03 Mai 2018
“Limpam com fogo” foi uma das definições encontradas nos últimos anos para classificar aquilo que muitos chamam de gentrificação das cidades e de diversos bairros. Se centenas de incêndios serviram como abre alas do mercado imobiliário e seus empreendimentos, desta vez o fogo que fez desmoronar o antigo prédio da Polícia Federal no centro de São Paulo, ocupado por famílias miseráveis, marcou tragicamente o feriado de 1º de maio.
A reportagem é de Gabriel Brito, publicada por Correio da Cidadania, 02-05-2018.
“Entra para o histórico de grandes incêndios na cidade. Antigamente ficaram marcados os dos edifícios Joelma e Andraus, nos anos 70. Recentemente, temos vários, posso mencionar o da favela do Moinho, quando o próprio prédio do antigo moinho que ficava no meio dela desabou, e também a ocupação Douglas de Oliveira, quando um barracão caiu e matou duas pessoas”, disse ao Correio Benedito Barbosa, advogado do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos.
Conhecedor das dinâmicas que permeiam as relações sociais no centro da maior cidade do Brasil, Barbosa está vacinado com a postura tradicionalmente recalcitrante do poder público. Além de advogado, é vinculado à Central dos Movimentos Populares e até já foi preso ao prestar auxílio a moradores de ocupações que vez ou outra são despejadas.
“Na reunião de hoje (quarta, 2) já deixamos claro que não aceitamos transferência de responsabilidade. Os movimentos e ocupações são vítimas de falta de política, descontinuidade sistemática de projetos de moradia e outras ideias que não vão dar certo pra população de baixa renda, como a PPP do governo do estado, que não atende nem as famílias que moram no centro nem as de baixa renda”, criticou.
Apesar de tudo, a discussão estrutural pode esperar alguns dias. No plano imediato, fica a dúvida sobre o destino das famílias que habitavam o prédio, cujo desabamento deixou imagens que ficarão na memória coletiva.
No momento, há um acampamento de frente ao prédio, no largo do Paissandu, entre as avenidas Rio Branco e São João, coladas em diversas outras ocupações que eclodiram nos últimos anos, nem sempre de forma organizada.
“A impressão que fica é que pode ser fácil demais acontecer esse tipo de coisa, tanto pelo modo como se amontoam famílias como pelas condições da moradia. A chance é grande. Considerando as centenas de prédios ocupados, pode voltar a ocorrer”, analisou o engenheiro Carlos Augusto Kirchner.
Desse modo, parece inútil a discussão alimentada por setores conservadores e pouco afeitos aos grupos e militâncias populares, como simbolizou o ex-prefeito João Doria em suas declarações. Aliás, cabe lembrar que o prefeito que passou 15 meses fazendo marketing e destruindo serviços públicos permitiu a derrubada de um prédio com pessoas dentro, em sua farsesca cruzada contra a Cracolândia, cerca de 1km do prédio desabado.
A gritaria midiática, certamente, é tudo que os carentes de moradia não precisam. Estamos diante de um contexto que exige debate político de gente grande. E novamente a austeridade tão aclamada por tais “gestores” e os conglomerados de mídia precisa ser posta em xeque.
“Além de omissos, sabemos que nos últimos dois anos há uma paralisia dos programas habitacionais. O Minha Casa Minha Vida (MCMV) praticamente foi extinto. Não há repasse nem pra urbanização de favela e nem pra habitação de interesse social. O estado de São Paulo pendurou toda sua política de habitação na agenda do governo federal e hoje praticamente não tem política municipal. Colocaram 1 bilhão no orçamento, mas está congelado e não há política alguma. Por isso a tragédia”, ponderou Benedito Barbosa.
A respeito da insegurança da ocupação no prédio que veio abaixo, segundo as últimas notícias talvez por vazamento de botijão de gás em um dos 24 andares, trata-se de outro aspecto importante. O fato de a ocupação ser organizada por movimentos menos conhecidos, ou estruturados, pode mesmo ter sido um fator decisivo.
“Nas ocupações mais organizadas, a preocupação com a segurança é maior, mesmo porque custa caro embutir fiação, cuidar de parte hidráulica, instalar hidrantes, extintores, tal como fazemos nas ocupações onde ajudamos a organizar”, explicou Barbosa.
Mais uma vez, aqueles que vivem tal cotidiano apontam as responsabilidades da prefeitura.
“Isso depende muito da contribuição das famílias, que são de baixa renda. Quem deveria cuidar disso é a própria prefeitura, até porque com as reformas dos prédios os equipamentos poderiam continuar sendo aproveitados. Queremos saber se a prefeitura implantará brigadas de incêndio nesses prédios, pois havia um programa em parceria com a Defesa Civil na prefeitura anterior”, completou o advogado.
Com isso, fica evidente que a agora demonizada cobrança de mensalidades é praxe em diversos coletivos, sejam de ocupação de moradia, sejam de quaisquer outras pautas. Quem faz alarde são aqueles que atacam pela internet e uma certa mídia cujos protagonistas são autênticos alienados no que se refere às lutas sociais. Grosso modo, o jornalismo de estúdio e seus diletos empregados mal sabem o que é movimento social, muito menos possuem nomes de seus líderes em suas agendas em medida similar aos sempre solicitados “consultores de mercado”.
“Há quem aja legitimamente em favor das pessoas e tem quem se aproveita. Mas de toda forma a omissão do poder público fica notória, tanto pra levar a sério os movimentos que agem com correção como pra combater os que se aproveitam. O que não pode é tratar as pessoas como bandidas. São pobres, não têm onde morar e ainda se submetem a pessoas que se aproveitam. Mas não podemos achar que são salafrários pra todo lado, o que temos é gente desabrigada de direitos, sofredora, que se apega à primeira coisa que aparece”, defendeu Kirchner. Acima de tudo, o déficit habitacional é e continuará a ser tema recorrente na vida das grandes cidades brasileiras.
“São duas coisas: uma é que o poder público precisa ajudar as pessoas a ter moradia. E no centro, pois é próximo do local de trabalho de muita gente. A questão constitucional dos prédios que não cumprem sua função social não é bem administrada”, pontuou o engenheiro.
“O governo inverteu a prioridade e passou a focar em famílias de fora do centro. Precisa mudar isso, ver o quanto é possível atender no centro. Enquanto as moradias não saem, é preciso estabelecer uma agenda de segurança nas ocupações até que saiam as moradias, urgentemente”, observou Barbosa.
Outro ponto frequentemente polêmico é a viabilidade de se aproveitar os velhos edifícios do centro, cujo abandono e esvaziamento atinge a cifra de centenas. Para ambos os entrevistados, há condições de sobra para uso de tais prédios na solução do problema.
“Sabemos que os prédios são precários, mesmo com brigada de segurança etc. Conseguimos fazer só uma parte, o poder público precisa contribuir também, ao invés de só fazer ameaças de despejo. Claro que é possível reaproveitá-los com fins de moradia. Isso já acontece. Não adianta o governo dizer que não dá pra usar tais prédios. Dá sim, até porque já aconteceu isso com participação das três esferas de governo”, ressaltou Barbosa.
A depender de Kirchner, não falta respaldo técnico. “A discussão é antiga, existe tanto em nível nacional como local. Existem muitos prédios vazios no centro que estão preparados pra moradia e têm a condição adequada. Tem muita coisa a aproveitar em São Paulo nesse sentido, em vez de fazer moradia em lugares remotos. Uma vistoria em todos os prédios é necessária. Isso no curto prazo. A principal ação é a criação de oportunidades para as pessoas morarem. No Sindicato dos Engenheiros, sempre entendemos que ao investir na restauração e reformas teríamos extrema vantagem financeira”.
Mas, como sempre, há um mercado no meio do caminho. No fim das contas a questão dos sem tetos e do déficit habitacional não só segue pendente como se agrava por conta dos velhos interesses privados incrustados no Estado.
“O mercado não vai resolver, é preciso de política pública pra promover a moradia e a inclusão social. Mesmo o MCMV sempre considera unidades novas, por isso tivemos muita inflação no auge do financiamento deste programa e do mercado da construção civil, jogando moradias pra locais distantes. Tem cidades que mesmo timidamente já aproveitaram imóveis abandonados, sem IPTU em dia etc. Existem diversas opções a discutir na política habitacional. Dá pra fazer mais ações com menos dinheiro do que aquele gasto em construção de novos imóveis, que inflacionam ainda mais o mercado”, disse Kirchner.
De outro lado, a explosão de preços de imóveis e alugueis que São Paulo vivenciou desde a gestão Kassab, por sinal quase cassado justamente por financiamento privado de campanha por parte do setor imobiliário, é autoexplicativa.
“Precisamos de saídas razoáveis ao problema. A primeira é agilizar programas de habitação e contratar construções, com projetos de locação social e transferência de famílias pra moradias adequadas. Precisa de uma atuação mais rápida da prefeitura, tanto pra desbloquear recursos como para fazer urbanização de favelas e evitar outras tragédias pela cidade. As pessoas estão sem emprego, não conseguem pagar aluguel e naturalmente vão parar nas ocupações”, resumiu Barbosa.
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A queda do prédio ocupado e a moradia: "o mercado não resolverá e isso pode voltar a ocorrer" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU