19 Fevereiro 2021
Por que essas duas palavras do título têm metade das letras iguais e algumas estão colocadas no mesmo lugar? Vamos procurar algumas semelhanças.
O artigo é de José I. González Faus, s.j., publicado por Religión Digital, 18-02-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
É sobre o salário de Messi que a mídia falou recentemente. Fato que não deve ser esquecido porque é muito grave e não é exclusividade de Messi. Aplicando uma palavra que vale para o que não nasce bem, poderíamos fazer uma piada de mau gosto e dizer que esse dado é “sete-messino”.
A estrela argentina chega a ganhar cerca de 12 mil euros por hora: o que mal ganhará em um ano milhões de trabalhadores que são mais úteis ao país, porque seu esforço serve para algo mais do que divertir e nos embalar para dormir. E se esses trabalhadores sofrerem um “acidente de trabalho” não serão curados com a mesma facilidade e rapidez que um Ronaldo, um Ansu Fati e mil outros privilegiados: porque, para nós, esses são insubstituíveis e os outros não. Nós curamos isso por nosso próprio interesse, os outros não.
Por isso, seria sectário e confortável fazer de Messi um caso isolado, ou “fazer lenha da árvore caída” agora que ele está começando a declinar: existem muitos outros casos semelhantes, que são apenas o topo de uma imensa pilha de destroços. O problema não é tanto deles (que às vezes são apenas escravos ricos), mas do sistema futebolístico. Aqui, as duas palavras do nosso título começam a se aproximar.
O futebol é um dos melhores esportes inventados (assim como o xadrez entre os jogos sedentários). Outros farão elogios melhores do que eu. Mas é preciso enfatizar até que ponto a perversão do melhor se transforma em verdadeira prostituição, como acontece com o amor.
Primeiro, o dinheiro ajuda a ganhar jogos: todas as ligas são reduzidas a uma competição entre três ou quatro times com o maior orçamento; as outras equipes são quase um mero comparsa para estender o show. Então as vitórias se tornam uma forma de ganhar mais dinheiro. E assim o círculo vicioso se fecha.
Daí nasce a tática da posse de bola como “propriedade privada”, até que surja a oportunidade de marcar. A princípio essa fórmula deu resultados espetaculares, até que todos a aproveitaram e o futebol (o esporte mais atraente e emocionante) se tornou chato e sem emoção. O melhor ataque é uma boa defesa, e a paixão patriótica substitui o esporte. E a coisa parece vir de longe: lembro daquele WM da minha adolescência que a Real Sociedad importou, e do “catenaccio merdoso” que um jogador do Barcelona gritou anos atrás em uma partida da Liga dos Campeões contra um time italiano...
Mas o futebol sem gols é como uma primavera sem flores. E os grandes jogos terminam hoje com vitórias de um a zero ou empates a zero; muitos mata-matas têm que ser decididos com prorrogação ou penalidades, uma solução muito arbitrária que ainda não encontramos uma maneira de substituir. E o mais sério, socialmente falando: a aspiração de toda criança do terceiro ou quarto mundo, não é treinar e aprender, mas ser jogador de futebol: porque é a única coisa que serve para sair da pobreza. Nestes últimos dias em Barcelona, havia mais anúncios das eleições para a presidência do Barça do que das eleições políticas. Como um ultrassom da sociedade, tudo isso é bastante alarmante.
Tudo isso nos leva a crer que o futebol hoje precisa de reformas muito sérias. Imaginemos: os jogos que terminam de zero a zero ficarão sem pontuação para nenhum dos lados. Quando uma vitória é por menos de um gol valerá apenas dois pontos. Somente se for por mais de um gol o vencedor leva os três pontos. No jogo, qualquer passe para trás que cruze a linha do meio-campo (vindo de uma área diferente da própria, portanto) será uma falta. A questão do impedimento teria que ser estudada muito mais. E durante o jogo, apenas os jogadores lesionados podem ser trocados, para evitar que equipes com mais elenco, por terem mais dinheiro, descansem em situações de fadiga.
Além disso, deveria haver um salário máximo, talvez com seguro de x anos para o jogador que se aposentar do futebol, até que encontre outra profissão. As cláusulas de rescisão de contrato deveriam ser abolidas: apenas jogadores “livres” poderiam ser contratados, para evitar aquele roubo se faz aos times fracos assim que um de seus jogadores se destaca. Acrescentemos o desaparecimento do “mercado de inverno” e a redução do número de campeonatos artificiais que estão a ser criados, de forma a evitar tanto a exploração física dos jogadores como a drogadição dos torcedores, que é o que parece se buscar. “Pão e circo!”, é a fórmula que sempre sustentou impérios.
Mas tudo isso que os técnicos sonham. A reforma que me interessa é separar o futebol dessa prostituição do dinheiro, e lhe devolver sua limpeza para que volte a ser um esporte e não um negócio.
Dando agora o que parecerá “um salto no escuro”, gostaria de evocar a famosa expressão de Ignacio Ellacuría: “uma civilização da pobreza como única solução para o nosso mundo”. Compreendendo, como já foi feito, que pobreza não significa necessidade, mas sobriedade compartilhada. Isso também deve se aplicar ao futebol. Do contrário, vamos evocar a alegoria do povo judeu quando, saindo da escravidão e rumo à libertação, acaba frustrando a chegada a esse objetivo. Por quê? Porque, como Moisés é obrigado a admitir, “tornaram-se deuses de ouro” (Ex 32,31).
Volte a sonhar (agora que, por causa do coronavírus, vimos o que significa jogar sem público), vamos imaginar que todos os cristãos e pessoas honestas no mundo, como uma exigência de sua fé ou de sua ética, decidam entrar fazer greve para assistir aos jogos, mesmo que sejam parceiros: uma espécie de “abstinência quaresmal”, menos ridícula do que a proposta pela Igreja. É um sonho, eu sei. Mas não se pode negar que também seria um ponto de apoio como o que Arquimedes pediu para sacudir a terra.
Na Igreja Católica, os grandes revolucionários (que reformaram sem romper) trilharam esse caminho do que foi chamado de “santa pobreza”: Francisco de Assis tira em público todas as roupas luxuosas do negócio de seu pai. Inácio de Loyola segue seu caminho, despindo a roupa de cavalheiro e trocando-a pela de mendigo. Clara de Assis pula o muro de seu palácio para ir morar em uma cabana. Domingo de Gusmão cunha a famosa expressão de “pregar na pobreza”...
E se esses gestos não estão disponíveis para nós ou parecem exorbitantes, prestamos atenção apenas na direção que eles apontam. E nos encontraremos de novo com sobriedade compartilhada e com o grito do evangelho: “ai dos ricos” (mesmo que sejam grandes jogadores de futebol)! A pobreza (ou empobrecimento) é a única fonte de verdadeira solidariedade.
Eu sei que tudo o que está escrito são blasfêmias. Espero poder contar com essa liberdade de opinião que hoje permite a blasfêmia. Mas não tenho muita certeza: porque o problema não está na blasfêmia, mas contra que deus está blasfemando...
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Futebol-Bordel: “Outro futebol é possível”. A propósito do salário de Messi, por uma sobriedade compartilhada - Instituto Humanitas Unisinos - IHU