05 Novembro 2020
“Os Democratas já tiveram quatro anos para ponderar sobre suas derrotas – agora eles devem ter mais oito”, escreve Mark Lilla, cientista político estadunidense, professor da Universidade de Columbia, em artigo publicado por UnHerd, 04-11-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Há exatos quatro anos, após a impressionante vitória eleitoral de Donald Trump, publiquei um artigo que causou confusão. Intitulado “O fim do liberalismo identitário”, foi escrito aparentando raiva. Como tantos americanos, me senti traído por um Partido Democrata que não apenas falhou em conquistar a Casa Branca para fazer avançar sua agenda. Também falhou em proteger os Estados Unidos e o mundo de uma ameaça humana. Mal imaginei como as coisas piorariam.
Um fator significativo na derrota dos Democratas, argumentei, foi um estilo de política que os impediu de desenvolver uma visão ambiciosa do futuro dos Estados Unidos da América – uma visão que fosse capaz de inspirar pessoas de todas as esferas da vida. Na verdade, parecia que, desde os anos 1980, os liberais estadunidenses haviam saído completamente da visão de negócios. Eles redirecionaram suas energias da política partidária para a política do movimento, focalizando a atenção em particular nos movimentos de identidade de gênero e minorias.
Embora essa mudança fosse moralmente compreensível, tornou mais difícil para os liberais falar do bem comum entre os grupos. Também arraigou o hábito de esquecer grandes constituintes que não se encaixavam na narrativa identitária da esquerda-liberal, como brancos da classe trabalhadora e evangélicos – o último grupo constituindo cerca de um quarto da população adulta. Se você vai mencionar grupos nos EUA, é melhor mencionar todos eles. Caso contrário, você dará a oportunidade ao seu oponente, como Donald Trump fez com grande sucesso.
Esse pensamento de movimento político provou ser um suicídio eleitoral. Da década de 1980 em diante testemunhamos uma transferência massiva do poder político, em amplas partes do país, dos Democratas para uma intensificada radicalidade do Partido Republicano. A mais perversa consequência foi que os Democratas cederam mais que nunca terreno geográfico para os Republicanos, particularmente em estados e governos locais nos quais perderam a capacidade de proteger muitos grupos identitários que eles professavam se preocupar – em particular, seus eleitores. Mais da metade de todos os afro-americanos, por exemplo, vivem no profundo sul vermelho.
Mesmo assim, os Democratas resistiram às lições óbvias a serem extraídas desses desenvolvimentos: você não pode ajudar ninguém se não detém o poder institucional. E você não pode adquirir esse poder sem uma visão que transcende os apegos do grupo, sem negá-los.
Os Democratas tiveram quatro anos para ponderar sobre a derrota que os EUA colocaram sobre eles. Agora que as esperanças de uma avalanche Democrata foram frustradas e a derrota está dentro do reino das possibilidades, a questão que permanece é se eles tiraram as lições certas de seu desempenho eleitoral. Os sinais estão decididamente confusos.
A boa notícia é que os políticos Democratas, funcionários do partido e, mais importante, doadores concentraram suas energias em abordar o bem comum e capturar o centro político. Eles viram que nas eleições de 2018 os assentos conquistados pelo partido foram conquistados principalmente por candidatos centristas que se concentraram na construção de uma base suburbana, principalmente entre mulheres brancas.
Eles também perceberam que, embora os grupos minoritários constituam uma parte importante da base, muitos de seus membros são culturalmente conservadores. Os afro-americanos, principalmente os mais velhos, são mais propensos a ter reservas sobre o movimento LGBT. Uma parte significativa dos latinos se opõe ao aborto devido à sua fé católica e tem opiniões mais convencionais sobre o casamento e os papéis de gênero.
Isso parece ter sido registrado, porque nas últimas eleições os candidatos Democratas geralmente evitaram temas culturais e de identidade (além da reforma policial), apesar dos esforços dos Republicanos e da Fox News para provocá-los. Joe Biden e Kamala Harris realizaram uma campanha bastante antiquada baseada em política, competência e decência básica, e claramente não retratou o Partido Democrata como uma “coalizão arco-íris” de grupos distintos. Isso é um bom presságio para o futuro.
A má notícia é que a esquerda cultural está ainda mais focada em identidades do que estava em 2016. Em parte, isso se deve à experiência com o governo Trump. O que nós gentilmente chamamos de “populismo” tem degenerado a “direita da direita” em uma força de brancos com pouca educação com sua própria agenda identitária. Essa é uma tentativa de combater o fogo com fogo.
Entretanto, depois do último verão, outros eventos revelaram justamente quão grande é o abismo entre a ambição e as táticas políticas dos Democratas e a esquerda cultural. Aqui eu estou pensando nas elites, cuja base de poder está nas universidades, na mídia, Hollywood, indústrias de publicidade e propaganda, mundo da arte e instituições filantrópicas. Isso também inclui jovens ativistas cuja noção de engajamento político é baseada em identidades, confronto e conduzida pelas redes sociais.
Essa esquerda cultural está por trás do chamado “Grande Despertar” na corrida dos últimos cinco anos ou mais. Não falo aqui de políticas econômicas e sociais destinadas a melhorar a condição dos afro-americanos, o que é um dever histórico. Nem de proteções legais para gays, lésbicas e pessoas trans. Refiro-me ao foco em símbolos e gestos destinados a mostrar a conformidade de alguém com uma opinião esclarecida sobre tais assuntos.
Considerando as consequências das primeiras manifestações impressionantes após o assassinato de George Floyd em maio. Houve protestos massivos e pacíficos em cidades e pequenas vilas por todo os EUA (e pelo mundo). Mas muito rapidamente a situação degenerou em conflitos por causa de símbolos. Incontáveis instituições culturais se sentiram compelidas a fazer declarações sobre justiça racial, e alguns de seus diretores renunciaram após fazer atos de contrição.
Muitas empresas seguiram o exemplo e anunciaram a exigência de que os funcionários participassem de sessões de treinamento “antirracistas”, administradas por “consultores” autodeclarados bem pagos. Multidões do Twitter atacaram pessoas que acreditavam ter opiniões impuras. Editores foram demitidos por publicar artigos polêmicos, até mesmo um pesquisador foi demitido por divulgar estudo acadêmico sobre atitudes raciais. O que começou como um verão de solidariedade cívica terminou com disputas sobre a “cultura do cancelamento”, que em nada contribuíram para melhorar a vida dos afro-americanos não pertencentes à elite.
A principal força por trás desse caminho errado foi a mídia liberal, que caiu em maus hábitos durante a presidência de Trump. Sentindo que não haviam sido duros o suficiente com Trump na eleição de 2016, os repórteres se acostumaram a acusar as “mentiras”, que eram muitas. Mas a distinção entre mentiras demonstráveis e diferenças de opinião se perdeu no processo. O padrão de imparcialidade jornalística está sendo descartado em nome de uma indefinida “clareza moral”.
No centro desses esforços está a pressão editorial sobre os repórteres para enfatizar a dimensão racial das histórias e desempenhar um papel ativo na reescrita da narrativa nacional. Por exemplo, em 2019, o New York Times lançou “The 1619 Project” para marcar a data em que os escravos africanos chegaram pela primeira vez aos Estados Unidos. O que começou como uma ideia instigante logo se tornou um esforço tendencioso para fazer do crime de escravidão a verdadeira fundação da república. Os historiadores reclamaram das imprecisões e o Times silenciosamente as corrigiu, enquanto ainda apoiava o editor do projeto, que ganhou o Prêmio Pulitzer. Os jovens repórteres ficaram com a impressão de que tais esforços ainda os ajudarão a progredir em suas carreiras.
Embora a campanha de Biden não estivesse totalmente distraída por esses psicodramas, seria um erro os líderes Democratas fingirem que esses não existiam. Os meios de comunicação da direita continuarão a guerra cultural sobre símbolos diante do público, o que unicamente ajudará o Partido Republicano. Isso significa que os políticos Democratas precisam explicitar a distância deles da ideológica retórica “antirracista” e do teatro político, tal como os esforços para derrubar as estátuas dos presidentes estadunidenses. E eles devem resistir aos esforços para distorcer a história americana em nossas escolas.
Os eleitores Democratas preocupam-se com a justiça racial, mas eles estão focados no presente e no futuro, não em litigar o passado. Eles também acreditam no jogo limpo, diálogo aberto, e legitimam as diferentes opiniões. Eles querem construir os EUA, não indiciar os EUA. Os líderes Democratas devem fazer disso um límpido cristal que eles sintam da mesma forma. Não importa qual o resultado final das eleições deste ano, eles desesperadamente necessitam limpar a casa, se esperam construir uma durável maioria Democrata.
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Quando meus colegas liberais aprenderão? Artigo de Mark Lilla - Instituto Humanitas Unisinos - IHU