08 Fevereiro 2021
Žižek volta a ser incisivo. Após o sucesso de seu opúsculo “Pandemia”, o popular filósofo esloveno publica em inglês novas crônicas sobre os meses de covid: Pandemia 2. Crônicas de um tempo perdido, dedicando àqueles “cujas vidas diárias são tão miseráveis que ignoram a covid e a veem como uma ameaça comparativamente menor”. De fato, o livro se inicia parafraseando Shakespeare e diz que algo cheira podre no Ocidente, como comprovam os surtos pandêmicos em centenas de trabalhadores do setor frigorífico na Alemanha ou em catadores de fruta no Tennessee, Estados Unidos.
A reportagem é de Justo Barranco, publicada por La Vanguardia, 30-01-2021. A tradução é do Cepat.
Com sua habitual mistura de marxismo e psicanálise lacaniana, Žižek (Ljubljana, 1949) examina as mudanças experimentadas pela sociedade na pandemia, os anseios de “nova normalidade”, os confinamentos, os negacionistas e as políticas às quais a pandemia poderia nos conduzir. Também transita pelo Black Lives Matter, o politicamente correto e o sistema Neuralink de Elon Musk para conectar nossos cérebros a computadores e se continuaríamos sendo humanos compartilhando consciências com os outros. Abaixo, seguem algumas de suas ideias.
“A atual pandemia se tornou cada vez mais um conflito de visões globais sobre a sociedade. No início, parecia que certo tipo de solidariedade básica, com a ênfase em ajudar os mais ameaçados, prevalecia, mas essa solidariedade deu lugar, como disse John Authers, a “uma amarga batalha faccional e cultural na qual princípios morais rivais assobiam como granadas metafísicas (...) Os Estados Unidos quase se dividiram em duas nações (...)”.
“Somos libertários que rejeitam qualquer coisa que limite nossas liberdades individuais? Utilitaristas prestes a sacrificar milhões de vidas pelo bem-estar econômico da maioria? Espiritualistas New Age que acreditam que a pandemia é um aviso da natureza, um castigo por nossa exploração dos recursos naturais? Acreditamos que Deus está nos provando e que, ao final, nos ajudará a encontrar uma saída? Todas essas ideias se assentam em uma visão específica do que são os seres humanos. Por isso, para enfrentar a crise, primeiro, todos devemos nos tornar filósofos”.
“O verdadeiro problema da pandemia não é o isolamento social, mas a excessiva dependência de outros, de laços sociais. Podemos ser mais dependentes do que em uma quarentena? A crise viral nos tornou totalmente conscientes do que David Harvey chama de a nova classe trabalhadora: cuidadores em todas as suas formas, das enfermeiras aos que entregam refeições e pacotes, que esvaziam nossas lixeiras. Para nós que pudemos nos fechar, estes trabalhadores se tornaram a principal forma de contato com outros, em sua forma corporal”.
“Contra o lema barato de que todos estamos no mesmo barco, na pandemia as divisões de classe explodiram (...) Somos bombardeados pelas celebrações sentimentais de enfermeiras na linha de frente na luta contra o vírus. Mas as enfermeiras são apenas a parte mais visível de toda uma classe de cuidadores visibilizada pela pandemia”.
“O laço entre a pandemia e nossos problemas ecológicos é cada vez mais claro. Podemos alcançar o controle da covid, mas o aquecimento global exigirá medidas muito mais radicais. Greta Thunberg acertava ao destacar que “a crise climática e ecológica não pode ser revolvida com os atuais sistemas político e econômico”.
“A pandemia afetou a economia. Por um lado, forçou as autoridades a ações que quase apontam para o comunismo: uma forma de renda básica universal, saúde para todos. Mas é só um lado da moeda. Paralelamente, há grandes corporações acumulando riqueza e sendo resgatadas pelos Estados. Os contornos do coronacapitalismo emergem e com eles novas formas de luta de classes (...) O que mais precisamos é de uma nova ordem econômica que nos permita evitar a debilitante escolha entre o revigoramento econômico e salvar vidas”.
“Frequentemente, lemos como ficou difícil realizar o luto pelos que morrem, conhecidos e desconhecidos, quando os funerais habituais não são possíveis. Mas não há outro luto mais básico que permeia o nosso espaço social? Choramos o fim abrupto de toda uma forma de vida (...) O problema é que não podemos organizar as coordenadas de nossos desejos, precisamos reinventá-los”.
“Que economia não pode sustentar as necessárias medidas sanitárias? O capitalismo global que pede permanente autoexpansão, obcecado com taxas de crescimento e lucro. Como explica Marinov, ‘o instinto de não ferir a economia nos trouxe uma economia arruinada e um vírus que se expandiu por todas as partes e será muito difícil erradicá-lo’”.
“Acredito que algo como uma nova forma de comunismo deverá emergir, caso queiramos sobreviver (...) O capitalismo global não pode conter esta crise porque em seu centro o capitalismo é sacrificial, em vez de consumir o lucro imediatamente, deve reinvesti-lo, a satisfação completa dever ser adiada (...)”.
“Com a pandemia, nos é solicitado que sacrifiquemos nossas vidas para que a economia continue, como o pedido de alguns trumpistas de que os maiores de 60 anos aceitem a morte para salvar o modo de vida capitalista (...) Pode o capitalismo sobreviver a esta guinada na vida diária, na qual estamos muito mais expostos à morte? Não acredito. Mina a lógica de adiar o gozo que lhe permite funcionar”.
“Não estamos destruindo a natureza, apenas cocriando uma nova na qual não haverá lugar para nós. Não é esta pandemia um exemplo de nova e sinistra natureza? Não deveríamos nos preocupar muito com a sobrevivência da natureza, sobreviverá, só que transformada para além de nosso reconhecimento (...) Uma nova ética global é necessária”.
“Os protestos antirracistas falham ao estar dominados pela paixão politicamente correta de apagar os rastros de racismo e sexismo, paixão que se aproxima muito de seu oposto, o controle do pensamento neoconservador (...) O que restará, se descartarmos todos os autores nos quais encontrarmos traços de racismo e antifeminismo?”
“Todos os grandes filósofos e escritores desaparecerão (...) Descartes é visto amplamente como o iniciador filosófico da hegemonia ocidental, que é imanentemente racista e sexista. Mas não devemos esquecer que a posição de Descartes de dúvida universal é justamente uma experiência multicultural de como a própria tradição não é melhor que as tradições que nos parecem excêntricas. Para um filósofo cartesiano, as raízes étnicas e a identidade nacional simplesmente não são uma categoria de verdade (...) não há feminismo moderno, nem antirracismo sem o pensamento cartesiano. Apesar de seus ocasionais lapsos racistas e sexistas, merece ser celebrado”.
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Slavoj Žižek: “Uma nova ética global é necessária” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU