20 Março 2014
Às 7 da manhã, eles já estão na fila – são funcionários de abatedouros de aves, empregadas domésticas, balconistas de lojas de descontos – para solicitar ajuda financeira para pagar suas contas de gás ou para conseguir alimentar suas famílias.
A reportagem é de Steven Greenhouse, publicada pelo jornal The New York Times e reproduzida pelo portal Uol, 19-03-2014.
E, quando a Metropolitan Ministries abre as portas, às 8h, esses trabalhadores lotam as 40 cadeiras da instituição de caridade – enquanto um bebê que berra ajuda a aumentar a sensação de tumulto. De seus bolsos e bolsas eles retiram as contas de prestadoras de serviços públicos ou os boletos de aluguel e os entregam aos assistentes sociais, que muitas vezes preenchem cheques – no valor de US$ 80 (cerca de R$ 180), US$ 110 ou US$ 150 – que serão usados para cobrir as despesas do mês ou encher o tanque de gasolina para ir ao trabalho.
Erika McCurdy, 40, que havia acabado de sair de seu turno de trabalho das 22h às 6h, precisou de ajuda no mês passado para pagar a conta de luz e de gás (que mantém o aquecimento ligado), que saltou para US$ 280 em janeiro passado, em comparação aos costumeiros US$ 120 – resultado de um dos invernos mais rigorosos de que se tem notícia nos Estados Unidos. Auxiliar de enfermagem em uma na moradia que presta assistência contínua para pessoas com necessidades especiais, Erika disse que durante muitas semanas não conseguiu arcar com todas as suas despesas. Ela é chefe de família e tem um filho de 19 anos e uma filha de 7.
"Simplesmente não dá para viver sem essa assistência financeira. Eu ganho US$ 9 por hora, sou mãe solteira e preciso sustentar dois filhos", disse Erika, uma mulher troncuda e de voz forte, nativa de Chattanooga.
Segundo Erika, sua situação financeira estava tão ruim que ela e sua filha muitas vezes entravam escondidas e sem pagar durante o intervalo para assistir aos jogos de futebol americano de seu filho, que está no ensino médio, pois ela não tinha dinheiro para pagar os US$ 6 dos ingressos (ela comentou orgulhosamente que seu filho, Charles, conseguiu entrar para a equipe de futebol americano All State). Quanto à sua filha Jer'Maya, que em um vídeo gravado pela mãe no iPhone aparece imitando todos os movimentos da cantora de Beyoncé, Erika diz: "ela adoraria ter aulas de balé e de piano, mas eu não consigo pagar por isso de jeito nenhum".
Após trabalhar como auxiliar de enfermagem durante 15 anos, Erika é uma entre os quase 25 milhões de trabalhadores norte-americanos que ganham menos de US$ 10,10 por hora – quantia que o presidente Barack Obama pretende estabelecer como o salário mínimo nacional. Desses trabalhadores, 3,5 milhões ganham o salário mínimo federal, de US$ 7,25, ou menos.
E, como muitos desses trabalhadores, Erika não conta com um emprego fixo em tempo integral que lhe garanta 40 horas de trabalho semanais – muitas vezes, ela é escalada para trabalhar apenas 20 horas por semana. Mas mesmo que ela trabalhasse em tempo integral durante o ano inteiro, seu salário de US$ 9 por hora a posicionaria abaixo da linha de pobreza dos EUA, que é de US$ 19,530 anuais para uma família de três pessoas.
Ultrapassar essa linha de pobreza tornou-se mais difícil nos últimos anos, uma vez que a composição da força de trabalho de baixa renda nos EUA foi transformada pela Grande Recessão, alterando seu perfil demográfico e outros fatores. Mais da metade das pessoas que ganham US$ 9 ou menos por hora têm 25 anos ou mais, enquanto a proporção de adolescentes nessa faixa de renda caiu para apenas 17%, a partir dos 28% registrados no ano 2000 após correção de acordo com a inflação, segundo Janelle Jones e John Schmitt, do Centro de Pesquisas sobre Política Econômica.
Hoje em dia, os trabalhadores de baixa renda também têm um nível educacional mais elevado: 41% deles fizeram pelo menos parte de algum curso superior, percentual maior dos que os 29% registrados no ano 2000. "Hoje, os trabalhadores que ganham salário mínimo ou baixos salários são mais velhos e mais qualificados do que há 10 ou 20 anos e, ainda assim, eles estão recebendo salários mais baixos (depois de corrigidos pela inflação) do que há 10 ou 20 anos", disse Schmitt, economista sênior do centro de pesquisas.
"Ao voltarmos no tempo várias décadas, percebemos que os trabalhadores que costumavam receber o salário mínimo ou uma quantia próxima a ele costumavam ser adolescentes – esse era o estereótipo que povoava a cabeça das pessoas. Mas hoje em dia essa ideia já não corresponde à realidade", afirma.
Crise financeira pelo mundo
Em Chattanooga, a prevalência de empregos que pagam baixos salários contribuiu para a alta taxa de pobreza: 27% dos moradores da cidade estão abaixo da linha de pobreza, em comparação a 15% no país como um todo. As mulheres comandam cerca de dois terços dos lares pobres da cidade, e 42% das crianças do município são pobres, quase o dobro da taxa estadual.
"O rosto da pobreza nessa comunidade é composto por mulheres, especialmente as mulheres negras", disse Valerie L. Radu, professora de serviço social da Universidade do Tennessee em Chattanooga.
Mas nem sempre Chattanooga foi um ímã para empregos de baixa remuneração. Durante grande parte do século passado, a cidade, que abraça o rio Tennessee, foi um centro fabril, com dezenas de fábricas de roupas, tecelagens e fundições de metal.
Durante o último trimestre do século 20, quase todas as fábricas e fundições locais foram fechadas e, com elas, desapareceram milhares de empregos na indústria que costumavam alçar os trabalhadores – mesmo aqueles sem o ensino médio – para a classe média ou para a extremidade inferior da classe média. No lugar das fábricas e das fundições surgiram milhares de empregos no setor de serviços: no aquário e no cinema Imax construído para atrair turistas e em hotéis, casas de repouso, grandes lojas de varejo, pubs, restaurantes de fast-food, salões de beleza e hospitais.
Lojas de desconto pontilham a paisagem local, incluindo uma Family Dollar no centro, perto do sofisticado restaurante Bluewater Grille, situação que reflete o quanto as cidades norte-americanas vem experimentando um esvaziamento da classe média.
"Chattanooga tem um problema duplo: o baixo nível de escolaridade e o desaparecimento, em grande parte, dos empregos tradicionais que essas pessoas costumavam conseguir", disse Matthew N. Murray, economista da Universidade do Tennessee. Apenas 23% dos adultos Tennessee têm diploma universitário.
Jeralee Kincaid, 23, trabalha como caixa em um estacionamento próximo do hotel Marriott Courtyard, no centro de Chattanooga, e ganha US$ 8,50 por hora. Jeralee, que foi uma boa aluna durante o ensino médio, vive com sua mãe e pretendia estudar programação de computadores na faculdade, mas, em vez disso, sua família decidiu que ela precisava ajudar a pagar as despesas médicas de uma sobrinha de 5 anos que tem leucemia.
"Ela não consegue comer, falar nem andar sozinha", disse Jeralee. A jovem diz que se sente presa, mas que também é grata por seu chefe estar tentando ajudá-la a encontrar uma bolsa de estudos para cursar a faculdade.
Em 2011, quando a Volkswagen abriu uma linha de montagem em Chattanooga, onde investiu US$ 1 bilhão, 80 mil pessoas se inscreveram para concorrer a 2 mil postos de trabalho cujo salário médio era de US$ 19,50 por hora. Muitos trabalhadores de baixa renda da cidade, como Erika – que abandonou o ensino médio, mas que posteriormente obteve seu GED (ou General Educational Development, diploma de conclusão do ensino médio) –, teriam gostado de trabalhar lá, mas pessoas como ela tiveram dificuldades para resolver as questões de matemática relacionadas a funções que envolviam a operação de máquinas avançadas.
"Nós compreendemos que mais pessoas precisam obter algum tipo de certificado ou diploma de nível superior para ter uma chance neste mundo", disse o prefeito de Chattanooga, Andy Berke. "Nós não queremos que o sul dos EUA seja um lugar para onde as empresas se dirigem para poder pagar baixos salários e oferecer postos de trabalho que exigem um baixo nível de escolaridade. Esse é um problema de longo prazo que as cidades de médio porte do sul do país vêm enfrentando".
Aqui, assim como em outros lugares, um diploma universitário não é capaz de garantir um bom emprego.
Landon Howard se formou na Universidade do Tennessee há quatro anos, onde obteve um diploma de bacharel em serviço social, mas não tem sido capaz de encontrar um emprego nessa área. Por isso, ele trabalha como chef assistente no modernoso Tupelo Honey Cafe. Como geralmente Howard é escalado para trabalhar apenas entre 15 e 20 horas por semana e recebe US$ 9,50 por hora, ele normalmente leva para casa menos de US$ 200 por semana.
"Eu tive que voltar a morar com meus pais", disse Howard. Sua preocupação mais urgente é a falta de um plano dentário. "Um dos meus dentes está rachado", disse ele. "Há um grande buraco nele. Eu não sei se eu vou perdê-lo por causa disso".
Erika, que é mãe solteira e faz parte de uma faixa de renda modesta, normalmente não teria direito a usar o programa Medicaid (plano de saúde público e federal para pessoas de baixa renda nos EUA), embora seus filhos usem o benefício, mas ela foi aceita por causa de uma doença cardíaca que requer o uso de medicamentos caros.
A família de Erika teve que fazer muitos sacrifícios desde que ela foi demitida, em 2012, de seu emprego como assistente de enfermagem em tempo integral no pronto-socorro do Memorial Hospital.
A queda no padrão de vida causada pela redução do salário de US$ 13,75 por hora, que ela recebia no hospital, para US$ US$ 9 por hora, que ela ganha atualmente na moradia de assistência contínua, a obrigou a sair de uma casa de 185 metros quadrados localizada em Harrison, um subúrbio local "que é bonito e onde você tem acesso a escolas melhores", disse ela.
"Nós tínhamos uma vida boa", acrescentou ela. "Nós não precisávamos nos preocupar com a violência nem com ninguém entrando na nossa casa para nos assaltar".
Depois de ser demitida, "eu percebi que eu não podia me dar ao luxo de ficar em uma casa cujo aluguel custava US$ 625 por mês", disse ela. Então, ela encontrou uma casa de 55 metros quadrados cujo aluguel custa US$ 400 por mês em Brainerd, região conhecida pelas gangues e pela violência. "Eu fico em casa à noite", disse ela. "Eu coloquei grades nas janelas".
A nova casa de Erika tem dois quartos modestos, uma sala de estar quase sem nenhuma mobília, um banheiro e uma pequena cozinha improvisada "onde eu tenho que tirar a mesa do caminho quando meu filho termina de jantar", disse ela. "Imagine estar em um lugar de dois quartos com um filho de mais ou menos 1,80 de altura e 125 quilos e uma menininha. Eu e minha filha dividimos um quarto".
Elas também compartilham a cama, mas Jer'Maya mantém suas bonecas, livros e roupas no quarto de Charles, entre as bolas e roupas esportivas do rapaz. Erika recebe US$ 400 por mês em vales-alimentação. Sem essa ajuda, "nós não estaríamos comendo", diz ela.
Mas, mesmo assim, Erika se preocupa com o futuro de seus filhos.
"Eu tenho um filho que está se formando em maio", disse ela. "Ele quer ir para a universidade. Meu coração está batendo a 100 km por hora. Se ele conseguir uma bolsa integral, para sustentá-lo eu ainda vou precisar pagar a conta do celular, o transporte e a alimentação durante as férias".
A conta de luz de fevereiro de Erika acabou de chegar e ela se surpreendeu com o valor: US$ 320. É possível que ela tenha que recorrer novamente à Metropolitan Ministries para obter ajuda financeira, embora ela afirme que espera que os cerca de US$ 3 mil que deve receber a título de restituição do imposto de renda a ajudem a pagar essa conta – e também a comprar um novo sofá para a sala.
Rebecca Whelchel disse que já viu grandes mudanças na clientela da Metropolitan Ministries desde que se tornou diretora-executiva da instituição de caridade, há oito anos.
"As pessoas costumavam vir aqui para tentar resolver uma única questão, do tipo 'eu tenho que comprar um pneu novo, pois o pneu do meu carro estourou' ou 'eu não tenho dinheiro na conta para pagar a conta de luz", disse Rebecca. "Agora elas chegam com um bolo de contas amarrados com um elástico e vários problemas. Está tudo errado. Tudo está entrelaçado com todo o resto".
Aos 34 anos, Nick Mason ganha US$ 9 por hora como gerente assistente de uma pizzaria Domino, supervisionando uma equipe de seis pessoas. "Eu não acho que US$ 9 seja uma quantia justa – eu trabalho no setor de pizzarias há 19 anos, desde que eu tinha 15 anos", disse ele.
Mason frequentou a Universidade do Tennessee em Chattanooga, onde estudou para se tornar enfermeiro, mas abandonou o curso no segundo ano, quando seu casamento acabou. Ele voltou a trabalhar em tempo integral e teve que se mudar com seus filhos para a casa de seus pais, localizada no subúrbio de Hixson.
"Eu só queria que nós pudéssemos ter a nossa própria casa, mas eu não posso arcar com essa despesa", disse Mason, pai de Halle, de 7 anos, e Eli, de 5. "As crianças sempre me pedem uma casa".
"Nós tivemos que sacrificar um monte de coisas", continuou ele. "Eu adoraria poder dar a eles tudo o que eles merecem. Mas, como pai solteiro, é impossível. Eu coloquei meus filhos no karatê cerca de um ano atrás. Eles adoraram, mas eu cheguei ao ponto em que tive que escolher entre pagar a conta do celular ou as aulas de karatê, e como sou gerente, eu preciso ter um celular para que as pessoas possam entrar em contato comigo".
Mason ouviu críticas: pare de reclamar sobre seu salário; apenas volte para a escola e, assim, você vai conseguir encontrar um emprego mais bem remunerado.
"Eu adoraria voltar a estudar", disse ele. "Para as pessoas, é fácil falar, pois elas não estão na minha pele. Todos os minutos do meu dia já estão ocupados. Eu já não consigo conviver com os meus filhos o suficiente. Eu duvido de que serei capaz de pagar as mensalidades de um curso, e eu não sei como vou encontrar tempo para estudar".
A grande esperança dele é ser promovido a gerente de uma das lojas da rede Domino, o que pode significar um salário de US$ 15 por hora.
Erika, que se candidatou a duas dezenas de postos de trabalho durante este inverno, divulgou a boa notícia com um grande sorriso no rosto. Ela foi aceita para uma vaga de auxiliar de enfermagem em tempo integral na unidade de assistência de transitória do hospital Erlanger Health System.
"Eles estão me pagando US$ 10,64", disse ela, o que representa uma melhora em relação aos US$ 9 por hora que vinha recebendo. "Isso me dá um pouco de espaço para respirar".
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O cerco se fecha para os trabalhadores de baixa renda dos Estados Unidos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU