21 Julho 2020
A decisão do Vaticano I de focar no primado e na infalibilidade do papa levou a fechar as fileiras da estrutura eclesial, fixar uma férrea ordem da cadeia de comando, estabelecer uma hierarquia inquestionável da estrutura eclesiástica, para que toda a Igreja pudesse se apresentar compactamente unida sob a direção de um líder, único e absoluto, à batalha decisiva que o mundo moderno se preparava para travar contra ela.
A opinião é do historiador italiano Daniele Menozzi, professor da Scuola Normale Superiore de Pisa e ex-professor das universidades de Trieste, Bolonha, Lecce e Florença. O artigo foi publicado em Settimana News, 18-07-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O dia 18 de julho marca o 150º aniversário do mais importante documento aprovado pelo Concílio Vaticano I: a votação e a promulgação, na Basílica de São Pedro, da constituição Pastor aeternus, que sancionava o primado e a infalibilidade do pontífice romano.
Narram as crônicas que, naquela manhã, caiu sobre Roma um temporal torrencial, acompanhado por incessantes raios e trovões. Para a mentalidade católica da época, acostumada a ler na meteorologia os sinais da condução da história por obra da Providência, parecia o anúncio de um futuro sombrio.
Louis Veuillot, diretor do jornal L’Univers, uma das publicações que havia liderado com mais decisão a batalha em favor das teses ultramontanas, tentou acalmar os ânimos, alegando que não havia nada a temer: o caminho que se abria para a Igreja seria impermeável, mas, após as decisões da cúpula ecumênica, não podia haver dúvidas sobre o resultado da batalha em curso entre ela e o mundo moderno. De fato, agora “temos um Moisés ou, melhor, alguém maior do que Moisés”.
Mas diversos fatores contribuíram para alimentar as inquietações. O documento havia encontrado um amplo consenso. De fato, somente dois foram os “non placets”. No entanto, na sala, estavam presentes 535 Padres conciliares, 25% menos do que no dia em que havia sido aberta a cúpula ecumênica. Boa parte da minoria anti-infalibilista, uma centena de bispos, decidiu não participar da sessão, afastando-se da capital na noite anterior à votação. Outros de seus expoentes, como o cardeal Gustav-Adolf von Hohenlohe, uma figura de peso na Cúria também por ser irmão do primeiro-ministro bávaro, haviam decidido permanecer, mas desertando a reunião.
Às inquietações com a unidade da Igreja, acrescentavam-se as preocupações sobre o seu isolamento internacional. Ninguém perdia de vista que, naquele dia solene, o corpo diplomático credenciado junto à Santa Sé havia quase se abstido de assistir à congregação: era a manifestação indireta, mas evidente, das perplexidades expressadas por numerosas chancelarias sobre a oportunidade política da constituição.
Mas, mais do que a constatação dos problemas postos pelo presente, era uma recordação do passado para perturbar o ânimo dos expoentes do intransigentismo católico, que também haviam vencido a batalha para assegurar ao governo da Igreja o desejado regime de monarquia absoluta.
No dia 8 de dezembro de 1854, no momento da proclamação do dogma da Imaculada Concepção de Maria – com a qual Pio IX havia, na prática, antecipado o modo de condução da Igreja universal que a decisão do dia 18 de julho de 1870 formalizaria depois – um raio de sol havia atravessado um vitral na Basílica de São Pedro, iluminando o rosto do pontífice enquanto ele lia a nova definição dogmática.
Aos olhos de quem interpretava a realidade com as lentes figurinistas, tratou-se de um sinal enviado do céu para confirmar a tese com a qual os católicos intransigentes haviam acompanhado os trabalhos preparatórios da proclamação: o dogma abria a nova era do triunfo da Igreja sobre os erros do mundo moderno.
A Concordata com o império austríaco, assinado em 1855, havia consolidado essas esperanças. Não apenas punha fim à tradicional política josefinista de Viena, como também parecia abrir caminho para o reconhecimento do primado das normas eclesiásticas sobre a legislação civil.
Taparelli d’Azeglio, na Civiltà Cattolica, escrevia uma série de artigos para atribuir à intercessão de Nossa Senhora, certamente gratificada pelo incremento do culto decorrente do reconhecimento oficial do título da Imaculada, uma intervenção providencial no curso da história que iniciava o retorno àquela cristandade medieval em que os homens e os povos eram docilmente submetidos à sábia direção do papa.
Mas, muito em breve, chegava da história uma forte desmentida. O governo do imperador Francisco José havia se protegido de condescender com as expectativas romanas na interpretação do novo acordo, iniciando uma prática que levaria à sua denúncia.
Outro fato despertava ainda mais alarme. O tradicional defensor do temporalismo pontifício, o imperador dos franceses, Napoleão III, mostrava-se sensível às teses do primeiro-ministro piemontês, o separatista Camillo Cavour. Este, há muito tempo, recordava que o Estado da Igreja, com a sua rejeição a qualquer modernização, constituía o foco de uma perene agitação mazziniana que, ameaçando a estabilidade política da península, já representava o mais sério perigo para a manutenção da ordem em todo o continente europeu. Perfilava-se um interesse comum das potências em eliminar esse fator de infecção.
A proclamação em 1861 do Reino da Itália, que se formou em grande parte às custas das posses do pontífice e da desconfiança, apesar da Convenção de setembro de 1864 entre Turim e Paris, sobre a efetividade vontade política de querer garantir ao papa até mesmo o último fragmento de soberania territorial, que havia sido considerada a única garantia de uma real liberdade de exercício da função petrina, havia minado as confiantes expectativas dos intransigentes.
O novo dogma mariano não havia marcado a inversão do processo histórico daquela modernidade que retirara da autoridade eclesiástica esferas cada vez mais amplas de competência para guiar a vida individual e coletiva dos homens. Apesar do raio de sol que iluminara Pio IX, a partir do dia 8 de dezembro de 1854 o afastamento da sociedade contemporânea da Igreja se intensificou.
A decisão de focar no primado e na infalibilidade do papa havia sido a sua óbvia consequência. Era necessário fechar as fileiras da estrutura eclesial, fixar uma férrea ordem da cadeia de comando, estabelecer uma hierarquia inquestionável da estrutura eclesiástica, para que toda a Igreja pudesse se apresentar compactamente unida sob a direção de um líder, único e absoluto, à batalha decisiva que o mundo moderno se preparava para travar contra ela.
Aos olhos dos intransigentes, que, em vez de tentar aferrar os sinais dos tempos, se alimentavam pela nostalgia de uma cristandade medieval mitificada, os projetos de laicização dos Estados modernos, em particular o italiano, escondiam um objetivo bem diferente: uma radical descristianização.
Mas, em vez de um raio de sol, um violento temporal havia acompanhado a decisão de dotar o papado do instrumento de governo considerado idôneo para repelir esse ataque diabólico. Isso não significava, talvez, que, no desígnio divino sobre a história, estava prevista para a Igreja mais uma prova e ainda mais dolorosa?
Algumas semanas depois, no dia 20 de setembro de 1870, o Exército italiano entrava em Roma pela brecha da Porta Pia, reduzindo o papa, que havia se recusado a banir a cruzada contra os novos turcos, mas havia querido que ficasse evidente a todos que ele cedia os seus direitos soberanos somente por ter sido constrangido pela violência das armas, à miserável condição de “prisioneiro no Vaticano”.
Então, a cultura intransigente interpretou a tempestade do dia 18 de julho de 1870 como o prenúncio da consumação final dos tempos. Será que, no dia 28 de dezembro daquele ano, uma inundação nunca vista do Tibre não tinha posto de joelhos uma cidade que se preparava para receber Vittorio Emanuele II como novo soberano? Será que catástrofes naturais e desordens sociais, cuja frequência os novos meios de comunicação de massa continuamente noticiavam, não eram sinais evidentes de que a ira divina estava prestes a se derramar sobre os homens que haviam ousado se revoltar contra aquele que a decisão conciliar tinha transformado de “vigário de Pedro” em “vigário de Deus” na terra?
A espera pelo apocalipse durou alguns anos; depois, os intransigentes mudaram de registro: começou-se a pensar em como se valer dos novos instrumentos, incluindo também a constituição Pastor aeternus, para lançar o novo detentor da soberania, o laicato católico, à reconquista de uma sociedade moderna que escapara da direção eclesiástica.
Em vez disso, continuou muito mais fortemente uma abordagem à história que se obstinava em se desviar da pontual análise dos dados concretos, para se apoiar em uma visão figurativa, milagreira e providencialista das vicissitudes humanas. A celebração do centenário da Revolução Francesa em 1889 viu um florescimento dela.
Ao mesmo tempo, a história da Igreja também se profissionalizava, adaptando-se aos desenvolvimentos de um saber histórico que aspirava a se tornar ciência. Surgiu daí uma crescente lacuna entre os critérios de leitura da história hegemônicos na instituição eclesiástica e os métodos da moderna crítica histórica.
Para costurar novamente o rasgo, seria necessário um ex- professor de História Eclesiástica no Seminário de Bérgamo, que, tendo se tornado papa, se valia precisamente dos poderes sancionados no dia 18 de julho de 1870 para convocar um novo Concílio quase um século após a assembleia suspensa, sem encerrar os trabalhos, após a guerra franco-prussiana.
O Vaticano II, ciente de que uma eficaz presença da Igreja exigia a substituição do diálogo ao conflito com o mundo moderno, descobria que uma condição essencial para discernir os sinais dos tempos era uma profunda reavaliação da atitude em relação à história. Abria-se, assim, um caminho que, acelerado pelo Papa Francisco, ainda está em curso.
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Vaticano I: infalibilidade do papa e sinais dos tempos. Artigo de Daniele Menozzi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU