04 Julho 2020
"A minha luta só termina quando eu tiver a minha moradia. A PM tem a arma, mas eu tenho o direito legítimo. E, se me matarem, meus filhos lutarão por mim".
A reportagem é de Laura Capriglione e Lina Marinelli, publicada por Jornalistas Livres, 29-06-2020.
“Aqui tudo parece
Que era ainda construção
E já é ruína
Tudo é menino, menina
No olho da rua
O asfalto, a ponte, o viaduto
Ganindo pra lua
Nada continua” (Caetano Veloso)
O prédio localizado no número 103 da rua do Carmo, a poucos passos do marco zero da cidade de São Paulo, contém hoje 100 moradores equilibristas. São idosos, portadores de deficiências físicas e mentais, mulheres, algumas grávidas, e crianças, muitas crianças, vivendo em um prédio-símbolo da Arquitetura da Especulação de que a cidade de São Paulo está repleta. Monstro urbano à espera de valorização imobiliária, o edifício recebeu o apelido de “Caveirão” porque é praticamente um esqueleto de prédio: vigas de concreto recheadas de vergalhões de ferro e 23 lajes, imensas lajes, que foram construídas para abrigar automóveis. No projeto, o Caveirão seria um edifício-garagem.
Dançarinos no vácuo, equilibristas sem rede de proteção, os moradores do Caveirão se situam no último elo da cadeia alimentar que define quem come e quem é comido na cidade. Eles são os comidos. Todo o prédio ecoa a música evangélica que sai aos berros de um dos barracos – sim, dentro do esqueleto, os moradores construíram uma favela com os restos mortais de São Paulo (tapumes de obras, portas descartadas, caibros comidos por cupim). A música evangélica parece que fala com cada um dos equilibristas: “O Deus do Impossível não desistiu de mim. Sua [mão] destra me sustenta e me faz prevalecer…”
O prédio tem lixo espalhado por todo lado. São toneladas de dejetos, que os moradores tentam agora limpar. E está condenado. Em março de 2012 o engenheiro Merinio C. Salles Jr. atestou que “a estrutura vem sofrendo deterioração com o tempo, podendo vir a ruir, tendo em vista que sua estrutura de concreto armado já apresenta sua armadura exposta e sem condições de reparação, podendo assim vir a entrar em colapso causando grave acidente na região”. Mas o ruim tem ficado pior porque, nos últimos sete meses, o Caveirão está assombrado por 18 homens, soldados da PM, que aparecem todos os dias para esculachar os moradores, ameaçá-los e exigir que saiam do lugar. “Vai, sua puta, vagabunda, encosta na parede!” É pé na porta, humilhação das mulheres, destruição dos barracos, pontapés nas televisões e celulares esmigalhados sob os coturnos (para os moradores não filmarem a violência). Em um dos ataques, uma moradora com um bebê no colo e um cadeirante foram jogados no chão. Sofreram ainda com os efeitos do spray de pimenta. Os militares aparecem fardados, mas sem a identificação colada no uniforme.
Caveirão: policiais militares ameaçam moradores
Há relatos de tortura contra os homens, que são obrigados a deitar no chão, de bruços, mãos nas cabeças. Os soldados chutam os corpos e pisam neles. Uma moradora tomou choques elétricos no pescoço e nos bicos dos seios, a energia vinda dos varais de fios elétricos que percorrem a ocupação. Na terça-feira passada (23), os policiais chegaram pouco antes das 19h. Entraram de novo no prédio, sem mandado nem nada e, usando os métodos de milicianos, disseram que ou os moradores do Caveirão saíam por bem ou haveria mortes. Para reforçar a ameaça, rasgaram um colchão a facada, o talhe em forma de cruz. E deixaram o bilhete: “O prazo é hoje”. O Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos está oferecendo auxílio jurídico para as famílias ameaçadas.
O incrível em toda essa história do Caveirão da rua do Carmo é que o proprietário atual, Rivaldo Sant’anna, também chamado de “Rico”, que afirma ter comprado o prédio em 2009 por R$ 800 mil (cerca de 1,5 milhão de reais em valores de hoje), nem sequer possui decisão judicial apoiando sua pretensão de despejar as pessoas que lá residem.
Caveirão abriga vítimas de violência doméstica, como Elisângela (à esq.), que foi arremessada pelo ex-marido do 1º andar, quando estava grávida de 8 meses
Miseráveis, os moradores têm um histórico de dor e sofrimento bíblicos. Elisângela Neves David, 37 anos, sempre foi espancada pelo marido. Grávida de oito meses, ele a arremessou da varanda do apartamento em que viviam. Elisângela foi recolhida pelo SAMU. Vergada de dor, ouviu uma agente de saúde lhe perguntar:
–Você quer fugir?
Ela nem ouviu. Ela sentiu:
–Meu filho ainda está comigo? Minha filha está aqui?
–Sim!
–Quero!
“Era tudo o que eu precisava. Dali, eu fui levada para uma Casa-Abrigo, onde fiquei escondida.” Benjamim, o menino que Elisângela carregava no útero quando foi atacada pelo marido, sobreviveu. “Eu desapareci do mundo e, quando vi, estava aqui.”
Elisângela é auxiliar de enfermagem. Como há três anos não consegue pagar a taxa de anuidade do Conselho Regional de Enfermagem (R$ 172,45 em 2020), não pode exercer sua profissão. Ela vende, então, balas nos semáforos, trufas na porta da escola das filhas, o que der. Agora, em época de pandemia, está impossível trabalhar. As pessoas nem abrem o vidro dos carros, por medo de assalto e do contágio. “Da pobreza eu caí na degradação ”, diz Elisângela.
Valéria da Silva Nascimento, 43 anos, mãe de cinco, vive para o filho portador de deficiência, João Gabriel Henrique da Silva Dias, de 20 anos. Hoje músico e compositor, o jovem toca violão, guitarra, baixo, ukulele. Paraplégico, isso não o impediu de jogar basquete e tornar-se dançarino de hip hop. Na escola, escutou pela primeira vez Geraldo Vandré: “Pra Não Dizer que não falei das Flores”. Um professor tocava ao violão. “Eu me apaixonei e pedi para o professor me ensinar. Um dia ele me deu um violão. Eu chorei de alegria. Não parei mais de tocar.” Gabriel é um sujeito doce, com uma auto-estima de gigante. A mãe sempre o cumulou de amores, de olhares e cuidados. Para sobreviverem, ela cata reciclagem, compra e vende na feira do rolo, costura, lava roupa para fora, às vezes até para pessoas que moram em albergue.
Infância no Caveirão: O menino Samuel David, de 3 anos, é autista e sofre com problemas respiratórios. A mãe, Cristiana, já mora no prédio há 18 anos
Cristiana Alessandra Moreira, de 40 anos, tem dois filhos atualmente: Cauê, de 21 anos, e Samuel Davi, de três anos. Mas Cristiana pariu sete, dos quais cinco morreram logo. Mora no Caveirão há 18 anos, interrompidos quatro vezes por despejos. Voltou sempre. Ela precisa estar todo o tempo com o filho Samuel Davi, que é autista e sofre com problemas respiratórios. Da última vez que foi despejada, a Prefeitura pagou auxílio-aluguel para as famílias que viviam no Caveirão (R$ 400 por mês), mas o benefício foi cortado e Cristiana voltou para o prédio.
Cristiana sai de seu barraco por volta das 11h, com um vasilhame usado de margarina. Está repleto de urina. Samuel Davi, agitado, não deixou que ela dormisse a noite toda. O menino só se acalmou por volta das 5h, quando ela, enfim, descansou. A urina terá de ser despejada no térreo do prédio, porque o Caveirão não tem banheiros funcionando. Aquele que Cristiana construiu com as próprias mãos foi destruído pelos usuários de crack que ocuparam o prédio depois do despejo dos moradores e pela Polícia Militar.
O drama do Caveirão vem de longe. Em 1964, a Folha de S.Paulo publicou anúncio da construção de um edifício-garagem a poucos metros da praça da Sé. Era ele, o espigão da rua do Carmo, ainda em fase de vendas. Nessa época não existia nem o metrô. Mas havia edificações espetaculares e reluzentes de novas. Como a própria Catedral da Sé, inaugurada havia apenas 10 anos (a construção só seria finalizada em 1967). Ou o Fórum João Mendes Júnior, março histórico da cidade de São Paulo e símbolo da Justiça paulista. Pois o Fórum foi inaugurado em 1958, apenas seis anos antes do anúncio da Folha.
Anúncio publicado na “Folha”, em 1964: compre
sua garagem automática, por 50.000 cruzeiros
O novo empreendimento representava a crença inabalável daquele período de que as cidades do futuro seriam as cidades dos automóveis. Portanto, era preciso construir apartamentos, escritórios e edifícios-garagem, para armazenar gente e dezenas de milhares de veículos. No anúncio da Folha, lê-se que era possível tornar-se o feliz proprietário de uma vaga de carro a poucos metros da praça da Sé, com uma entrada de 50 mil cruzeiros, hoje equivalentes a 2 mil reais.
O fato é que as tais garagens jamais foram entregues e, inconclusas, resultaram em um dos retratos mais obscenamente explícitos da cupidez materialista na megalópole.
O Caveirão não tem telhado. Quando chove, chove dentro. Instalações sanitárias existem apenas no térreo. Porque carros não precisam delas. A polícia também fez questão de arrancar e destruir escadas e degraus que ligavam as lajes dos andares. Os moradores sobem e descem escalando escadas imaginárias ou banguelas, com degraus quebrados ou simplesmente faltando. Cristiana sobe e desce essas escadas surreais carregando os cilindros de oxigênio de que o filho Samuel Davi precisa para sobreviver.
Amor de mãe no Caveirão: Valéria e João Gabriel, paraplégico: o jovem está morando no prédio há um mês; para ele, é um “lugar maravilhoso”
João Gabriel, o filho paraplégico de Valéria, mudou-se para o Caveirão há um mês, depois que a mãe pavimentou o chão e construiu rampas para o trânsito da cadeira de rodas. “Pra mim, aqui é um lugar maravilhoso. Eu sinto uma alegria, uma união, um prazer. Aqui tenho amigos para conversar. Sei que posso contar com muitas pessoas aqui dentro e elas sabem que podem contar comigo também.”
“Eu sou muito feliz aqui dentro. E eu sofro por ver que o prédio está se acabando sem cuidado nenhum, o proprietário não o usa para nada, e a gente tem milhares de pessoas vivendo nas ruas”, diz Cristiana.
O drama das famílias do Caveirão é a condição de existência de milhares de pessoas na cidade de São Paulo. A Prefeitura de São Paulo calcula que, em 2019, havia 24.344 pessoas vivendo em situação de rua. Mas o Movimento Pop Rua calcula que o número correto seja superior a 32 mil pessoas. E segue crescendo à medida em que a inadimplência gera despejos por falta de pagamento de aluguel. E a rua é um terror, principalmente para as mulheres, conforme depoimento de Valéria:
“Eu sou uma ex-moradora de rua. Passei sete anos vivendo na rua. Você não pode fazer sua comida, você não pode trazer os seus filhos para a rua, você fica vulnerável, você é mal vista, você é apontada, as mulheres não têm valor nenhum. Se você arrumar um homem, ele vai te espancar, ele vai te estuprar, ele vai te usar. E se você não tiver força, você vai virar uma usuária de droga ou vai se prostituir. A rua é o último lugar. Não tem mais para onde cair quando você chega na rua. Por outro lado, ninguém quer viver em albergue. Porque no albergue você é maltratada, você é pisada, você é humilhada. Os funcionários dos albergues te tratam como lixo. A casa de parentes também não dá. O parente joga na tua cara, quando você tem filhos, maltrata os seus filhos. Vivendo na rua, a gente tem medo do Conselho Tutelar, a gente tem medo de tocarem fogo na gente, de estuprarem minhas filhas. Minha filha foi estuprada num abrigo. Eu achei que ela estava num lugar seguro e ela não estava. Eu sou costureira, sempre trabalhei. Já aluguei um cantinho, mas dali a pouco você é mandada embora do emprego e é despejada. Ninguém mora numa ocupação porque quer. Você mora ao lado de pessoas que não conhece, tem muito barulho, a luz cai, a polícia invade. Você tem mais medo do que qualquer outra coisa.
Mas é infinitamente melhor do que a rua.”
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Edifício Caveirão: entre ruínas e violência policial, mulheres lutam para não ir para a rua - Instituto Humanitas Unisinos - IHU