06 Agosto 2020
Presbítero da Diocese de Trani-Barletta-Bisceglie, na Itália, com doutorado em Ciências Bíblicas no Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, e professor de Grego e Hebraico na Universidade Lateranense, Francesco Filannino está convencido, em seu livro “La fine di Satana” [O fim de Satanás] (Ed. EDB, 2020), de que os relatos de exorcismos presentes no Evangelho de Marcos e algumas perícopes relacionadas ao mesmo tema são um “notável spaccato” (p. 228) da cristologia marciana ou, melhor, uma “miniatura” do segundo Evangelho (p. 233).
O comentário é de Roberto Mela, professor da Faculdade Teológica da Sicília, em artigo publicado por Settimana News, 03-08-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Se a principal intenção da missão de Jesus era a de inaugurar a presença do reino de Deus na Terra – entre o já e o ainda não – e convidar à conversão para poder desfrutar de seus frutos, os relatos de exorcismo se apresentam como uma evidenciação imprescindível de como o advento de Jesus começa a pôr fim ao domínio das potências demoníacas sobre a humanidade.
Na titulatura adotada pelo autor, os quatro relatos marcianos de exorcismos examinados são: “O homem na sinagoga de Cafarnaum” (1,21-28); “A ‘legião’ na região dos gerasenos” (5,1-20); “A filha da mulher siro-fenícia” (7,24-30); “O menino possuído por um espírito mudo e surdo” (9,14-29).
As perícopes consideradas chaves interpretativas dos exorcismos e, por isso, analisadas cuidadosamente são Mc 1,12-13 (“Jesus tentado por Satanás no deserto”); 3,22-30 (“O fim do reino de Satanás”); 9,38-40 (“Um exorcista imprevisto”). Elas são fundamentais para a compreensão do tema, pois o próprio Jesus é o protagonista que, em 3,22-30 e 9,38-40, pronuncia até a sua palavra final de juízo último sobre o significado dos exorcismos por ele realizados.
Segundo Filannino, cada um dos relatos dos exorcismos e das perícopes relacionadas ao tema da libertação do poder demoníaco veicula temas importantes relacionados às quatro “polaridades teológicas” fundamentais do Evangelho por ele identificadas: cristologia, escatologia, soteriologia, discipulado.
Deve-se ter em mente que o contexto em que se encontram os vários trechos analisados também é decisivo para uma compreensão teológica correta e completa.
“A cura do homem possuído na sinagoga de Cafarnaum” (1,21-28) ressalta, acima de tudo, a cristologia, ou seja, o tema da identidade de Jesus: o demônio conhece Jesus como o Santo de Deus, dotado com o poder do Espírito recebido no batismo (realidade revelada apenas ao leitor na titulatio de 1,1).
Jesus é o Ungido messiânico que cura o homem possuído pelo demônio com o ensinamento e a ação de autoridade, e paradoxalmente presente precisamente no lugar sinagogal dedicado eletivamente ao estudo da Torá. O ensinamento de Jesus tem autoridade não tanto pelo seu conteúdo, mas sim pela identidade do locutor.
“O exorcismo realizado em favor do homem geraseno” (5,1-20), despersonalizado, autolesionado, afligido pela insanidade – considerada na antiguidade como um sinal da possessão diabólica –, desintegrado na sua personalidade e totalmente privado de socialização humana e religiosa, veicula sobretudo a polaridade teológica da escatologia apocalíptica. Para Marcos e a literatura apocalíptica da época, a humanidade se encontra submissa ao poder do Maligno, que só pode ser derrotado totalmente por uma figura divina, no tempo escatológico final.
O evangelista Marcos, em vez disso, apresenta Jesus realizando essa vitória completa desde o momento presente, libertando da escravidão desumanizante e bestial do demônio uma região inteira (“Uma região sem legião”), caracterizada pelo fato de ser habitada quase totalmente por pagãos (ipso facto impuros para os judeus). O homem curado é enviado como evangelizador do bem recebido de Jesus.
“O exorcismo a distância da filha da mulher siro-fenícia” (7,24-30) – realizado em uma macrosseção caracterizada por um teor didático que acompanha o caminho de Jesus rumo a Jerusalém (6,6b - 10,52) e que inclui aproximadamente a subseção chamada “seção do pão” (6,30-8,26) – exalta a polaridade teológica da soteriologia, que assume uma conotação universalizante.
A segunda saída de Jesus para terras pagãs marca a universalização da salvação, destinada também aos “gentios”, pagãos por natureza segundo os judeus. A brusca resposta de Jesus à imploração da mulher induz esta última a uma contrarresposta marcada pela fé/confiança na abundância transbordante da salvação, na qual é reconhecida a precedência teológica dos judeus presentes nas palavras de Jesus (“filhos/tekna”) mas, através da modificação em termos que não se referem mais a uma caracterização teológica, mas de crescimento humano [...], manifesta a fé em uma possível participação universal na salvação superabundante destinada in primis aos judeus, “filhos de Deus”.
“A cura do menino possuído por um espírito surdo e mudo” (9,14-29) – que não teve sucesso para os nove apóstolos que permaneceram “na planície” – exemplifica a polaridade teológica do discipulado. Ela manifesta o elo indispensável existente entre o exorcismo e a fé/oração. O pai do menino é descrito como modelo de fé orante que é exigida por Jesus no contexto didático na seção narrativa do Evangelho em que se encontra. Jesus compartilha aos seus discípulos a sua própria autoridade exorcista, que é exercida em outros lugares com sucesso. No entanto, ela não deve ser considerada como uma posse garantida, automática e permanente, mas deve sempre ser inervada de fé orante.
As três perícopes relacionadas ao tema dos exorcismos e à vitória sobre o demoníaco analisadas por Filannino fornecem chaves interpretativas adicionais e importantes sobre o tema do exorcismo.
A perícope das “tentações de Jesus no deserto” (1,12-13) não se concentra no seu conteúdo ou na obediência de Jesus ao Pai, mas evidencia implicitamente, mediante a menção da convivência pacífica de Jesus com os animais selvagens e o serviço evangélico de que ele desfruta durante o período simbólico de 40 dias, a vitória obtida pelo Ungido de Deus sobre as potências demoníacas. Jesus vem para instaurar a paz entre as criaturas presentes no mundo e, desse modo, realiza o vaticínio messiânico de Isaías 11,1-9.
No difícil confronto com os adversários mais acérrimos de Jesus presentes no Evangelho de Marcos, os escribas (3,22-30), ele anuncia com autoridade, pessoalmente, a sua vitória sobre o reino de Satanás e o séquito dos seus demônios.
Através da reductio ad absurdum da acusação dos adversários (Satanás não pode lutar contra si mesmo) e do modus tollens (negando a consequência [o reino de Satanás acabou], nega-se também o antecedente [Satanás está dividido em seu interior]), Jesus anuncia que a sua vitória não se deve a uma desintegração endógena do reino satânico, mas, positivamente, à vitória do “mais fortes” sobre alguém “fortes”.
“Ora, se Satanás ainda não acabou e, portanto, não está dividido em si mesmo, [há] a negação da segunda acusação apresentada pelos escribas: ele não expulsa os demônios em nome dos demônios e com a força dos chefes dos demônios” (p. 198). A acusação dos escribas é absurda e insustentável.
A perícope sobre o “exorcista improvisado” (9,38-40) é um forte ensinamento caracterizado pela tonalidade teológica do discipulado. De fato, Jesus expressa uma concepção não exclusivista do exercício do exorcismo no âmbito do círculo dos Doze. Enquanto eles não haviam conseguido libertar o menino surdo e mudo, o anônimo exorcista externo ao grupo dos Doze, por sua vez, teve sucesso na sua obra, manifestando assim que está em uma relação positiva com a pessoa de Jesus (“expulsa no teu nome”).
O livro de Filannino é um ótimo estudo sobre um tema crucial do Evangelho de Marcos, poderíamos dizer “típico” do segundo Evangelho. O autor expõe o seu pensamento com rigoroso método exegético, uma linguagem clara, compacta, consequente e nunca abstrusa, sempre em amplo diálogo científico com outros autores.
Algumas – poucas – expressões técnicas são prontamente explicadas em benefício do leitor. Nas notas, são relatados os detalhes bibliográficos das obras de muitos estudiosos que sustentam opiniões prós e contras – ou, de alguma forma, diferentes – daquelas defendidas pelo autor no texto.
Após as Siglas e as Abreviações (pp. 7-12), o Prefácio (pp. 13-14) e a Introdução (pp. 15-30), na Primeira Parte (pp. 31-162), analisam-se os quatro relatos de exorcismo no Evangelho de Marcos.
A Segunda Parte (pp. 163-224) examina três perícopes consideradas como as chaves interpretativas dos exorcismos.
Seguem-se a Conclusão (pp. 225-234), a Bibliografia (pp. 235-258: Fontes bíblicas, judaicas, greco-romanas e patrísticas; Instrumentos; Comentários sobre Marco; Artigos e monografias). Fecha a obra o Índice de citações bíblicas (pp. 259-274) e o dos autores (pp. 275-282).
O livro é publicado pela Associação Bíblica Italiana, que abriga na coleção “Supplementi alla Rivista Biblica” as melhores teses de doutorado dos biblistas italianos. A obra se apresenta em uma roupagem editorial impecável e precisa no texto.
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Satanás derrotado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU