10 Junho 2020
"As três principais razões doutrinárias para um sacerdócio exclusivamente masculino não precisam ser as únicas respostas a serem dadas. Imaginemos um espaço onde possamos explorar as muitas dimensões do sacerdócio. Imaginemos um espaço onde possamos mergulhar nas diversas imagens do Deus que nos chama a todos. Imaginemos um espaço onde possamos celebrar os chamados de Deus às mulheres como mulheres", escreve Jessie Bazan, organizadora e coautora de Dear Joan Chittister: Conversations with Women in the Church, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 09-06-2020. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
“Jessie, por que só homens podem ser padres?”
A pergunta de Tess acertou-me em cheio, como uma bola de golfe arremessada com toda força contra o meu peito.
Depois de alguns meses como coordenadora de pastoral em uma escola de ensino médio, eu já havia me acostumado a responder perguntas difíceis das crianças e jovens: Como funcionam os aparelhos de fax? O que significa encarnação? O personagem Jake pode realmente apagar esta vela com os dedos? Não sendo especialista em todas essas áreas, eu normalmente dou uma resposta vaga, deixo uma sugestão ou, em último caso, lanço uma ideia alternativa para se considerar. Aprendi que não importava se eu tinha, ou não, as respostas “certas”. O que importa mais para estes jovens é que eu leve a sério as perguntas que me fazem e me envolva, com honestidade, na conversa.
Com a pergunta de Tess não pôde ser diferente.
Desde o começo, a tradição da Igreja Católica sustenta que a ordenação sacerdotal é reservada somente para homens. Documentos papais citam três razões principais: as escrituras dizem que Jesus escolheu somente homens; a prática da Igreja tem sido a de imitar Cristo, escolhendo apenas homens; e a autoridade magisterial viva da Igreja defende que a exclusão feminina do sacerdócio faz parte do plano divino. Eu poderia ter dado essas razões como resposta à pergunta de Tess. Afinal, esta doutrina precisa ser defendida “como definitiva por todos os fiéis da Igreja”, como disse o Papa João Paulo II [em sua Carta Apostólica Ordinatio Sacerdotalis]. Para que não haja dúvida, reitera ele, a questão não está aberta ao debate.
Tentemos explicar isso a uma menina de 12 anos de idade, ou a uma teóloga feminista de 28 anos.
Diante de quase 100 alunos do ensino médio espalhados pelo ginásio paroquial, eu sabia que só recitar uma carta papal não bastaria. A doutrina sem diálogo é incompleta. Agradeci a Tess pela pergunta e incentivei o grupo dizendo que questionar é central para se descobrir ideias novas sobre a fé. Virei o jogo e perguntei a Tess o que o sacerdócio significava para ela. Depois de mencionar as três razões clássicas para um sacerdócio exclusivamente masculino, disse que também não me sinto bem diante dessa pergunta, e lembrei algumas santas que me ajudaram a seguir em frente. Terminei minha resposta afirmando que Deus chama as pessoas através do batismo para fazermos boas obras no mundo.
Nos dias seguintes, pensei diversas vezes nessa conversa. Fiz justiça a Tess? Ao magistério da Igreja? Fiz jus à pergunta em si? Algo em que não hesitei nenhum pouco foi dar atenção à pergunta feita pela jovem. Conheço a doutrina católica. Vinte e um anos de formação católica, incluindo três anos em um seminário, me deixaram conhecedora do código católico. Sei que o Vaticano tenta, há anos, interromper qualquer conversa que coloque “mulher” e “sacerdócio” na mesma frase.
Da mesma forma, conheço a profunda dor causada quando perguntas a respeito das nossas vocações acabam ignoradas. No Dia da Profissão, atividade realizada no jardim de infância, enquanto meus coleguinhas corriam pela sala apagando incêndios falsos e vendendo tiaras de princesas, eu desenhei a imagem de uma menina, alta e magra, que segurava uma cruz e uma vela. Aos 5 anos, decidi que queria me tornar padre. Queria falar de Jesus lá na posição frontal da igreja. Queria polvilhar meus amigos com água, distribuir o pão especial e inspirar as pessoas que perderam a esperança. A questão do Dia da Profissão foi refeita na quarta série: O que queremos ser quando crescer? Minha resposta continuava a mesma: quero ser padre. Do outro lado da sala, a professora riu: “Ó, Jessie”, disse ela, balançando a cabeça. “Você não pode. Meninas não podem ser padres nesta igreja”.
A autora fez esse desenho quando criança. Aos 5 anos, ela estava preparada para se tornar padre.
(Imagem concedida pela autora)
Confiem em mim: estas coisas doem.
Mensagens sutis e não tão sutis da Igreja Católica deixaram o meu chamado ao sacerdócio vazio ou invisível durante a maior parte da minha vida. Até a faculdade, poucos se envolveram em diálogo sobre o meu chamado. Há professores de quarta série e blogueiros conservadores que disseram explicitamente que não, que sou eu que estou errada. Que este meu chamado não existe. O que me foi mais prejudicial foram as mensagens implícitas. Fui formada para deixar de lado o meu chamado. Nunca ver uma mulher perto do altar me diz que eu não pertenço a esse lugar. Nunca ouvir que Deus chamou “ela” me diz que não fui feita à imagem e semelhança do divino, pelo menos não como foram os meus colegas meninos. Nunca se falar de mulheres como ministras me diz que eu não tinha a autoridade para presidir, pregar, abençoar ou batizar.
Hoje, sei que o silêncio não nos preenche. Ele engana.
Prestamos um desserviço aos jovens e adultos quando ignoramos suas vocações e as dúvidas. Em vez disso, acredito que devemos criar espaços para compartilharmos as ideias. Quero que as Tesses – e as Jessies – sejam incentivadas a explorar as profundezas de nossos chamados e sonhar alto, quer estes sonhos terminem com colarinhos ao redor do pescoço, quer não. Há tanta coisa boa, tanta cura que advém ao falar de nossas verdades e ouvir as verdades dos outros.
Faz sentido para a Igreja acender as faíscas de conversas sagradas como esta. Os católicos são um povo mergulhado em conversas sagradas. Desde os concílios vaticanos às horas de descontração, o Povo de Deus se reúne para falar as nossas verdades. Falamos nos estudos das Escrituras e nas esquinas. Falamos durante vésperas e nos passeios em vans lotadas. O Verbo se torna Carne, dando ao divino uma voz humana, ouvidos humanos e um coração humano.
Falamos como aquele que buscamos.
Obviamente, o diálogo entre trapalhões fica rapidamente confuso. As dúvidas em torno do sacerdócio são complexas e mexem com as emoções. Este tema cutuca o núcleo da vocação de alguns. Atrapalha o status quo de outros. Não nos envolver na questão é o caminho mais fácil – mas fácil não é jeito cristão. Basta perguntar ao Verbo que sofreu e morreu na cruz e depois ressuscitou. Modelados segundo esta imagem e semelhança, somos um povo que adentra o mistério, e não que dele se afasta. Em voz alta, formulamos as perguntas que agitam nossas entranhas: Meu Deus, Meu Deus, por que me abandonaste? Por acaso sou o guarda do meu irmão? E vocês, quem dizem que eu sou? Por que só os homens podem ser padres de verdade?
Dúvidas inflamam a fé dos crentes desde sempre. As faíscas de cuidado e curiosidade incendeiam a alma que busca a santidade. É minha responsabilidade privilegiada como agente pastoral abanar as chamas dos meus companheiros de busca, não as extinguir. A pergunta de Tess merece um diálogo porque Tess é um ser humano com uma dignidade que a tradição cristã exige que se reconheça. Não posso honrar sua dignidade ignorando sua dúvida. Essas ações não combinam. A doutrina também merece diálogo, se pretende realmente servir de guia para a vida e não ser relegada a apenas palavras sobre uma página.
Quero enfatizar que promovo um diálogo em torno da pergunta de Tess. O então Papa João Paulo II lamentou os debates travados sobre o tema da mulher e do sacerdócio em sua carta apostólica de 1994, Ordinatio Sacerdotalis (“Sobre a ordenação sacerdotal reservada somente aos homens”). Ao final, ele escreve:
“Embora a doutrina sobre a ordenação sacerdotal que deve reservar-se somente aos homens se mantenha na Tradição constante e universal da Igreja e seja firmemente ensinada pelo Magistério nos documentos mais recentes, todavia atualmente em diversos lugares continua-se a retê-la como discutível”.
Esse papa, assim como os que ocuparam a Cátedra de Pedro antes e depois dele, preocupa-se com o fato de as pessoas estarem tentando debater a legitimidade da doutrina. De fato, há muitos neste campo: católicos que acreditam que este ensino é injusto, que discordam de seu raciocínio teológico ou advogam por um sacramento mais inclusivo. Posso entender por que o papa, encarregado de preservar os ensinamentos da Igreja, se sentisse ameaçado por pedidos de mudança como esses. Mas debates e diálogos são diferentes.
O objetivo de um debate é defender uma opinião e criticar os argumentos em contrário. Em lados diferentes da questão debatida, os participantes se confrontam. Estar certo importa mais do que estar em uma relação. Em um debate, os sentimentos não têm valor. Esse modo de comunicação visa encontrar falhas no argumento opositor, não facilitar a conversa. Concordo com o Papa João Paulo II: abrir ao debate essa questão delicada não é por onde devemos começar.
Por outro lado, o diálogo incentiva as pessoas a crescerem na relação umas com as outras. Falamos com o outro, não contra ele. Surgem dúvidas, como: Quem é esse outro que fala comigo? O que posso aprender com as experiências dele? Temos alguma experiência ou ponto de acordo em comum? Os diálogos criam espaço para a diversidade de opiniões. O objetivo do diálogo é desenvolver uma compreensão mais profunda dos sentimentos e pensamentos de um ser humano – e provavelmente de si mesmo ao longo do processo. Que outra maneira seria melhor de honrar a dignidade de alguém do que travando um diálogo honesto?
Mais uma vez, aqui não focalizo o debate sobre se as mulheres devem ou não ser ordenadas. Pelo contrário, proponho o diálogo sobre uma questão vocacional real. Quero que agentes pastorais, pais e professores sejam equipados com ideias criativas para responder à pergunta que inevitavelmente lhes é feita, de uma forma ou de outra, durante cada unidade dos sacramentos: Quem pode ser padre e por quê?
Embora faça sentido que elas sejam parte da resposta, as três principais razões doutrinárias para um sacerdócio exclusivamente masculino não precisam ser as únicas respostas a serem dadas. Imaginemos um espaço onde possamos explorar as muitas dimensões do sacerdócio. Imaginemos um espaço onde possamos mergulhar nas diversas imagens do Deus que nos chama a todos. Imaginemos um espaço onde possamos celebrar os chamados de Deus às mulheres como mulheres. Imaginemos um espaço em que afirmamos o chamado de todos os batizados para que sejam ministros sacramentais e proféticos. Imagine as maneiras pelas quais esse diálogo poderia animar a Igreja, os jovens e idosos.
O Papa João Paulo II o diz com perfeição: esse é um “assunto de máxima importância”. Como outros assuntos de grande importância – a vida, a morte, a ressurreição, por exemplo –, o diálogo sobre a vocação e o chamado abana as chamas da fé naqueles que buscam a verdade.
Imaginemos o que acontecerá quando deixarmos as faíscas voarem.
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Conversas com meninas católicas sobre o sacerdócio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU