26 Setembro 2020
“No lugar dos tiranos, os zapatistas constroem, criam, inventam mundos novos e diferentes, clínicas de saúde, escolas, espaços de vida para continuar vivendo. As juntas de bom governo, por exemplo, pertencem a esse tipo de criação coletiva, onde o chefe é o povo, onde as mulheres e os homens que governam obedecem ao coletivo. Fazem rodízio para não se petrificarem no lugar de comando, porque não possuem vocação para monumentos, mas para o serviço”, escreve Raúl Zibechi, jornalista e analista político uruguaio, em artigo publicado por La Jornada, 25-09-2020. A tradução é do Cepat.
“O risco de um destruidor de estátuas é se tornar uma”, cita Carlos Monsiváis, no final de seu ensaio De monumentos cívicos y sus espectadores, a Jean Cocteau.
Linhas acima, havia escrito que um dos primeiros atos de libertação de um povo é a destruição dos monumentos aos heróis e caudilhos, que assim deixavam de ser.
Como resultado da onda de demolições de monumentos, multiplicada após o assassinato de George Floyd pela polícia dos Estados Unidos, surgiram críticos a essas demolições, que rasgam as vestimentas porque, dizem, as estátuas fazem parte do espaço público.
O episódio mais recente aconteceu em Popayán, capital do Cauca, no sul da Colômbia. Em 16 de setembro, um grupo dos povos misak e nasa demoliu o monumento a Sebastián de Belalcázar, fundador da cidade e de Guayaquil, Quito e Cali. Recebeu o título real de governador vitalício de Popayán, além de outras condecorações.
Sua estátua foi colocada no Morro de Tulcán, uma colina em Popayán onde havia uma pirâmide cerimonial construída pelos povos indígenas que foi literalmente decapitada para instalar a estátua equestre do conquistador, como demonstrou há meio século o antropólogo colombiano Julio César Cubillos.
Diante dos lamentos da oligarquia local, que foi a que em 1940 instalou o monumento no local sagrado, o Conselho Regional Indígena do Cauca (CRIC) lembrou à população que até o momento, neste ano, foram assassinados 65 integrantes das comunidades indígenas no Cauca, algo que nem todos parecem se importar. Saúda “o ato de valentia” do povo misak em “descolonizar o pensamento e reconstruir nossa própria história”.
Vale lembrar que Belalcázar é sinônimo de genocídio, racismo, escravidão e discriminação contra os povos indígenas e que em vida foi um dos maiores genocidas dos povos originários da América Latina.
Não tenho tão claro como Monsiváis se a demolição de monumentos antecipa a rebelião ou se a acompanha. No ano passado, no Chile, mais de 30 figuras de soldados e conquistadores foram marcadas com grafite ou tinta, de Arica, no norte, ao sul mapuche. Lembro-me de como os jovens se inflamavam, na Praça da Dignidade, diante da estátua do General Baquedano (herói da guerra do Pacífico contra o Peru e a Bolívia, segundo a historiografia de cima) que foi pintada e coberta parcialmente com bandeiras mapuches.
Por todo o Chile e no calor da revolta popular que varreu o país desde outubro, rolaram esculturas de Colombo, a estátua do colonizador e militar Francisco de Aguirre (em cujo lugar colocaram a escultura de uma mulher Diaguita) e o busto de Pedro de Valdivia, em Temuco, cuja cabeça foi pendurada nas mãos do guerreiro mapuche Caupolicán.
Em 12 de outubro de 1992, os zapatistas realizaram uma grande marcha em San Cristóbal de las Casas, Chiapas, e demoliram a estátua de Diego de Mazariegos em frente à igreja de Santo Domingo. Se voltaram a levantá-la, não importa. Nunca poderão levantar novamente o medo do que representava, escreveu, em maio de 2015, o subcomandante insurgente Galeano.
Menos de 15 meses depois, acendeu-se o Já Basta! da insurreição zapatista. Nesse caso, a frase de Monsiváis é tão precisa, como justa.
Contudo, gostaria de me deter na citação de Cocteau, trazida pelo escritor mexicano. Uma das características mais marcantes da revolução zapatista é que nunca pretendeu substituir os vilões abatidos por personagens mais nobres, no mesmo pedestal. Não se trata de derrubar um conquistador genocida para colocar um “irmão” libertador em seu lugar. A coisa é muito mais profunda.
As estátuas são uma herança colonial, assim como os estados. Representam a cultura da classe dominante. Os povos originários têm outra forma de representar suas visões de mundo na arquitetura, como as pirâmides, que também ensinam formas hierárquicas de ver o mundo. Também não se trata de substituir as estátuas coloniais por pirâmides sacramentais.
No lugar dos tiranos, os zapatistas constroem, criam, inventam mundos novos e diferentes, clínicas de saúde, escolas, espaços de vida para continuar vivendo. As juntas de bom governo, por exemplo, pertencem a esse tipo de criação coletiva, onde o chefe é o povo, onde as mulheres e os homens que governam obedecem ao coletivo. Fazem rodízio para não se petrificarem no lugar de comando, porque não possuem vocação para monumentos, mas para o serviço.
Neste momento, em que os de cima estão assassinando bases de apoio zapatista no ejido de Tila, tzotziles, em Aldama, nasas e misak, no Cauca, e povos negros, originários, camponeses e de periferias urbanas de todo o continente, podemos refletir por qual motivo resistimos e damos nossas vidas: não para mudar de capatazes, mas para viver em um mundo sem mandões.
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Derrubar estátuas. Artigo de Raúl Zibechi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU