26 Novembro 2020
"O que está em jogo, na verdade, é a possibilidade de resgatar ou não processos universais, como antídoto para a fragmentação da modernidade", escreve Flavio Lazzarin, padre italiano Fidei donum, formado em Teologia pelo Seminário Vescovile di Mantova, e em História pela Universitá Statale di Milano, ambas instituições da Itália, que hoje atua na Diocese de Coroatá, no estado do Maranhão e que também é agente da Comissão Pastoral da Terra - CPT, em artigo publicado por Settimana News, 25-11-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Segundo ele, "Podemos cultivar uma saudade saudável por Paulo de Tarso, que inaugurou um processo universal de igualdade e fraternidade, como alternativa ao totalitarismo imperial e à ditadura do direito romano. A Europa e a América Latina são testemunhas do aparente fracasso histórico do universalismo cristão, mas, apesar das inúmeras inimizades e guerras entre os cristãos e da identificação histórica do Cristianismo com o Ocidente, essa fé continua a alimentar o caminho do Reino: “Não há mais judeu nem grego; não há mais servo nem livre; não há homem nem mulher, porque todos vós sois um em Cristo Jesus” (Gl 3,28)".
Tenho algumas memórias que ressurgem da minha história de estrangeiro no Brasil. São fatos desagradáveis de cerca de trinta anos atrás que eu então podia atribuir à minha inexperiência no difícil e nunca concluído processo de aculturação, mas que, mais recentemente, revelaram outras características e sugeriram uma interpretação diferente.
Num debate sobre como interpretar verdadeiramente um caso de violência agrária, minha leitura foi rejeitada não com argumentos, mas com a constatação de que, por ser italiano, não entendia bem as coisas e não tinha o direito de interferir. Os interlocutores estavam em parte condicionados pelo fato de serem nativos, “filhos da terra”: é o que se diz por aqui, em parte alinhados com as diretrizes do partido.
Algo semelhante aconteceu em uma paróquia onde eu acompanhava uma luta vitoriosa dos pequenos agricultores contra os latifundiários. Uma vez que a terra foi conquistada, era necessário fazer um censo de quem tinha o direito de habitá-la e cultivá-la. O fato é que muitos, que não eram agricultores, quiseram aproveitar a oportunidade. Contestei essa absurda e inaceitável pretensão em assembleias e reuniões, obviamente recebendo advertências e intimidações daqueles que se sentiram atacados.
O mais grave, porém, foi a posição de um sindicalista que me disse: “Dá para ver, padre, que você não é daqui, por isso não pode entender”. Resumindo: artifícios retóricos inaceitáveis para desvalorizar os argumentos e desacreditar a pessoa.
Do passado, ressurgem essas duas formas de argumentum ad hominem, as quais, no entanto, têm a capacidade de iluminar fenômenos estatisticamente relevantes dos eventos atuais. Na verdade, no dia a dia, assistimos à disseminação planetária das chamadas tribalizações, nas quais as identidades coletivas tornam-se mundos autorreferenciais, separados e agressivos.
Hoje, por exemplo, pode acontecer com certa frequência sermos silenciados por tribos que estão presentes nos arquipélagos do gênero, da etnia, da religião e da política, que, infelizmente, se espelham - às vezes com o álibi do politicamente correto - na metodologia dos exclusivismos elitistas, racistas e assassinos da elite branca e colonizadora, comunicando a você explicitamente ou pelas entrelinhas que sua palavra é estrangeira, irrelevante e inoportuna nesses mundos definidos por identidades tribais.
Tudo isso não pertence ao capítulo da ética das relações interpessoais. Não estou recriminando e reclamando de inconveniências ou deficiências deselegantes de tato. O que está em jogo, na verdade, é a possibilidade de resgatar ou não processos universais, como antídoto para a fragmentação da modernidade.
Podemos assim cultivar uma saudade saudável por Paulo de Tarso, que inaugurou um processo universal de igualdade e fraternidade, como alternativa ao totalitarismo imperial e à ditadura do direito romano. A Europa e a América Latina são testemunhas do aparente fracasso histórico do universalismo cristão, mas, apesar das inúmeras inimizades e guerras entre os cristãos e da identificação histórica do Cristianismo com o Ocidente, essa fé continua a alimentar o caminho do Reino: “Não há mais judeu nem grego; não há mais servo nem livre; não há homem nem mulher, porque todos vós sois um em Cristo Jesus” (Gl 3,28).
Em Jesus de Nazaré, crucificado e ressuscitado, as autorreferências tribais e a multiplicação de inimizades a partir da diversidade não têm nenhum sentido. E o Pentecostes, com a comunhão de diferentes povos e línguas, que se entendem e se acolhem, é a única alternativa à Torre de Babel do pensamento único e da cultura única.
Posso escapar da minha autorreferencialidade católica e, macroecumenicamente, citar a perspectiva universalista de Davi Kopenava Yanomami, que em sua vida e em seu livro A Queda do Céu não se preocupava apenas com seu povo e sua terra, mas com todos os seres humanos e com a Terra.
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Memórias de um missionário. Artigo de Flavio Lazzarin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU