26 Março 2021
Por ocasião do sétimo centenário da morte de Dante Alighieri, a revista Civiltà Cattolica publica um artigo sobre a recepção da Divina Comédia pelos jesuítas.
O artigo é do jesuíta italiano Giandomenico Mucci (1938-2020), que foi por muito tempo diretor espiritual da Pontifícia Academia Eclesiástica, a escola dos diplomatas da Santa Sé. O artigo foi publicado por La Civiltà Cattolica, caderno 4.089, 07-11-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Por ocasião da publicação da Carta Apostólica Candor Lucis Eternae do Papa Francisco no VII Centenário da morte de Dante Alighieri, 25-03-2021, reproduzimos o artigo da Civiltà Cattolica.
Em 1965, durante as celebrações pelo sétimo centenário do nascimento de Dante, a nossa revista publicou dois artigos voltados a desfazer um lugar comum que retorna ao imaginário italiano quando se fala da atitude dos jesuítas em relação à arte da “Comédia” [1].
Desde que um jesuíta, Saverio Bettinelli, no século XVIII, tornou conhecida a sua infeliz opinião sobre o poeta, quase nunca faltou um manual de história da literatura italiana e alguns apressados repetidores dele que não atribuísse a toda a Companhia aquela que foi a opinião de um dos seus membros: como se os jesuítas tivessem ordenado a excomunhão do poeta!
Na verdade, nas escolas da Companhia, Dante não era o autor mais recomendado aos alunos, como, em vez disso, os autores da antiguidade clássica, até porque, nos seus programas escolares, o lugar atribuído ao ensino da língua italiana era bastante reduzido. No entanto, naquelas escolas, grupos de jovens escolhidos que formavam as chamadas “Academias” tinham a permissão de ler a “Comédia” segundo um estilo que leva a pensar nas futuras lecturae Dantis.
Também é possível que os mestres jesuítas tenham hesitado em recomendar o poema dantesco aos seus estudantes por causa do próprio tempo que via florescer as suas escolas e os seus colégios, o século que havia assistido a dilaceração da cristandade ocidental com as críticas, em grande parte da Europa, contra a própria instituição do papado; e certos cantos do grande poema que denunciam claramente os vícios e as fraquezas de alguns pontífices não deviam parecer o alimento mais salutar para as mentes juvenis naquele tempo.
E eis que São Roberto Belarmino, que está entre os primeiros conhecedores e admiradores jesuítas de Dante, inaugura o estudo do poeta com um fim apologético, distinguindo o valor da arte dantesca, a perfeita ortodoxia católica do seu autor e a amargura política, revestida às vezes de uma atitude profética, com a qual o poeta expressava passionalmente as expectativas da sua concepção política, que estavam em desacordo com a obra dos papas em um nível puramente histórico.
Belarmino antecipava a interpretação de Dante baseada exclusivamente no seu gênio poético, indicando o caminho para quem teria rejeitado o Dante inimigo do papado e da Igreja, o Dante maniqueu ou cabalista, membro de uma seita secreta que teria usado uma linguagem esotérica para cobrir o sentido óbvio e real das palavras [2].
Portanto, um método apologético duplo: apologia do poeta, exaltando o seu magistério da arte, e, ao mesmo tempo, apologia do papado, resgatando o poeta da acusação de ter desejado renegar o seu magistério da fé.
Esse método foi muitas vezes retomados pelos jesuítas em relação a Dante. Por exemplo, na Itália, no século XIX, quando as aspirações liberais à unidade nacional erigiram Dante a seu símbolo e atribuíram às suas invectivas antipapais o significado que convinha à luta dos liberais contra o poder temporal e espiritual dos papas, os padres Giovanni Battista Pianciani e Carlo Maria Curci, fundador da nossa revista, que tinham familiaridade com a “Comédia”, defenderam a ortodoxia do poeta.
Curci preparou e publicou uma edição do poema para o povo, munida de um comentário mínimo – de bolso, como se diria hoje –, para que pudesse ser levada “nos passeios, nos vilarejos, nas viagens” e lida assiduamente.
Como testemunho do amor e da importância reconhecidos pelos jesuítas a Dante, é útil recordar dois conhecidos jesuítas do século XVII: o padre Daniello Bartoli, a quem Leopardi chamou de “o Dante da prosa italiana”, que amava citar amplamente conceitos e expressões dantescas, e o padre Carlo D’Aquino, que traduziu quase toda a “Comédia” em hexâmetros latinos [3].
Entre os historiadores jesuítas da literatura, é preciso citar, acima de tudo, Francesco Saverio Quadrio, autor no século XVIII dos sete volumes “Della storia e della ragione d’ogni poesia” [Da história e da razão de cada poesia], uma espécie de grande enciclopédia da literatura universal, que investiga a origem, a natureza e a história da lírica, da dramática e da épica em todas as eras e em todos os países.
Dante está presente em cada um dos grossos volumes com as suas canções, baladas e sonetos, mas, sobretudo, com a “Comédia” e com a história da sua composição e das suas primeiras versões.
E, depois, ainda um jesuíta, Girolamo Tiraboschi, autor da monumental “Storia della letteratura italiana” [História da literatura italiana], muito estimada por Foscolo e De Sanctis. Dante é elogiado ali como “uma imaginação muito viva, um gênio afiado, um estilo às vezes sublime, patético, enérgico, que se levanta, e cativa, imagens pitorescas, fortíssimas invectivas, traços ternos e apaixonados, e outros ornamentos semelhantes, com os quais este poema é adornado, são uma compensação bem abundante dos defeitos e das manchas que nele se encontram”.
E, depois, as famigeradas “Lettere virgiliane” [Cartas virgilianas], de Saverio Bettinelli. Vincenzo Monti, por uma pequena vingança, escreveu sobre ele: “Aqui jaz Bettinel que tanto viveu / para ver esquecido aquilo que escreveu”. Mas ele foi profeta apenas em parte. Porque esse jesuíta do século XVIII ainda é lembrado tanto pela infeliz e dura crítica a Dante quanto pelos méritos que adquiriu na história da literatura com o rejuvenescimento promovido na cultura italiana do seu século, apesar das intemperanças, dos excessos e das contradições [4].
Como já dissemos, a posição antidantesca de Bettinelli expressava a sua convicção pessoal, não a posição da Companhia como tal. De fato, assim que Bettinelli cometeu o seu crime literário, ele foi removido pelos seus superiores do cargo de professor e de acadêmico do Colégio dos Nobres de Parma e destinado a dirigir cursos de Exercícios Espirituais no solitário Casino perto de Verona.
Alguns elogios foram tributados a Bettinelli por alguns jesuítas franceses, porque, na época, na França, era Voltaire quem imperava, célebre antidantista, semelhante a, mais tarde, Lamartine. Na Itália, as “Cartas virgilianas” foram apreciadas por Cesarotti, Giovio, Verri, e se entende a razão disso.
Entre os admiradores de Dante, deve-se incluir outro jesuíta do século XVIII: Andrea Rubbi, veneziano, autor dos 56 volumes do “Parnaso italiano”, três dos quais contêm a “Comédia”, a biografia e a lista das obras do poeta e a comparação entre ele e Michelangelo.
Em meados do século XIX, o padre Valeriano Cardella, professor de letras no Colégio de Orvieto, publicava um pequeno volume sobre a ordem dos cânticos da “Comédia” para uso dos estudantes, exortando-os a saciar a sede na “sabedoria profusa naquele milagre de poesia”.
Na Companhia, também não faltaram, entre os séculos XIX e XX, os comentaristas de toda a “Comédia”. Apresentamos alguns deles, como testemunho do interesse que os jesuítas italianos tiveram por Dante, mas não sem antes terem pelo menos acenado a um dos seus ilustres precedentes do século XVIII: o comentário ao poema do padre Pompeo Venturi, que até 1870 tivera nada menos do que 30 edições.
A história editorial desse comentário foi bastante conturbada, e remetemos quem quiser conhecê-la ao estudo que Mondrone fez dele. Aqui, basta dizer que a obra de Venturi mereceu os elogios de Vico, e Croce reconhecia que, no trabalho do jesuíta, “estão precisamente todas as coisas que Vico elogia e faltam todas aquelas que ele julgava louvável ter ignorado” [5].
Um século e meio depois de Venturi, foi publicado o comentário à “Comédia” do padre Giovanni Cornoldi. Eram os anos nos quais Leão XIII ia restaurando o tomismo nas escolas católicas e, nesse contexto, instituía em Roma uma cátedra dantesca. Do lado oposto, com a intenção evidente de fazer do poema um instrumento contra o papado, deturpando o sentido das invectivas do poeta, a maçonaria instituía uma cátedra análoga na Sapienza e a oferecia a Carducci, que, mesmo sendo maçom, não a aceitou; e, ao grão-mestre da maçonaria, Adriano Lemmi, que o solicitava em nome do ministro Bovio, ele respondeu que discordava do propósito pretendido pelo governo, já que Dante, de modo muito evidente, era perfeitamente católico. Na época, da parte católica, sentiu-se a necessidade de comentar a “Comédia” segundo o autêntico espírito do seu grande autor.
O compromisso foi assumido por Cornoldi, um dos redatores da La Civiltà Cattolica, que, como fervoroso tomista, compôs o seu comentário esclarecendo os lugares filosóficos, teológicos, históricos, éticos, políticos, ascéticos do poema, mas talvez delongando-se excessivamente em questões debatidas pela exegese dantesca, que tornaram o seu trabalho não adequado para os estudantes, tanto quanto foi útil para os dantistas, que não deixaram de apreciá-lo.
Cerca de 10 anos mais tarde, houve o comentário do padre Domenico Palmieri, teólogo da Universidade Gregoriana, de orientação filosófica não tomista. Nos três volumes que constituem esse comentário, a atenção do autor não se concentra diretamente em Dante poeta, mas no seu catolicismo, no seu gibelinismo, em outras questões doutrinais e nas grandes correntes filosóficas da Idade Média, de modo que tal comentário se impôs imediatamente como contribuição para o diálogo entre dantistas, embora tenha se revelado pouco apropriado para a didática.
Entre os estudiosos de Dante presentes no século XIX na La Civiltà Cattolica, merecem ser lembrados os padres Carlo Picciril e Francesco Berardinelli, aos quais se devem as resenhas dantescas regularmente publicadas na revista, e o padre Tito Bottagisio, que, trabalhando no Arquivo Vaticano nos “Regesti” pontifícios, estudou as relações de Bonifácio VIII com Celestino V, com Dante, com Florença e com Filipe, o Belo, para defender aquele papa contra os ataques de Dante e, entre seus intérpretes, de Scartazzini.
No século XX, um insigne dantista, ainda hoje conhecido entre os especialistas, foi membro do Colégio dos Escritores da La Civiltà Cattolica: o padre Giovanni Busnelli (1866-1944). Os mais célebres dantistas – Flamini, Zingarelli, Barbi, Vandelli, Grabmann, Parodi, Mandonnet, Pietrobono, D’Ovidio, Torraca, Porena – tinham-no como amigo, colega e, quando necessário, adversário das suas interpretações.
Dotado de uma grande versatilidade intelectual no campo da literatura, ele estudou particularmente Foscolo, Leopardi e Manzoni, mas sua área de especialização eram os estudos dantescos, que ele abordou não tanto como exegeta da poesia, mas sim do ponto de vista filológico, filosófico e teológico: tudo o que se publicava sobre Dante, na Itália e no exterior, era objeto da sua atenção, da sua crítica de gosto refinado, da sua ampla informação cultural, não apenas como assinalador dos estudos alheios, mas também com contribuições próprias. Ele foi colaborador habitual da La Civiltà Cattolica e do Giornale Dantesco.
Entre volumes propriamente ditos e extratos que às vezes equivalem a volumes por tema e tamanho, Busnelli tocou em grande parte dos assuntos discutidos no seu tempo pelos estudos dantescos. Mas a obra que o ocupou mais intensamente e revelou melhor a sua excepcional preparação foi o “Convivio”, comentado com Giuseppe Vandelli e introduzido por um ensaio de Michele Barbi, publicado pela editora Le Monnier em dois volumes em 1934.
Obra didática medieval, repleta de problemas especulativos, o “Convivio” é, na produção de Dante, aquela que os seus estudiosos sentiram mais distante do seu espírito e dos seus interesses. Busnelli, que já lhe havia dedicado vários escritos ocasionais, demonstrava por ela um interesse não inferior talvez ao que lhe suscitava a “Comédia”, conhecia as suas fontes e sentia-se próximo do mundo do poeta.
Quem percorre ainda hoje as densíssimas colunas que ocupam pelo menos dois terços dos dois volumes de comentários vê quanta riqueza de erudição e de doutrina se encontra condensada ali. A preparação do texto crítico, na qual o jesuíta trabalhava desde 1925, colaborando com Vandelli, pode ser acompanhada por meio da copiosa correspondência dos dois dantistas, que permanece igualmente como um documento da parte não secundária realizada por Busnelli na reconstrução filológica do texto dantesco.
Começamos este artigo partindo de Betinelli, o jesuíta que há mais ou menos três séculos, com a sua opinião sobre Dante, ofereceu o ponto de partida para a calúnia da suposta aversão da Companhia à figura e à arte do grande florentino. Os conhecidos eventos que envolveram a Companhia no século XVIII e que, pela força conjunta de inimigos poderosos e de amigos fracos, levaram à extinção temporária da Ordem inaciana foram o terreno no qual essas e outras calúnias mais graves se enraizaram. Depois, com o passar do tempo, elas se sedimentaram e assumiram no inconsciente coletivo, a partir de episódios puramente marginais e subjetivos como eram, cor e veste de verdades objetivas assumidas como incontroversas e não passíveis de revisão crítica, o que as teria levado de volta às suas modestíssimas realidades.
Estas páginas, que se referem à Companhia na Itália e à honra que ela não deixou de tributar a Dante, querem testemunhar, precisamente, neste sétimo centenário da morte do poeta [em 2020], o interesse e a veneração que a Companhia, através dos estudos de seus homens notáveis, professou àquele que, com a sua arte, iluminou a Igreja e a fé católica.
1. Cfr D. Mondrone, «Dante e i gesuiti», in Civ. Catt. 1965 II 535-547; Id., «Gesuiti studiosi di Dante», ibid., 1965 III 119-132.
2. Cfr A. Valensin, Il cristianesimo di Dante. Roma: Paoline, 1964, p. 11 s.
3. Cfr P. Chiti, «Un insigne latinista ammiratore e traduttore di Dante. Il P. Carlo D’Aquino (1654-1737)», in Civ. Catt. 1960 I 250-267.
4. Cfr G. Natali, Il Settecento, Milão: Vallardi, 1929, p. 1157.
5. B. Croce, «Il “Giudizio su Dante” di G. B. Vico e il “Commento” di Pompeo Venturi», in La Critica 25 (1927) 407-410.
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Dante e os jesuítas. Artigo de Giandomenico Mucci - Instituto Humanitas Unisinos - IHU