17 Outubro 2020
O coronavírus alterou muitos papéis e forçou muitos e diferentes atores a se posicionar. Um deles foram as redes sociais, antes cômodas em seu papel de árbitro que quer parecer invisível, mas às quais “o tsunami de desinformação dos primeiros meses da pandemia fez com que, pela primeira vez, se decidissem a intervir no discurso público”, como explica em entrevista Raúl Magallón, professor de Jornalismo na Universidade Carlos III [Madrid, Espanha] e autor de Desinformación y pandemia. La nueva realidad (Editora Pirámide).
Nesta quinta-feira (15-10), o Facebook e o Twitter foram um pouco além. As duas empresas interviram para impedir a viralização em suas plataformas de uma notícia elaborada por um tabloide que poderia influenciar a campanha eleitoral estadunidense e de duvidosa veracidade, devido à origem da informação. Agiram antes que os meios especializados em verificação de informação fizessem um alerta sobre o conteúdo, tomando uma decisão inédita até agora para estas redes. Um papel intervencionista que Magallón, um dos principais especialistas espanhóis em desinformação, acredita que continuaremos vendo no futuro, mas que, em sua opinião, precisa de “mais transparência”.
A entrevista é de Carlos del Castillo, publicada por El Diário, 15-10-2020. A tradução é do Cepat.
Qual é a sua avaliação da decisão que o Facebook e o Twitter tomaram, ao restringir o alcance de uma notícia do New York Post de forma unilateral? Deram um passo definitivo para se tornarem árbitros da informação?
É a tendência. Está claro que as redes sociais têm um papel cada vez mais importante do ponto de vista político. Também demonstra que superamos o debate que tínhamos até agora, sobre se estas empresas deveriam ser consideradas empresas tecnológicas ou empresas midiáticas. Já está claro que são algo a mais que empresas tecnológicas, são atores políticos com um papel editorial em relação à distribuição dos conteúdos.
A chave é que do ponto de vista da configuração da esfera pública e da distribuição dos conteúdos, tornaram-se espaços de debate mais importantes que os próprios meios de comunicação, chegando inclusive a decidir, dentro de seu próprio sistema de regras, quais artigos dos meios de comunicação são difundidos e quais não. São um ator político que atua como editor da informação que se transmite, como tradicionalmente eram os editores dos meios de comunicação.
No livro, destaca a pandemia como ponto de inflexão entre esses dois papéis das redes sociais. Em sua primeira etapa, explica que tiveram um papel “mais narcótico”, para entreter o usuário, ao passo que nesta segunda passaram à ação como atores sociais e políticos.
São atores sociais e políticos, mas que sabemos que têm uma visão global e que não atual em nível local, exceto quando contam com uma série de pressões por parte dos meios de comunicação, da opinião pública ou de representantes públicos. É importante destacar essa independência acima dos próprios estados.
O tsunami de desinformação dos primeiros meses da pandemia fez com que, pela primeira vez, decidissem intervir no discurso público. Inicialmente, a motivação era uma questão científica, mas agora falamos de decisões políticas. As empresas tecnológicas, que tradicionalmente tinham sido muito mais prudentes em intervir no discurso público, decidiram restringir os conteúdos enganosos que tinham a ver com a Covid-19. Agora também passaram ao terreno político.
Após restringir o artigo do New York Post, Jack Dorsey, fundador e diretor do Twitter, precisou pedir perdão aos usuários por não explicar bem a decisão em um primeiro momento, o que qualificou como “inaceitável”. Você ressalta que o principal problema do novo papel intervencionista das redes sociais é a falta de transparência.
A transparência é um elemento fundamental nas mudanças que estamos vendo. Certo, aceitamos que as redes possuem algumas regras e que quem quiser entrar e participar precisa seguir suas regras. Mas agora essas regras mudam e têm uma implicação direta na liberdade de expressão e de informação, sendo fundamental que sejam transparentes em relação às tomadas de decisões e nisto precisam trabalhar muito mais.
No caso do Twitter, além disso, não conta com uma equipe independente de fact-checkers como o Facebook. Não há um processo de verificação externa e também não se sabe como as decisões são tomadas. Sabemos que há uma equipe que evidentemente se baseia em uma série de casuísticas, mas seria importante que junto com cada decisão houvesse um informe para explicar por que a tomam.
Mais transparência também ajudaria a diminuir tanto ruído acerca das decisões das redes sociais e a entender melhor seus movimentos. Seria especialmente útil, além disso, nestas semanas de campanha eleitoral nos Estados Unidos. Porque o que está claro é que independentemente do que as empresas tecnológicas façam, serão observadas e criticadas por todos os atores políticos.
Os Estados deveriam entrar nesta questão e decidir como as redes sociais devem exercer esse papel de árbitro?
Bem, aqui há vários debates. Dependendo das relações tradicionais imprensa-Estado e a forma que tivermos de tratar a liberdade de expressão, cada país irá agir de uma maneira muito diferente. Existe o contexto anglo-saxão, onde o Estado tradicionalmente não interfere, e o contexto europeu e, sobretudo, a tradição francesa, em que o Estado pode intervir para garantir o pluralismo informativo.
Em minha opinião, deveríamos buscar uma via intermediária. Criar um organismo independente que estabelecesse um código de boas condutas. Um organismo independente em que estejam representadas empresas tecnológicas, meios de comunicação, a sociedade civil, fact-checkers, acadêmicos, que possa deliberar e tomar uma decisão quando ocorram determinadas situações de relevância para a opinião pública. Parece-me uma solução melhor do que a tentativa de que os Estados regulamentem, porque já sabemos como acaba a história quando um Estado tenta regulamentar estas questões. A realidade é que a maioria das ocasiões, e vimos isso durante a pandemia, quando se fala em regulamentar desinformação, ao final, o que acontece é que se acaba limitando a liberdade de expressão e informação.
E o respeito à publicidade eleitoral?
Para mim esse é um ponto fundamental que não se tratou muito. Assim como acredito que temos que ser muito cuidadosos com tudo o que tem a ver com a liberdade de expressão e de informação. Penso que sim, que é mais fácil e que deveríamos trabalhar em como regulamentar a publicidade digital segmentada. Por exemplo, em nosso país, o que vivemos nas eleições de abril e nas eleições de novembro é que haviam candidatos e partidos políticos que continuavam enviando publicidade, que apareciam anúncios políticos na jornada de reflexão, quando isso não é permitido.
Seria importante que deixássemos claro quais são as regras do jogo a respeito de tais tipos de campanhas, uma transparência em relação aos gastos de campanha eleitoral. Penso que devemos, de certa maneira, adaptar a legislação ao cenário atual. Precisamente para isso, para que essa transparência nos processos eleitorais fique muito mais clara.
Como as redes sociais passaram de ser vistas como elementos democratizantes da informação a ser aproveitadas por forças da extrema direita para espalhar suas mensagens?
Vários elementos influenciam. Precisamos voltar à crise de 2008, que é de mudança de modelo: deixamos de consumir informação em papel e começamos a consumi-la de maneira digital. Isso fez com que, como bem sabemos, em nosso país houvesse muitas demissões, muitos fechamentos de meios de comunicação, e que os recursos humanos jornalísticos fossem cada vez mais limitados. Sobretudo, os da imprensa local, que tem um papel de serviço público, de ancoragem dentro de uma comunidade.
O que aconteceu? Paralelamente, as redes sociais e essa ideia inicial que tínhamos delas estavam se desenvolvendo como elemento democratizante, com consequências. Quando essa imprensa local perde influência, vamos às redes sociais, que evidentemente não razão para ser fontes confiáveis. Que nossos amigos, nossos familiares e nossos conhecidos sejam uma fonte de confiança, não significa que sejam fontes confiáveis de informação. Essa é a mensagem que ainda não temos totalmente clara.
A partir de 2010 e 2011, a mensagem foi: compartilha, compartilha, compartilha. E agora estamos percebendo que compartilhar sem reflexão a esse respeito, sem perguntar, sem verificar, tem uma série de consequências e muitas delas têm a ver, sobretudo em um cenário completamente inesperado, como é este de pandemia, com que antes de pensar em nos informar bem, nem sequer sabemos ou temos as ferramentas para não nos sentir desinformados.
Além disso, determinados atores políticos encontraram nas redes sociais uma forma de fazer chegar suas mensagens a seu público diretamente, sem que passe pelos intermediários tradicionais, pelos jornalistas. E a realidade é que, neste clima de polarização, essas mensagens estão funcionando.
No livro, também aponta que as multinacionais tecnológicas demonstram que não são tão capazes de solucionar seus próprios problemas como pensávamos. É uma incapacidade real ou não fazem tudo o que podem por motivos econômicos?
Sim, evidentemente em seu processo de tomada de decisões são importantes o fator econômico e o custo do ponto de vista dos recursos humanos que precisam. Os conteúdos falsos são uma parte mínima do que circula pelas redes sociais. Mas, ao mesmo tempo, para detectar os discursos de ódio e distinguir determinadas ponderações, os sistemas automatizados não servem, é necessária uma moderação humana. O que sabemos é que essa moderação humana está muito limitada por questões geográficas e fatores geopolíticos. Em determinados países que para as empresas tecnológicas não são importantes, de um ponto de vista estratégico e empresarial, a moderação praticamente não existe.
Mas, pessoalmente, acredito que tem a ver com o fato de que consideram que são agentes supranacionais e que estão acima dos Estados. Por fim, só atuam quando o poder político, a opinião pública ou os meios de comunicação pressionam. E só quando são pressionados de uma determinada forma.
Outra das tendências da desinformação na pandemia foram as teorias da conspiração. Como passamos dos boatos para a criação de novas realidades alternativas?
Uma das principais questões é como separar o discurso dos fatos e, dentro disso, penso que a linguagem foi muito importante. Tem duas funções. A primeira é descrever a realidade, como quando Ludwig Wittgenstein disse que os limites de nosso mundo são os limites de nossa linguagem. Se não temos as ferramentas das palavras adequadas para descrever o mundo em que vivemos, não poderemos compreendê-lo.
A outra é a linguagem como construtora da realidade. Nesses dias, a linguagem que foi utilizada na Espanha me lembrava um pouco o livro Cómo mueren las democracias [de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt]. No livro, víamos como o Tea Party acusava Obama de ser um ditador, um americano ruim. Agora, estamos vendo algo semelhante na Espanha. Ou seja, a linguagem é importante como uma ferramenta de construção social de uma realidade paralela. Nesse sentido, sim, há uma relação direta, sobretudo em termos políticos, que tem a ver com a ideia de gerar uma campanha política permanente de dizer: “aceitamos as eleições, mas vamos estar em campanha permanente, porque acreditamos que graças a isso podemos dar forma à realidade de modo constante”.
Depois, do ponto de vista dos ‘conspiranoicos’, também existem várias características interessantes. Uma é que o ‘conspiranoico’ é herói e vítima ao mesmo tempo. Vítima em relação a ser a pessoa que enfrenta esses grupos de interesses ou grandes personalidades que controlam o mundo pelas sombras. Mas, ao mesmo tempo, é o herói e o que controla o discurso. Em um cenário de incerteza como o que tínhamos na pandemia, houve determinados atores que graças à conspiração se ergueram como gestores do discurso que ia acima dos outros, posto que em um cenário de incerteza não sabemos o que irá acontecer, mas em uma conspiração, sim.
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“As redes sociais não são mais apenas empresas tecnológicas, mas atores políticos”. Entrevista com Raúl Magallón - Instituto Humanitas Unisinos - IHU