26 Fevereiro 2021
"Será nosso cuidado, durante o caminho para a redescoberta do saltério, realçar, a cada oportunidade, essa pluralidade de imagens. O Deus parteira do Salmo 22, que acompanhou o nosso Senhor no alvorecer da sua vida, também apoiou e o consolou nos últimos instantes de sua existência", escreve Lidia Maggi, pastora batista italiana, em artigo publicado por Rocca, n. 5, 01-03-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
A Quaresma nos prepara para uma passagem de vida, a Páscoa de Jesus, que reescreve com toda a sua existência a Páscoa de Israel, ou seja, o êxodo, a saída da escravidão para a liberdade. Afinal, é tarefa de cada geração refazer aquela jornada de libertação, para reapropriar-se da liberdade recebida como dom. Mesmo Jesus não se esquiva da necessidade de reviver aquele caminho. Ele o vive com tanta intensidade que faz dele o paradigma fundador para compreender toda a sua existência, a partir da morte vivida como passagem da vida.
A tumba torna-se um ventre que se abre para dar à luz o Ressuscitado, o Primogênito dos mortos, juntamente com todos nós, imersos na sua existência, nós também chamados a experimentar a passagem da morte para a vida. Porque a Páscoa é sobre a liberdade de todos e de todas: a ressurreição de Jesus é também a nossa ressurreição. Mas antes daquela passagem da vida existem as dores, vividas como agonia de morte por Jesus no Getsêmani e depois na cruz.
Em agonia, pregado na cruz, depois de ter sido torturado e sofrer zombarias, Jesus reza com um salmo, uma antiga oração de Israel, que lhe permite encontrar as palavras para dizer o indizível, para dar voz ao seu desespero: um grito que corta tanto o ventre quanto o céu [1]: Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste? Segundo o evangelista Marcos, é justamente com aquele grito que Jesus morre na cruz. E ao ouvi-lo, pareço intuir que, naqueles últimos instantes de desespero, Jesus teve tempo de repercorrer toda aquela antiga oração e com ela toda a sua história.
É possível. Na Bíblia, muitas vezes acontece que as primeiras palavras de um texto são citadas para evocá-lo em sua totalidade.
Ali, na cruz, o homem desesperado assume as palavras do Salmo 22 onde quem ora, para recuperar a confiança quando se sente abandonado por Deus, relembra a história do seu povo: Deus meu, eu clamo de dia, e tu não me ouves; de noite, e não tenho sossego. Porém tu és santo, tu que habitas entre os louvores de Israel. Em ti confiaram nossos pais; confiaram, e tu os livraste. A ti clamaram e escaparam; em ti confiaram, e não foram confundidos.
A lembrança da epopeia do Êxodo, entretanto, não parece suficiente.
Mas eu sou verme, e não homem, opróbrio dos homens e desprezado do povo. Todos os que me veem zombam de mim, estendem os lábios e meneiam a cabeça, dizendo: Confiou no Senhor, que o livre; livre-o, pois nele tem prazer. Aquele que ora deve, pois, buscar forças não só na memória da história coletiva, mas também na da sua vida pessoal: Mas tu és o que me tiraste do ventre; fizeste-me confiar, estando aos seios de minha mãe.
Sobre ti fui lançado desde a mãe; tu és o meu Deus desde o ventre de minha mãe. Não te afastes de mim, pois a angústia está perto, e não há quem me ajude.
E a surpresa é que, no salmo, o Deus capaz de consolar e libertar quem ora é um Deus narrado com imagens masculinas e femininas. Tem os traços de guerreiro disposto a servir de escudo com seu próprio corpo para proteger o oprimido, como aqueles de a parteira que acompanha o parto da parturiente, que guarda a porta da vida para que o nascituro encontre braços seguros e prontos para recebê-lo. Para que a vida não caia por terra, na terra dura, há mãos experientes de uma divina parteira, que acolhem para pousar suavemente sobre o peito materno, para que possa ser alimentado.
Este é o Deus de Jesus e o Deus do salmo, mas também o Deus do Êxodo. Aquela epopeia, da qual fazemos memória parcial falando de Deus apenas com os traços do guerreiro e do legislador, se revela, com uma leitura menos ideológica, interseccionada por uma narrativa que fala de nascimento.
A passagem da escravidão para a liberdade é também uma vinda ao mundo. Um povo emerge do Egito: através da divisão das águas, nasce um filho. E talvez, através da releitura do êxodo que o salmo nos entrega, entendamos melhor o papel central das parteiras na porta de entrada da grande epopeia. Sua presença não constitui um unicum. Muitos salmos, com liberdade plástica, rezam a Deus falando dele com metáforas masculinas e femininas, mas nós, reféns de hábitos eclesiais, não soubemos ler essa riqueza.
Será nosso cuidado, durante o caminho para a redescoberta do saltério, realçar, a cada oportunidade, essa pluralidade de imagens. O Deus parteira do Salmo 22, que acompanhou o nosso Senhor no alvorecer da sua vida, também apoiou e o consolou nos últimos instantes de sua existência.
Jesus morre com um grito que a oração ajuda a transformar em gemido, antecipando, já na cruz, a vida nova, a existência ressuscitada.
[1] No original italiano: "un urlo che squarcia il ventre come il cielo"
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O rosto feminino de Deus. Uma leitura do Salmo 22. Artigo de Lidia Maggi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU