bernie Sanders. Embora o governo Biden não tenha conseguido aumentar o salário mínimo federal para 15 dólares [87 reais], ele o tornou obrigatório para os contratantes federais.
O que é inspirador na luta atual, disse Christine Firer Hinze, chefe do Departamento de Teologia da Fordham, é que ela carrega “um espírito de solidariedade” que remete aos movimentos trabalhistas pré-Segunda Guerra Mundial que varreram a sociedade. À medida que os sindicatos evoluíram, eles se concentraram mais intensamente em seus próprios trabalhadores e empresas, e menos na sociedade como um todo.
Mas isso está mudando de novo, “porque as pessoas em toda a sociedade reconhecem que é absurdo trabalhar em tempo integral e ser pobre”, disse Hinze. “É uma economia ruim que não está funcionando.”
A Amazon baseou sua estratégia de negócios na desigualdade embutida na economia dos EUA, dividindo o país em mercados ricos como Seattle, Nova York e Washington, onde seus melhores clientes e trabalhadores de colarinho branco vivem, e áreas mais rurais, especialmente no Cinturão da Ferrugem, onde é fácil encontrar pessoas dispostas a trabalhar por 15 dólares [87 reais] por hora.
O problema da desigualdade é frequentemente apresentado como um problema de demanda econômica. Nos anos 1950, quando um executivo da Ford estava conduzindo o presidente da United Automobile Workers, Walter Reuther, em uma visita, o homem da Ford apontou para novas máquinas robóticas. “Como você vai coletar as contribuições sindicais delas?”, perguntou ele. Reuther respondeu: “E como você vai fazer com que elas comprem Fords?”.
É também um problema moral. A Amazon penetrou na vida de muito mais pessoas do que a Ford jamais fez (literalmente: a empresa vendeu mais de 100 milhões de seus robôs domésticos Alexa). E, ao contrário da Ford, ela não precisa se perguntar se continuaremos comprando aquilo que ela está vendendo. Ela se tornou parte da nossa vida, mesmo que não tenhamos nenhuma ideia de como é a vida das pessoas que entregam o MacBook, o jogo Banco Imobiliário e o macarrão pronto na porta da nossa casa.
Contar-nos isso e defender esses trabalhadores pode ser algo que só um sindicato pode fazer.