04 Novembro 2020
"É errado dizer que a Nota desmente o papa. Só pode dizer isso quem não entendeu nem uma nem a outra. Em vez disso, a Nota reconstrói corretamente os fatos, mas propõe uma sua interpretação menor, baixa, quase distraída. Transforme um brilhante improviso em uma marchinha enfadonha. O que serve para acalmar os ânimos, mas não ajuda a entender realmente o que está acontecendo: ou seja, um evento de tradução da tradição, afetiva, matrimonial e institucional. Como sempre aconteceu ao longo da história da Igreja", escreve Andrea Grillo, teólogo italiano e professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado por Come Se Non, 03-11-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
A "nota" emitida pela Secretaria de Estado a todos os Núncios, na íntegra, diz o seguinte:
"Algumas declarações, contidas no documentário "Francisco" do diretor Evgeny Afineevsky, suscitaram, nos últimos dias, várias reações e interpretações. São então aqui oferecidos alguns elementos úteis, com o propósito de favorecer uma compreensão adequada das palavras do Santo Padre.
Há mais de um ano, durante uma entrevista, o Papa Francisco respondeu a duas perguntas diferentes em dois momentos distintos que, no referido documentário, foram editadas e publicadas em uma única resposta sem a devida contextualização, o que gerou confusão. O Santo Padre fez primeiro uma referência pastoral sobre a necessidade de que, dentro da família, o filho ou filha com orientação homossexual, não deveriam ser discriminados. As palavras referem-se a eles: “As pessoas homossexuais têm o direito de pertencer a uma família. Eles são filhos de Deus e têm direito a uma família. Ninguém deveria ser expulso ou ficar infeliz por isso”.
O parágrafo seguinte da Exortação Apostólica Pós-Sinodal sobre o amor na família Amoris Laetitia (2016) pode esclarecer tais expressões: “Com os Padres sinodais, examinei a situação das famílias que vivem a experiência de ter no seu seio pessoas com tendência homossexual, experiência não fácil nem para os pais nem para os filhos. Por isso desejo, antes de mais nada, reafirmar que cada pessoa, independentemente da própria orientação sexual, deve ser respeitada na sua dignidade e acolhida com respeito, procurando evitar ‘qualquer sinal de discriminação injusta’ e particularmente toda a forma de agressão e violência. Às famílias, por sua vez, deve-se assegurar um respeitoso acompanhamento, para que quantos manifestam a tendência homossexual possam dispor dos auxílios necessários para compreender e realizar plenamente a vontade de Deus na sua vida” (n. 250).
Uma pergunta posterior na entrevista era inerente a uma lei local de dez anos atrás na Argentina sobre "casamentos iguais para casais do mesmo sexo" e a oposição do então arcebispo de Buenos Aires a respeito. A tal respeito, o Papa Francisco afirmou que “é uma incongruência falar de casamento homossexual”, acrescentando que, no mesmo contexto, havia falado do direito dessas pessoas de terem algum amparo legal: “O que devemos criar é uma lei sobre as uniões civis. Dessa forma, são amparados legalmente. Eu lutei por isso”.
O Santo Padre se expressou da seguinte forma durante uma entrevista em 2014: “O matrimônio é entre um homem e uma mulher. Os estados laicos querem justificar as uniões civis para regular diferentes situações de convivência, motivados pelo pedido de regulamentação dos aspectos econômicos entre as pessoas, como, por exemplo, a garantia de assistência à saúde. Trata-se de pactos de coexistência de diferente natureza, dos quais não saberia enumerar as várias formas. É preciso ver os distintos casos e avaliá-los em sua variedade”.
Portanto, é evidente que o Papa Francisco se referiu a determinadas disposições do Estado, certamente não à doutrina da Igreja, reafirmada várias vezes ao longo dos anos."
Evidentemente, trata-se de uma honesta reconstrução do evento e dos possíveis mal-entendidos que causou. Há, no entanto, uma série de anotações que precisam ser feitas, para "esclarecer o esclarecimento", caso contrário se corre o risco de alimentar mais mal-entendidos. Resumo minhas observações em alguns pontos:
a) A Secretaria de Estado escreve aos Núncios. Quer dizer, aos embaixadores da Cidade do Vaticano nos vários Estados. Para que sejam informados sobre alguns fatos. Mas o problema da "doutrina sobre sexualidade e casamento" não diz respeito a um "estado", mas a uma Igreja que de forma alguma se identifica com um estado. Por isso as palavras de Francisco soam "confusas" e "a serem esclarecidas" aos ouvidos dos núncios. Parecem as palavras de um "chefe de estado" que não fala de "sua própria lei", mas antes se pronuncia sobre as "leis" dos "estados estrangeiros", julgando-as oportunas.
b) A confusão está toda aqui: isto é, aquela confusão que deriva do entendimento do papa como um chefe de Estado que não se atém a seu cargo, que não se limita à diplomacia estatal. Quando um papa pode falar "favoravelmente" de leis que diferem da "doutrina da Igreja"? Se o que está doutrinariamente desordenado é tutelado e garantido, o que acontece?
c) O que escapa à "lógica estatal" da intervenção é que a doutrina da Igreja sobre o casamento não é "autossuficiente". E não o é por tradição. De fato, ela necessariamente "se projeta" para o lado de cá e para o de lá da Igreja, sobre a natureza e sobre a cidade, que nunca foram algo completamente previsível ou controlável.
d) A ilusão de que a Igreja tenha uma "sua" doutrina matrimonial, inoxidável e independente, é um típico "lugar-comum clerical", porque esconde o fato de que o matrimônio, entre os sacramentos, é o único que não foi "instituído” por Jesus Cristo, mas simplesmente “elevado”. Isso porque a Igreja já o encontrou ali, na natureza e na história, e o relê, ao longo dos séculos, a partir de “dados” que ela mesma não coloca. Saber reconhecê-los e discerni-los em seu desenvolvimento não previsível nada mais é do que fidelidade à grande tradição. Ser fiel à tradição significa saber reconhecer coisas novas.
e) Tal tradição, porém, desde o século XIX se tornou particularmente rígida, construiu-se como "oposição frontal à lei civil" e hoje precisa de uma "carta de garantia" dos Núncios, na qual a Secretaria de Estado possa dizer, para consolo dos que duvidam: não há nada de novo, as leis estatais nada têm a ver com a doutrina católica e a doutrina católica não é conspurcada pelas leis estatais. Mas isso é, precisamente, um preconceito de natureza doutrinária.
f) Eu diria, portanto, que justamente o perfil doutrinário desta nota parece muito frágil. Oferece uma leitura política da doutrina eclesial que não parece convincente. Com efeito, a "comunhão de vida" nunca é "doutrina pura", nem mesmo na Igreja. É sempre também lei civil e inclinação natural. Dividir a realidade em duas partes - uma canônica e outra civil - é uma forma demasiado oitocentista de se defender do inimigo, mas é também uma forma de perder a tradição da união, da fidelidade e da geração, que desde sempre vivem numa complexa síntese entre identidade eclesial, direito civil e determinação natural, coisas que nunca se deixam totalmente antecipar "doutrinariamente".
g) A boa doutrina, por tradição, está aberta ao reconhecimento do bem que existe, mesmo quando se apresenta “sub contraria specie”. Essa visão límpida do mundo e da história é o recurso decisivo para ser Igreja de Cristo, mesmo quando se realiza o delicado papel de embaixadores ou ministros do exterior.
h) Uma calma reconstrução da história, como o faz o texto interpretativo da Secretaria de Estado, no entanto, trabalha com dois pressupostos que forçam e distorcem a realidade: por um lado, a ideia de que a "doutrina eclesial" possa prescindir das "leis civis". Certamente, a noção de "matrimônio" requer distinções formais que não podem ser perdidas. Mas o reconhecimento de que existe, mesmo na Igreja, experiência familiar sem matrimônio leva a Igreja a uma ampliação de sua própria compreensão da realidade. Se as uniões não matrimoniais produzem comunhão familiar, isso não pode ser irrelevante para a Igreja.
i) Portanto, e é o segundo ponto de fragilidade do documento, entende-se perfeitamente que se queira afirmar uma “irrelevância doutrinária” das leis estatais sobre as uniões. Isso é muito reconfortante, joga água na fogueira, mas não diz toda a verdade. O reconhecimento de uma legitimidade das “leis civis que regulamentam as uniões” é uma forma de dizer que os caminhos do bem não são sequestradas pela relação com o “máximo bem”. Se o bem também é possível para as uniões civis, e a Igreja o reconhece, isso é um fato doutrinariamente relevante. E que muda o paradigma oitocentista de contraposição entre esfera canônica e esfera civil.
l) A não indiferença para com as leis civis é uma verdadeira virada doutrinal. Pode ser considerada uma consequência da Declaração Dignitatis Humanae do Concílio Vaticano II e do princípio da liberdade de consciência que nela é afirmado. Isso muda não só a relação da doutrina matrimonial e sexual com respeito à lei civil, mas também a posição do magistério eclesial com respeito à autoridade civil. Existem "sinais dos tempos" com os quais a Igreja pode aprender algo. E a função de "docente" pode esperar algo de bom da "tutela dos direitos" dos sujeitos. Esta, apesar do tom prosaico da Nota, é música nova nos lábios do Bispo de Roma.
m) É errado dizer que a Nota desmente o papa. Só pode dizer isso quem não entendeu nem uma nem a outra. Em vez disso, a Nota reconstrói corretamente os fatos, mas propõe uma sua interpretação menor, baixa, quase distraída. Transforme um brilhante improviso em uma marchinha enfadonha. O que serve para acalmar os ânimos, mas não ajuda a entender realmente o que está acontecendo: ou seja, um evento de tradução da tradição, afetiva, matrimonial e institucional. Como sempre aconteceu ao longo da história da Igreja.
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A doutrina eclesial e a lei civil. As novidades afirmadas e esquecidas pela Nota da Secretaria de Estado. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU