14 Agosto 2020
Timothy Schmalz enxerga Jesus nos sem-teto, nos famintos, nos enfermos, nos prisioneiros, nos refugiados e nos migrantes desesperados. Ele se vê um evangelista a pregar no mundo inteiro, não com a boca, mas com as mãos, talhando os menores dentre nós (Mateus 25,31-46) em requintadas (e assustadoras) esculturas de bronze em tamanho natural.
A reportagem é de Gary Gately, publicada por National Catholic Reporter, 08-08-2020. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
A escultura mais famosa do católico canadense de 50 anos, chamada “Jesus sem-teto”, retrata um homem magro deitado sobre um banco coberto por um cobertor fino, com espaço suficiente para alguém se sentar a seus pés expostos, os quais apresentam as feridas da crucificação.
Schmalz diz esperar que a obra “Jesus sem-teto” – atualmente exposta em mais de cem cidades do mundo todo – evoque no outro a mesma epifania que ele teve quando avistou um sem-teto a tremer de frio debaixo de um cobertor fino num banco do centro de Toronto, na época do Natal de 2011.
O Papa Francisco cumprimenta o escultor Timothy Schmalz na inauguração do monumento aos migrantes e refugiados, “Angels Unawares”, na Praça São Pedro, Dia Mundial do Migrante e do Refugiado, 29-09-2019.
(Foto: Wikimedia Commons/Itravella)
“Eu fiquei olhando e não conseguia parar de pensar em Mateus 25. Então falei: ‘Eis Jesus. Eis um dos menores de meus irmãos’”, disse Schmalz. “Não conseguia tirar essa imagem, essas palavras da cabeça. Creio que esse momento foi um verdadeiro encontro com Deus”.
Em outras almas desesperadas que vivem nas ruas de Toronto, Schmalz enxergou vagos reflexos de si mesmo enquanto jovem escultor.
Como alguém que abandonou a faculdade de artes, Schmalz odiava o que se passava por arte contemporânea e queria esculpir segundo a tradição de mestres artistas cristãos como Michelangelo, Gian Lorenzo Bernini e Auguste Rodin. Aos vinte e poucos anos, Schmalz viveu quatro deles em uma pequena sala de uma fábrica abandonada de Toronto.
Ele dormia em uma base de madeira que também servia de apoio para as suas esculturas. O local não tinha cozinha, água quente para o banho e na torneira da pia, que ficava no final do corredor, era coisa rara. Do lado de fora, profissionais do sexo, pessoas vendendo e consumindo drogas ilícitas, sem-teto.
Pela primeira vez na vida, Tim Schmalz identificou-se com os rejeitados da sociedade.
“Viver em condições assim fez com que eu me relacionasse com os marginalizados. Fui um deles por quatro anos”, diz Schmalz.
Nesse tempo, ele se recolhia quinze horas por dia, talhando Jesus, Maria e os santos.
A escultura “A Santa Ceia”, de Timothy Schmalz, no Mosteiro de Santa Ema, em Greensburgo, Pensilvânia, tem doze banquinhos vazios que convidam os visitantes a sentarem-se com Jesus enquanto este divide o pão. A escultura também está exposta no lado de fora da Igreja de Pedra Velha, em Cleveland; na Igreja Católica do Santo Espírito, Brighton, Michigan; na Igreja de São Tiago Maior, em Eau Claire, Wisconsin; na Igreja de São Cristóvão, Indianápolis; e em outras localidades.
(Foto: Mosteiro de Santa Ema)
“Basicamente eu vivi como um monge enclausurado em meu estúdio”, diz Schmalz, hoje um homem musculoso e barbudo, de cabeça raspada e que atualmente vive com a esposa, filho e filha em St. Jacobs, Ontário, um vilarejo tranquilo a sudoeste de Toronto.
A forma de Schmalz ouvir, ver e esculpir a Palavra o faria passar de um jovem artista autodidata que viveu em uma velha fábrica a um conhecido escultor que se reuniu com o Papa João Paulo II e, mais tarde, o Papa Francisco no Vaticano.
João Paulo II e Francisco elogiaram e abençoaram abundantemente as obras de Schmalz, incluindo “Jesus sem-teto”, que Francisco instalou, em 2018, do lado de fora de um antigo palácio do Vaticano, o Palazzo Migliori. Hoje 50 homens e mulheres sem-teto que ficam no local passam pelo “Jesus sem-teto” todos os dias.
As esculturas de Schmalz nos convidam a tocar as feridas dos enfermos, dos famintos, dos prisioneiros, do Jesus nu, a ver o seu olhar cabisbaixo, a sentar-se em um dos doze assentos vazios da escultura “A Santa Ceia”, em Michigan, na Flórida, na Pensilvânia e em outros lugares.
O escultor também sabe que Deus transcende raças e grupos étnicos. Ele esculpiu um Jesus africano, atualmente exibido num átrio arquidiocesano de Atlanta, EUA, e um corpo africano do Cristo crucificado para um santuário católico da Tanzânia. Ele está trabalhando em uma Mãe de Deus africana e um menino Jesus, e planeja esculturas com outros grupos raciais e étnicos.
Modelo em argila de “Jesus 2020”, por Timothy Schmalz, mostra Cristo pendurado pelo pulso esquerdo a um crucifixo em chamas. Com o braço direito ele abraça a Terra; vê-se um nascituro em seu centro.
(Foto: Timothy Schmalz)
“Sempre pensei: ‘Como Jesus gostaria de ser esculpido?’” Schmalz diz. “Acho que ele gostaria de ser representado na arte exatamente como se apresentou. Se lermos Mateus 25, vamos ver que ele não só falou que é bom alimentar os famintos, que é bom dar aos pobres. Ele disse: ‘Quando vocês ajudam os pobres e famintos, é a mim que estão ajudando, e se o fazem vocês vão para o céu. E se não o fazem, vão para o inferno””.
Mas, embora papas e milhões de fiéis gostem da ideia de identificar Jesus com os marginalizados, nem todos estão de acordo.
“Alguns acham assustador, um insulto a Jesus. Outros dizem que a obra não reflete bem entre a comunidade”, diz Schmalz. Outros ainda, ao confundir o “Jesus sem-teto” com um homem morto, ligaram para a polícia.
No entanto, durante mais de um ano a obra “Jesus sem-teto” não teve um lar. Os bispos rejeitaram as propostas de instalá-la nas dioceses. Entre outros lugares, podemos citar a proposta feita à Catedral de São Patrício, em Nova York, e a Catedral de São Miguel, em Toronto.
“Muitos dizem que ‘Jesus sem-teto’ é chocante, mas eu respondo que a escultura é tão chocante quanto os Evangelhos”, diz Schmalz. “Parte da Bíblia tem a ver com nos dar conforto, mas também ela pretende nos desafiar”.
Parece certo dizer que, por três décadas, o padre jesuíta Peter Larisey, o primeiro a acolher o “Jesus sem-teto” na Regis College, em Toronto, foi o orientador espiritual, uma inspiração, uma âncora a Schmalz.
Schmalz manteve contato com Larise – que era amante da arte, autor com doutorado em história da arte pela Universidade de Columbia e que orientou muitos jovens artistas – até a morte do religioso por covid-19, em 30 de abril, na cidade de Toronto.
“Muitos diziam: ‘Você foi um eremita, dormiu sobre uma tábua e está fazendo um trabalho artístico’. Mas o Pe. Peter dizia também: ‘Sua obra é absolutamente incrível. É maravilhosa’. Ele me ensinou que, sim, encontramos o espírito na igreja, mas também no amor por todos, e que encontramos a espiritualidade nesse amor, dentro e fora da igreja”.
O Pe. Ray Chase, da Igreja de São Vicente de Paulo, no centro de Baltimore, há tempos é um admirador do trabalho de Schmalz, tendo sobre sua mesa uma miniatura de “Jesus sem-teto” que comprou na Amazon alguns anos antes da instalação da versão, em tamanho real, entre as árvores ao redor da igreja local, em julho de 2018.
Em Baltimore, onde vivem mais de 3 mil pessoas sem-teto, Chase diz: “Para mim, ‘Jesus sem-teto’ é uma apreciação de como a encarnação é plena. O seu significado é que precisamos ir além dos rótulos – sem-teto, viciados, alcoólatras, doentes mentais, sujos, prostitutas – e enxergar Cristo no outro. Não podemos simplesmente seguir as coisas boas ou as coisas importantes que Jesus nos diz. Temos que buscar para saber como ajudar o menor dentre nós e ver o que Jesus enxerga nessas pessoas, que elas são verdadeiramente amadas pelo que são”.
Um homem se deita sobre a escultura “Jesus sem-teto”, de Timothy Schmalz, no centro de Washington, DC. Versões da escultura estão instaladas em mais de cem cidades mundo afora, incluindo a antiga cidade de Cafarnaum, onde Jesus andou por sobre o Mar da Galileia.
(Foto: Timothy Schmalz)
Chase sugere que “Jesus sem-teto” sirva para dar conforto aos marginalizados.
Ele se lembra do alcoólatra sem-teto que viu no final de 2018.
“Essa pessoa se sentou aos pés de Jesus, deitou-se sobre ele e o abraçou”, diz Chase. “Quero acreditar que esse homem encontrou conforto aí”.
As últimas criações de Schmalz mostram-se tão atemporais quanto as Escrituras, e tão atuais quanto as manchetes de hoje.
“Angels Unawares”, instalada na Praça São Pedro no Dia Mundial do Migrante e do Refugiado, em setembro passado, celebra os migrantes ao longo da história, a fugir do genocídio, da escravidão, da guerra, da fome e perseguição. O monumento de bronze, de 6 metros de comprimento e 3 de altura, retrata 140 migrantes e refugiados amontoados em um barco. Entre eles: José, Maria e o menino Jesus fugindo para o Egito; africanos escravizados em busca de liberdade; Irlandeses expulsos de seu país pela fome decorrente da escassez de batata; nativos americanos na Trilha das Lágrimas, forçados a abandonar a terra natal; um judeu hassídico a fugir da Alemanha nazista; centro-americanos em busca de uma nova vida do outro lado da fronteira com os EUA; um muçulmano forçado a sair da Síria por causa da guerra civil.
Schmalz encontrou inspiração para o monumento, como ocorreu com muitas de suas obras nos últimos quatro anos, enquanto o esculpia ouvindo passagens bíblicas diariamente e repetidas vezes. Uma frase singular de Hebreus 13,2 inspirou a escultura “Angels Unawares”: Não esqueçam da hospitalidade, pois algumas pessoas, graças a ela, sem saber acolheram anjos”.
“Oração pela Saúde”, outra criação oportuna, em forma de argila e que, mais tarde, será lançada em bronze, mostra um profissional da saúde usando uma máscara e outros equipamentos de proteção ajoelhado sobre a Terra. A rezar. Um anjo se põe atrás durante a pandemia de covid-19. (Schmalz diz que intencionalmente deixou em aberto o gênero do personagem). As mãos do anjo repousam sobre os ombros do trabalhador, com um olhar fixo sobre o globo.
Em “Jesus 2020, o Filho do Homem”, ainda em forma de argila, mostra Cristo pendurado pelo pulso esquerdo a um crucifixo em chamas. Com o braço direito ele abraça a Terra e vê-se um nascituro em seu centro, como a esperança de uma nova vida e luz em meio às trevas de uma pandemia mundial e em meio às chamas de ódio e divisão nestes tempos febris.
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As esculturas de Timothy Schmalz são ‘‘tão chocantes quanto os Evangelhos’’ - Instituto Humanitas Unisinos - IHU