05 Janeiro 2021
A constituição pastoral Gaudium et spes sobre a Igreja no mundo atual, do Concílio Vaticano II, afirma que o reconhecimento de Deus absolutamente não se opõe à dignidade do homem e da mulher, uma vez que essa dignidade se fundamenta e se completa precisamente em Deus (n. 21). No mistério da humanização de Deus em Jesus, o mistério do ser humano também encontra uma verdadeira luz (n. 22), e quem quer que siga a Cristo, Homem perfeito, cresce em humanidade (n. 41).
O comentário é de Andrea Lebra, publicado em Settimana News, 04-01-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“Fiorire. Il contributo della religione in un mondo globalizzato” [Florescer. A contribuição da religião em um mundo globalizado] é um livro recém-publicado pela editora Queriniana, da Bréscia, que me parece um belo comentário sobre as passagens citadas da Gaudium et spes. Seu autor é Miroslav Volf, teólogo contemporâneo de origem croata pouco conhecido na Itália: das 30 publicações a seu crédito, “Fiorire” é, até hoje, a única traduzida para o italiano.
Discípulo de Jürgen Moltmann (um dos grandes teólogos da segunda metade do século XX), professor de teologia sistemática na Universidade de Yale (Connecticut, EUA), onde também dirige o Yale Center for Faith and Culture, Miroslav Volf colaborou, como representante da Igreja Episcopal dos Estados Unidos e da Igreja Evangélica Croata, com o diálogo ecumênico internacional e, em particular, com o Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos.
Como dá entender o subtítulo – “A contribuição da religião em um mundo globalizado” –, Miroslav Volf parte do pressuposto de que aquelas que foram definidas, talvez de um modo não totalmente adequado, como as “religiões do mundo” ou “religiões secundárias” – como o judaísmo, o cristianismo, o Islã, o budismo e o hinduísmo – fazem parte hoje da globalização e de que essa globalização faz parte das dinâmicas das religiões.
O objetivo do livro – dedicado à esposa Jessica Dwelle (p. 240) – é o de lançar luz sobre o modo como as religiões do mundo e a globalização interagiram ao longo dos séculos e de sugerir qual deveria ser a sua relação no futuro (p. 12). De fato, longe de serem um “desastre para a humanidade” (p. 7) ou “uma doença que precisa de tratamento” (p. 36), as religiões são portadoras de pontos de vista que podem fazer o humano florescer e interagir de forma construtiva com a globalização. O centro nevrálgico de uma religião, de fato, “pode ser constituído pelos corações dos indivíduos, mas a sua esfera de influência é o mundo inteiro” (p. 80).
Expressa em termos cristãos e evangélicos, a ideia fundamental que o livro quer transmitir está contida nas palavras que Jesus, enfraquecido depois de 40 dias de jejum no deserto, utilizou para se defender do Tentador: “Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus” (Mt 4,4).
Quando – como a globalização pretende fazer hoje – se quer viver só de pão, nunca há pão suficiente para todos. Não há o suficiente, sequer quando se produz tanto a ponto de ter que jogar fora uma parte. Quando se vive só de pão, sempre há alguém que passa fome. “Quando se vive só de pão, cada mordida que damos nele deixa um retrogosto amargo e, quanto mais comemos, mais o gosto fica azedo”.
Em suma, “vivendo de realidades terrenas, e só por elas, permanecemos inquietos, e tal inquietação contribui, por sua vez, com a competitividade, a injustiça social e a destruição do ambiente, além de ser um obstáculo fundamental às práticas pessoais e a estruturas sociais mais justas, generosas e amorosas” (pp. 33-34).
Portanto, não se trata de uma monografia acadêmica do professor de teologia sistemática Miroslav Volf, mas sim de um ensaio programático que questiona a economia, a política, os hábitos culturais e a ética social. Não por acaso, o conteúdo nasceu no contexto de um curso sobre “Fé e globalização”, proferido entre 2008 e 2010 na Universidade de Yale com o ex-primeiro-ministro inglês Tony Blair, após a tragédia ocorrida no dia 11 de setembro de 2001 em Nova York e o Fórum Econômico Mundial que, em 2008 em Dubai, estabeleceu o caminho a se seguir para enfrentar aquela que foi definida como “a pior crise financeira da história global, incluindo a grande depressão” (p. 222).
“Florescer” é um verbo que não apenas dá o título ao livro, mas também retorna várias vezes nas suas mais de 300 páginas (incluindo as 68 com as 470 notas). O autor explica o seu significado em várias ocasiões.
“Florescer em humanidade” significa viver bem a vida de modo que a vida corra bem e que, na vida, se esteja bem.
São três, portanto, os componentes de uma vida florescente, isto é, de uma vida boa que vale a pena ser vivida: vida que é bem vivida (no ensinamento de Jesus, amar a Deus e ao próximo), vida que vai bem (na prática de Jesus, curar os doentes e dar de comer aos famintos), vida que leva a estar bem (ao acolher a mensagem de Jesus, a alegria). Florescer significa essencialmente alcançar a nossa plenitude humana e pessoal (p. 5).
Os testemunhos e os exemplos de vida boa “são o dom mais importante que as religiões podem oferecer ao mundo” (p. 92). A noção de vida humana florescente, de fato, é compartilhada por todas as religiões do mundo. Para elas, florescer em humanidade significa satisfazer os desejos naturais e primários de saúde, prosperidade, fertilidade e longevidade em um horizonte de transcendência que molda o nosso modo de nos relacionarmos com o mundo e com nós mesmos (p. 24).
Os bens materiais, embora necessários e agradáveis, determinam um autêntico florescimento humano quando são colocados em um contexto espiritual mais amplo de abertura do espírito humano ao amor a Deus e ao próximo de perto e de longe (é o caso das religiões abraâmicas) ou à compaixão por todos os seres vivos (é o caso do budismo).
Assim entendido, o florescer permite que os homens e as mulheres encontrem a felicidade, contenham a avidez e o consumismo, abrandem a degradação ambiental, fortaleçam a solidariedade global, eliminem as causas dos conflitos sociais, atuem com eficácia por um mundo mais justo e mais respeitoso da dignidade de cada ser humano (p. 194).
Um brevíssimo prefácio (pp. 5-8) explicita o sentido do verbo “florescer” aplicado à vida humana. Segue-se uma “nota do autor”, na qual se explica por que, entre o termo “fé” e o termo “religião”, preferiu-se utilizar este último no subtítulo do livro.
Uma volumosa introdução (pp. 11-38) antecipa, em grandes linhas, o caminho que Volf, como teólogo cristão que gosta de dialogar com as outras religiões, pretende propor e que se expressa eficazmente nesta síntese: “Considero que a relação de Deus com os humanos, assim como a relação dos seres humanos com Deus, é a condição que torna possível a vida humana e o florescimento humano em todas as suas dimensões. Acredito que a fé e a política são dois sistemas culturais distintos, mas que uma fé autêntica está sempre engajada, atuando para aliviar os sofrimentos pessoais, assim como para lutar contra a injustiça social, a violência política e a degradação ambiental” (p. 20).
Os cinco capítulos estão distribuídos em duas partes (pp. 41-220).
Na primeira parte, são enfocadas as relações existentes entre a globalização e as religiões do mundo, enquanto, na segunda parte, o autor se detém sobre os passos a serem dados para que o judaísmo, o cristianismo, o Islã, o budismo e o hinduísmo sejam efetivamente capazes de contribuir para fazer com que a globalização não nos roube a nossa humanidade e para que todos nós, cristãos e não cristãos, possamos viver sob o mesmo teto global comum, apesar da “nossa diversidade litigiosa” (p. 30) e dos nossos ásperos contrastes (p.184).
No sintético epílogo (pp. 221-233), são indicadas as duas formas de niilismo que estão obcecando o mundo e que devem ser expostas e combatidas: o niilismo passivo das grandes religiões, quando, na versão fundamentalista, provocam destruição e morte, e o niilismo ativo dos espíritos livres, que negam a existência de valores inscritos no tecido da realidade e que, tendo cancelado o horizonte da transcendência, se sentem “agravados pelo fardo esmagador de uma existência intoleravelmente leve” (p. 226), “enjaulada” e “vazia” (p. 98).
Na primeira parte do livro (capítulos 1 e 2), Volf convida a não demonizar e a não sacralizar a forma atual de globalização. Pelo contrário, ela deve ser governada com base na sua capacidade ou não de contribuir – com o aporte das religiões do mundo – para o florescimento humano autêntico em relação às individualidades singulares, às relações sociais e ao bem comum.
Ao contrário do que acreditam os defensores da secularização, a globalização não fez as religiões desaparecerem. Pelo contrário, sob as suas condições, “as religiões experimentam um renascimento nas suas dimensões privadas e públicas” (p. 64). Para o bem ou para o mal, elas estão vivas e bem (p. 74).
Segundo Volf, não poderia ser de outra forma, já que o ser humano, na sua estrutura íntima e antes ainda que a vontade entre em jogo, está intimamente orientado para Deus (p. 25), e “a referência à transcendência não é um adendo à humanidade: antes, define os seres humanos” (p. 98).
Bilhões de indivíduos não apenas não se beneficiaram com a globalização, mas, por causa dela, sofreram: a religião lhes oferece motivos de resiliência para não se resignarem ao status quo.
O rápido ritmo de mudança típico da globalização leva muitas pessoas a viverem uma vida desordenada e turbulenta: a religião lhes oferece motivos de orientação e de estabilidade.
Algumas pessoas ficam estupefatas com as possibilidades e com as seduções do consumismo e do lazer alimentadas pela globalização: a religião direciona e disciplina os seus desejos para que possam cuidar de si mesmas e dos outros.
Muitos são vítimas de graves injustiças provocadas pela globalização, guiada pela lógica do livre mercado: a religião lhes oferece motivos para lutar contra a injustiça e lhes assegura que esta não terá a última palavra. Alguns experimentam a erosão das culturas locais por obra da globalização: a religião, respeitando todas as culturas, lhes oferece um senso de identidade comunitária (p. 100).
Na segunda parte (capítulos 3 a 5), Volf explora como as religiões do mundo, embora tenham sido ao longo da história – e ainda o sejam hoje em alguns contextos – agentes de divisão e de conflito, possuem recursos internos para viver em paz umas com as outras e com as pessoas não religiosas, mesmo que apoiando vigorosamente a própria visão do florescimento humano.
Para moldar a globalização em vista do bem comum global, as religiões em particular devem aprender a advogar visões universalistas, sem fomentar a violência, evitando também – como acontece por exemplo com algumas formas modernas de budismo e de cristianismo – abraçar “um relativismo fácil” que privilegia formas de “espiritualidade curativas e energizantes, em vez de expressões concretas da vida boa” (p. 119).
Detendo-se na relação entre exclusivismo religioso e pluralismo político a partir do cristianismo, Volf chega a afirmar – embora ciente da existência de opiniões diversas sobre o assunto – que uma fé religiosa caracterizada por convicções sólidas e meditadas (“exclusivismo religioso”) também é conciliável e compatível com o pluralismo cultural e político. Tal fé, de fato, é capaz de inspirar e de alimentar uma mudança cultural e política que não se limite apenas a agir efetivamente para fazer florescer a vida boa e a cultivar um senso de solidariedade global, mas que também seja capaz de agir pela reconciliação, pela convivência pacífica, pelo perdão, pelo banimento de todas as formas de violência (p. 183). É dessa fé que o mundo globalizado também precisa corrigir as suas distorções.
O original em inglês de “Fiorire” remonta a 2014. Se tivesse sido escrito hoje, Miroslav Volf provavelmente teria mencionado o conteúdo da encíclica Fratelli tutti, do Papa Francisco, subscrevendo totalmente, por exemplo, o parágrafo 274, que me parece decididamente em sintonia com o seu pensamento:
“A partir da nossa experiência de fé e da sabedoria que se vem acumulando ao longo dos séculos e aprendendo também das nossas inúmeras fraquezas e quedas, como crentes das diversas religiões sabemos que tornar Deus presente é um bem para as nossas sociedades. Buscar a Deus com coração sincero, desde que não o ofusquemos com os nossos interesses ideológicos ou instrumentais, ajuda a reconhecer-nos como companheiros de estrada, verdadeiramente irmãos. Julgamos que, quando se pretende, em nome de uma ideologia, expulsar Deus da sociedade, acaba-se adorando ídolos, e bem depressa o próprio homem se sente perdido, a sua dignidade é espezinhada, os seus direitos violados. Conheceis bem a brutalidade a que pode conduzir a privação da liberdade de consciência e da liberdade religiosa, e como desta ferida se gera uma humanidade radicalmente empobrecida, porque fica privada de esperança e de ideais.”
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A religião em um mundo globalizado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU