24 Março 2021
Massimo Borghesi, professor de Filosofia Moral em Perugia, na Itália, escreveu outro livro fundamental para compreender o pensamento e o pontificado do Papa Francisco. Depois do seu primeiro esforço publicado há quatro anos (“Jorge Mario Bergoglio. Uma biografia intelectual”, Vozes, 2018), ele volta a oferecer pistas de reflexão muito interessantes, pela editora Jaca Book, com seu novo ensaio “Francesco. La Chiesa tra ideologia teocon e ‘ospedale da campo’” [Francisco. A Igreja entre a ideologia teoconservadora e o ‘hospital de campanha’, em tradução livre].
A reportagem é de Alessandro Banfi, publicado por Vita, 22-01-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Trata-se de um volume repleto de ideias que, ao se aprofundar nas disputas da doutrina filosófica e teológica, está muito ligado a este momento particular da história. A reeleição perdida de Donald Trump para a Casa Branca, também pela incapacidade de gerir uma pandemia inesperada, abriu um cenário totalmente inédito também para a Igreja Católica.
Nesse novo livro de Borghesi, o papado de Roma, primeiro com João Paulo II e Bento XVI e depois principalmente com Francisco, é lido na perspectiva do debate intelectual e teológico norte-americano, desde a queda do Muro de Berlim. A partir dos supostos “vencedores” da Guerra Fria, que proclamaram “o fim da história”.
Na realidade, a história não acabou com aquele triunfo do dólar. Borghesi reconstrói as tentativas, sobretudo por meio do movimento teocon dos vários Novak, Weigel e Neuhaus, de hegemonizar e condicionar o catolicismo romano e até mesmo o papado. Lendo Borghesi, entendem-se as raízes dessa tentativa de “cisma estadunidense”. Um cisma que, de algum modo, encontrou uma afirmação clamorosa nos últimos anos.
De fato, nenhum papa de Roma jamais recebeu tantas críticas e tantas resistências de um episcopado inteiro, como Francisco teve que sofrer por parte dos bispos norte-americanos. Por que se produziu essa contraposição? Quais são os seus motivos de fundo?
No livro, Borghesi descobre e analisa uma rede de interpretações enganosas dos pontificados, começando pela evidente deturpação da encíclica Centesimus Annus, que realmente leva a refletir. Interpretações que também são construídas a partir de relações pessoais, entrelaçando biografias. Em certas fases, há intelectuais que nem são católicos, como o italiano Marcello Pera, que acabam aparecendo como exegetas do Santo Padre.
Comecemos imediatamente pelo Papa Francisco. Por que a sua linha de uma Igreja em saída, de hospital de campanha, é tão combatida pela hierarquia católica dos Estados Unidos?
A Igreja estadunidense, em grande medida, parece não ter as antenas para perceber a perspectiva de Francisco. E isso apesar de a viagem de Francisco aos Estados Unidos em 2015 ter corrido muito bem. Então, é preciso se perguntar: por quê? Por que uma parte do establishment católico estadunidense não tem as coordenadas para entender o papa? Depende de Bergoglio ou dos estadunidense? No meu livro, eu analiso os motivos dessa distância e as remeto à formação de uma ideologia católica conservadora, levada em frente por intelectuais como Novak, Neuhaus, Weigel, Sirico, que, no arco de 40 anos, desde a presidência Reagan, impôs-se no catolicismo estadunidense.
Trata-se de um “americanismo católico” que, na sua crítica ao progressismo dos anos 1970, desposa o modelo capitalista com as batalhas éticas contra a secularização, a apologia do mercado sem restrições e a luta contra o aborto, a eutanásia, o casamento gay. Nasce uma nova figura de católico, o “cristianista”, lucidamente diagnosticado por Lucio Brunelli em um artigo da revista Vita em 2001. Por isso, produz-se uma metamorfose do catolicismo que, de missionário e aberto ao diálogo, se torna identitário e conflitual; de social, torna-se eficientista e empresarial; de comunitário, torna-se individualista e burocrático; de pacífico, torna-se belicoso; de católico e universalista, torna-se ocidentalista. Trata-se de uma posição singular, que une o espírito militante e maniqueísta ao conformismo burguês.
Para essa posição, a linha do papa, expressada no seu manifesto Evangelii gaudium, parece hostil e incompreensível. Francisco questiona novamente os dois postulados da posição teocon: a agenda ética e a adesão ao capitalismo. Por um lado, ele pede aos católicos que saiam do gueto, da fortaleza em que se blindaram após a queda do comunismo. Pede-lhes que sujem as mãos, levem no coração o destino do mundo, levem a todos a mansa humanidade do Redentor, e isso não sob a insígnia das bandeiras guerreiras, mas através de gestos de ternura. Por outro lado, ele contesta duramente um modelo econômico, o da era da globalização, que, com a sua religião do mercado, aboliu laços e proteções sociais, rebaixou a classe média, criou milhões de novos pobres. Do ponto de vista dos intelectuais teocon, isso é inadmissível. A partir da sua reação, nasce a lenda do papa “vermelho”, peronista, populista.
Se os “norte-americanos” (Dom Viganò, ex-núncio, pediu a renúncia do papa) estão na vanguarda do ataque ao papa, há também alas progressistas que o criticam, segundo as quais o pontificado já estaria em declínio...
A crítica dos progressistas é mais recente. Nos últimos anos, eles o apoiaram pensando que ele iria “revolucionar” a Igreja. Ficaram decepcionados quando compreenderam que, em certos temas, este papa permanece firme na custódia da tradição. É o caso da ordenação de mulheres ou de homens casados. Os progressistas cometeram o mesmo erro que os tradicionalistas: imaginaram um papa que não existe. Francisco certamente não é um conservador, é um papa missionário e social: esta é a sua fisionomia. Os reacionários confundem com progressismo aquilo que é ditado por um espírito missionário. Uma perspectiva missionária não pode aceitar uma Igreja imóvel, fechada na defensiva. Espera uma Igreja em saída, que visa ao essencial, àquilo que mais atrai na mensagem cristã, fora de muitas proibições que são apenas o fruto de escolhas históricas ditadas por circunstâncias particulares. O jesuíta missionário se faz tudo para todos, para conquistar todos ao amor de Cristo.
A crônica das últimas semanas, com a viagem do Papa Francisco a Bagdá, dedicada como ele mesmo disse a São João Paulo II, lembrou a todos nós do poder profético de Woytjla, que, de forma alguma, quis “batizar” a guerra no Iraque. Nem em 1990-1991, nem em 2002, depois do 11 de setembro. João Paulo II então “salvou” a Igreja da identificação com o Ocidente e se afastou da tentativa de instrumentalização por parte dos pensadores que você analisa no seu livro: Michael Novak, em primeiro lugar, e depois também Weigel e Neuhaus...
Sim, o americanismo católico havia se proposto, nos anos 1990, como o intérprete oficial, nos EUA, da mensagem social de João Paulo II. Depois, em 2003, diante da guerra injustificada contra o Iraque, os pensadores teocon optaram fortemente pelo presidente Bush contra o papa. Os papistas eram americanistas, e a guerra mostrava com absoluta evidência onde o coração batia. Novak, Weigel, Neuhaus tentaram de todas as formas persuadir o Vaticano e Roma da bondade de uma guerra que teria como resultado milhares de mortes, a destruição de um país, o êxodo bíblico da histórica comunidade cristã iraquiana das terras de Nínive e da Babilônia. Um erro gravíssimo, nunca reconhecido, que, melhor do que qualquer outro argumento, permite evidenciar a ideologia teocon.
Naqueles discursos teocon, sempre se citava a Centesimus Annus, mas, na realidade, essa encíclica respeitava a tradição da doutrina social da Igreja, que continuava alertando para todos os riscos do capitalismo...
No meu livro, eu descrevo a operação Centesimus Annus. Quando João Paulo II a publicou em 1992, logo após a queda do comunismo, o papa pretendia propor um modelo social fundamentado na dignidade do trabalho. A encíclica não é nada terna em relação ao modelo capitalista, que ela critica e corrige de modo substancial, e isto em perfeita continuidade com a doutrina social dos seus antecessores. Com uma operação muito habilidosa, Novak, Neuhaus e Weigel não hesitam em se “apoderar” do texto, oferecendo uma hermenêutica claramente deformadora dele. A leitura deles é que o papa polonês teria oferecido, pela primeira vez na história da doutrina social, a plena reconciliação entre catolicismo e capitalismo, conciliação já oferecida por Novak no seu livro “O espírito do capitalismo democrático”, de 1982. O papa teria rompido, de maneira profunda, com a tradicional doutrina social. Incrivelmente, a hermenêutica neocon consegue se afirmar, e daí nasce a lenda da Centesimus Annus como uma encíclica do capitalismo. Graças a essa operação, o filão dos neoconservadores torna-se hegemônico na Igreja dos EUA e, depois, na europeia.
No seu ensaio, é muito interessante a referência à obra David Schindler, professor de Teologia Fundamental no Instituto João Paulo II de Washington e codiretor da revista Communio, que foi crucial na crítica cerrada aos ideólogos teocons, em defesa da linha Balthasar-De Lubac-Ratzinger. Uma obra pouco conhecida na Itália, até por ser pouco traduzida...
De meados dos anos 1980 a meados dos anos 1990, desenvolveu-se nos EUA um dos debates intelectuais mais interessantes do mundo católico. De um lado, temos o trio teocon, com Novak-Neuhaus-Weigel, e, de outro, David Schindler. As revistas Communio e 30 Days são o terreno da disputa. Tudo começa com uma entrevista que o cardeal Ratzinger concedeu a Lucio Brunelli em 1986 para a revista 30 Giorni. Nela, o cardeal estigmatizava o rosto burguês dos EUA de Reagan. Uma acusação que, do ponto de vista da nascente corrente teocon, não podia ser tolerada.
Na sua réplica, Weigel teoriza o rosto “cristão” dos valores estadunidenses e critica a perspectiva de Ratzinger, acusando-a de ceder à posição progressista. Nas suas respostas, Schindler objetaria que o dualismo teológico de Weigel, entre natural e sobrenatural, era diretamente responsável pela consagração do rosto burguês dos EUA. O catocapitalismo era o resultado de um processo de secularização teologicamente justificado. O tomista “agostiniano” Schindler objetava que o tomista “cartesiano” Weigel promovia um dualismo sistemático entre fé e história, de forma que a fé não era mais o fermento na massa, mas apenas o corolário de um mundo que caminhava sobre as próprias pernas e não precisava de nenhum “surplus”. A teologização do capitalismo e dos seus valores individualistas e não solidários, operada pelos neocon era o resultado necessário de uma posição teológica inadequada, que esquecia a novidade cristã na história.
Você sustenta uma tese, que eu me lembro que foi expressada pelo grande Augusto Del Noce pouco antes da sua morte: para João Paulo II e a Igreja, depois da queda do Muro de Berlim, o desafio passava a ser o de uma autêntica teologia da libertação sem marxismo: o caminho que Alberto Methol Ferré indicou e que se tornou o sonho do próprio Bergoglio quando estava em Buenos Aires...
O adversário histórico da Igreja, de 1945 em diante, foi o comunismo. A presença do adversário estimulava a doutrina social e o compromisso dos católicos no campo da justiça e da luta contra a pobreza. Com a queda do comunismo, esse compromisso se reduz, e a Igreja se fecha, se une intimamente a um clericalismo amante da ordem e do poder. Trata-se da “introversão eclesial” da qual Francisco fala muitas vezes. Por um lado, a Igreja se blinda diante do mundo da secularização, percebido como estranho e inimigo, e, por outro, se concentra nas próprias dinâmicas internas, esquecendo-se da missão e do compromisso social.
Por isso, Alberto Methol Ferré, o grande intelectual uruguaio amigo do cardeal Bergoglio, afirmaria em 2006, no seu livro-entrevista com Alver Metalli, “Il Papa e il filosofo”, que, “de certa forma, a ‘evaporação’ da teologia da libertação diminuiu o impulso do conjunto da Igreja latino-americana a assumir com coragem a condição dos pobres. Acho que a Igreja está pagando o preço por ter se libertado muito facilmente da teologia da libertação. A teologia da libertação deveria ter trazido a sua contribuição máxima após a queda do comunismo, e não se apagar com o marxismo. Hoje, é urgente compensar a sua ausência”.
Para Methol Ferrè, como você dizia, era necessária uma teologia da libertação sem marxismo. Os teocon, por outro lado, devem o seu sucesso em grande parte precisamente ao fato de que, na América Latina e no Leste Europeu, eles se tornaram os arautos de uma teologia do capitalismo. Assim, na oposição entre a teologia do capitalismo e a teologia do comunismo, a Igreja esqueceu a doutrina social, a mesma que o papa hoje repropõe e que provoca tanta reação em um mundo católico acostumado há anos a exaltar uma teologia do bem-estar que se esquece dos pobres do mundo.
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O caminho estreito de Francisco: uma teologia da libertação sem marxismo. Entrevista com Massimo Borghesi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU