19 Mai 2020
Mais de 40 instituições religiosas se comprometeram a desinvestir suas finanças em combustíveis fósseis e, ao mesmo tempo, a pedir que a recuperação econômica pós-pandemia mude o foco do mundo para um futuro de baixo carbono.
A reportagem é de Brian Roewe, publicada por National Catholic Reporter, 18-05-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O anúncio foi feito em Roma no dia 18 de maio, no início da Semana Laudato Si’, a celebração promovida pelo Vaticano pelo quinto aniversário da encíclica do Papa Francisco sobre a ecologia, “Laudato si’, sobre o cuidado da casa comum”.
Um total de 42 organizações religiosas de 14 países comprometeram-se a desinvestir em empresas de combustíveis fósseis ou evitar tais investimentos no futuro. Os organizadores disseram que isso representa o maior anúncio de desinvestimento conjunto das comunidades até hoje.
As instituições são uma mistura de metodistas, anglicanos, quakers, budistas e católicos, e estes últimos são responsáveis por 24 dos grupos de desinvestimento. Sete estão localizados na Irlanda e cinco na América do Sul. Eles incluem oito organizações leigas, oito ordens religiosas e quatro dioceses: a Diocese de São José dos Campos, Brasil; a Arquidiocese de Semarang, Indonésia; a Diocese de Ossory, Irlanda; e a Diocese de Arundel e Brighton, Inglaterra.
A diocese inglesa se torna a terceira deste ano no Reino Unido, sede da próxima cúpula climática das Nações Unidas, agora adiada, a anunciar seus planos de desinvestimento. Os jesuítas da Grã-Bretanha, que também fazem parte do compromisso conjunto, se comprometeram em fevereiro a desinvestir seu portfólio de 517,5 milhões de dólares em empresas de petróleo, carvão e gás.
O desinvestimento em combustíveis fósseis tornou-se uma das principais campanhas de base para limitar as mudanças climáticas abaixo dos níveis catastróficos. A poluição de carbono emitida pela queima de carvão, petróleo e gás é o principal fator que impulsiona as temperaturas globais para mais de 1ºC desde o fim dos anos 1800 e da Revolução Industrial. Cientistas climáticos afirmaram que reduzir as emissões nesta década é fundamental para manter o aumento da temperatura em 1,5ºC e evitar a devastação irreversível de comunidades e ecossistemas.
O anúncio conjunto de maio foi organizado pela Operação Noah, um grupo climático cristão com sede no Reino Unido, e pelo Movimento Católico Global pelo Clima, que coordena anúncios semelhantes desde 2016 como parte de sua campanha de desinvestimento por parte da Igreja.
Um comunicado de imprensa anunciando a decisão de desinvestimento a enquadra no atual contexto da pandemia do coronavírus, que levou a mais de 312.000 mortes e provocou grandes perturbações nas economias globais. As comunidades religiosas instam os governos a buscarem planos de recuperação econômica justos e de baixo carbono que priorizem a sustentabilidade e o bem-estar de todas as pessoas e do ambiente, particularmente as comunidades com maior risco de sofrer os impactos das mudanças climáticas.
Entre os que pedem o desinvestimento está a Comissão Episcopal Justiça e Paz da Conferência dos Bispos de Bangladesh. O país densamente povoado e de baixa altitude está entre os mais vulneráveis às mudanças climáticas. Inundações mais frequentes e a elevação dos mares ameaçam deslocar até 30 milhões de pessoas em um país que abriga o maior campo de refugiados do mundo.
O Pe. Endra Wijayanta, diretor da Comissão de Justiça, Paz e Integridade da Criação da Arquidiocese de Semarang, disse que a pandemia apresenta “o momento exato para refletir novamente sobre o nosso modo de viver e de construir a nossa civilização humana”, que, durante quase 150 anos, se desenvolveu através da queima de combustíveis fósseis.
“Temos que parar a nossa espiral ecológica da morte. Temos que reavivar a esperança ecológica, em um grande arrependimento da humanidade, seguindo o caminho de uma vida mais sustentável e mais solidária com as outras criaturas”, disse ele em um comunicado.
No 16 de maio, vários grupos católicos fizeram parte de uma coalizão de organizações religiosas estadunidenses que se uniram à campanha global que pressiona o Banco Mundial a eliminar progressivamente os empréstimos financeiros à indústria dos combustíveis fósseis e a mudar os investimentos para melhorar o acesso a fontes de energia renováveis.
Com o mais recente anúncio de desinvestimento, mais de 180 organizações católicas declararam publicamente sua intenção de remover ou de nunca permitir a presença de títulos de combustíveis fósseis nas carteiras de investimentos e doações.
Desde 2012, o movimento de desinvestimento em combustíveis fósseis mobilizou mais de 14 trilhões de dólares em compromissos por parte de quase 1.200 organizações, governos, empresas, instituições de ensino e organizações sem fins lucrativos. As comunidades religiosas, com 30%, representam a maior parte das promessas de desinvestimento.
A maior parte dos grupos católicos que estão desinvestindo são as ordens religiosas, representando cerca de um quinto das promessas.
Em abril de 2018, a Caritas Internationalis, a rede de ajuda humanitária da Igreja global, anunciou que iria desinvestir. Outros capítulos da Cáritas e de agências de desenvolvimento católicas também o fizeram. Na Irlanda, a Trocaire, que prometeu desinvestir em 2016, teve um papel crítico ao tornar a ilha a primeira nação a acabar com as participações financeiras na indústria dos combustíveis fósseis.
Cerca de duas dezenas de dioceses se comprometeram com o desinvestimento, incluindo a Diocese de Assis, na Itália, lar de São Francisco de Assis, padroeiro da ecologia.
Junto com os bispos de Bangladesh, oito Conferências Episcopais passaram a desinvestir, começando com os bispos belgas em 2017. A eles se juntaram as Conferências Episcopais da Áustria, Grécia, Irlanda e Filipinas.
Além disso, a Associação das Conferências Episcopais da África Oriental – que representa as Conferências Episcopais de Djibuti, Eritreia, Etiópia, Quênia, Malawi, Somália, Sudão, Sudão, Tanzânia, Uganda e Zâmbia – anunciou em setembro que também iria desinvestir.
No início deste ano, a Georgetown University se tornou talvez a maior instituição católica estadunidense a se comprometer com o desinvestimento total. Ela seguiu as medidas da Universidade de Dayton e da Universidade de Seattle. Mais de uma dezena de campanhas lideradas pelos estudantes continuam em outros campi católicos dos EUA. Em fevereiro, a Creigton University disse que iria desinvestir parcialmente.
Em abril, 22 organizações católicas que controlam 40 bilhões de dólares em ativos coletivos assinaram o Catholic Impact Investing Pledge [Contrato de Investimento de Impacto Católico], que as compromete a “ir além da triagem negativa” e a procurar oportunidades de investimento “que forneçam retornos financeiros e, ao mesmo tempo, criem resultados ambientais mensuráveis, positivos e sociais a serviço dos povos e do planeta”.
Nenhuma diocese católica dos EUA anunciou publicamente planos para acabar com os laços financeiros com a indústria dos combustíveis fósseis. Em sua declaração pastoral de 2019 sobre a Laudato si’, os bispos da Califórnia se comprometeram a explorar oportunidades de desinvestimento em combustíveis fósseis.
Embora Francisco não tenha abordado diretamente a questão do desinvestimento em sua encíclica social de 2015, muitos grupos católicos que tomaram essa medida enraizaram sua decisão naquela mensagem.
“Sabemos que a tecnologia baseada nos combustíveis fósseis – altamente poluentes, sobretudo o carvão mas também o petróleo e, em menor medida, o gás – deve ser, progressivamente e sem demora, substituída”, escreveu o papa na Laudato si’. Ele repetidamente transmitiu essa mensagem, inclusive em seu discurso de 2019 para o Dia Mundial de Oração pelo Cuidado da Criação.
Em outubro de 2019, os bispos do Sínodo Amazônico, em seu documento final, pediram que a Igreja da Amazônia apoiasse e participasse de campanhas de desinvestimento em relação às indústrias extrativas e outras empresas que causam danos socioecológicos, e defendeu “uma transição energética radical e a busca de alternativas”.
O Vaticano permaneceu em silêncio sobre quaisquer investimentos potenciais em combustíveis fósseis mantidos pelo banco vaticano, formalmente conhecido como Instituto para as Obras de Religião. Mas isso não impediu os pedidos de desinvestimento da Santa Sé.
O arcebispo Peter Chong, de Fiji, presidente da Federação das Conferências Episcopais da Oceania, instou em 2018 o banco vaticano “a considerar como ele também pode desempenhar um papel no movimento de desinvestimento, um movimento que está dando tanta esperança para tantas pessoas”.
Em seu lançamento na Jornada Mundial da Juventude do Panamá em 2019, a Geração Laudato Si’, uma ramificação jovem do Movimento Católico Global pelo Clima, divulgou um manifesto climático às lideranças da Igreja que pedia que os bispos e as lideranças eclesiais “acelerassem a implementação da Laudato si’”, em parte “adotando diretrizes éticas de investimento afastando os ativos dos combustíveis fósseis”.
Meses antes, os participantes do Sínodo vaticano sobre os jovens disseram em seu documento final que a Laudato si’ aponta para um modelo econômico diferente e mais sustentável, e instou a Igreja “a ser profética neste campo, com as palavras mas sobretudo através de opções que mostrem a possibilidade de uma economia amiga da pessoa e do meio ambiente”.
“Numa Igreja onde a economia e as finanças são vividas com transparência e de forma coerente, os jovens sentem-se em casa”, afirmou o documento final.
A campanha de desinvestimento acendeu um debate sobre a melhor abordagem a ser adotada em relação a empresas baseadas na extração de carvão, petróleo e gás natural: é melhor se envolver com elas como acionistas ou cortar totalmente os laços financeiros?
No início deste ano, como parte de um esforço contínuo para alinhar os investimentos com os seus valores, o NCR transferiu seu portfólio para a gestão do Christian Brothers Investment Services (CBIS).
O CBIS não desinvestiu em combustíveis fósseis, oferecendo este resumo das suas razões: “O CBIS respeita a decisão de desinvestir, mas acreditamos que um engajamento sólido e substancial com as empresas é uma maneira mais eficaz de reduzir as emissões de CO2 e criar um futuro energético global mais limpo”. A organização descreve seus motivos em detalhes aqui [em inglês].
Como as participações do NCR estão agora misturadas com as do CBIS, isso significa que o NCR também está investindo em combustíveis fósseis.
O presidente e CEO do NCR, Thomas C. Fox, emitiu a seguinte declaração sobre as políticas de investimento da empresa:
“A National Catholic Reporter Publishing Company filtrou seus investimentos durante décadas para sustentar os ensinamentos sociais católicos. Ao longo dos anos, ela evitou investir em ações relacionadas à pornografia, abortivos, violência (armas e armas de destruição em massa) e tabaco.
“Atualmente, o Conselho de Administração do NCR está reexaminando seu portfólio, considerando a melhor forma de lidar com a questão dos combustíveis fósseis. O comitê executivo do conselho de administração planeja discutir o assunto no próximo mês.”
Os proponentes da defesa dos acionistas, incluindo inúmeras organizações católicas e religiosas de gestão de dinheiro, como o Interfaith Center on Corporate Responsibility, acreditam que manter um assento à mesa oferece uma oportunidade de estimular mudanças a partir de dentro, argumentando que algumas das mesmas empresas em relação às quais os grupos estão desinvestindo, estão, elas mesmas, investindo em tecnologia de energia limpa. Eles apontam para sucessos na indústria do tabaco e até algumas medidas nas empresas de energia.
O papa já recebeu chefes das principais empresas de energia do mundo no Vaticano nos últimos dois anos, reuniões organizadas com a Universidade de Notre Dame. Ele não abordou o chamado dos bispos para o desinvestimento na sua exortação apostólica sobre o Sínodo Amazônico, “Querida Amazônia”.
Os defensores do desinvestimento contestam que as empresas de combustíveis fósseis continuem investindo em novos projetos de extração e oleodutos, mesmo que algumas tenham se comprometido a agir sobre as mudanças climáticas. Os defensores dessa abordagem também destacam os relatórios anuais das empresas petrolíferas que indicaram um impacto de desinvestimento nos balanços financeiros, e que as grandes empresas de investimento, como a BlackRock, disseram que irão calcular os riscos climáticos como componentes centrais das estratégias de investimento.
Um relatório da Operação Noah sobre investimentos das Igrejas em empresas petrolíferas descobriu que algumas das principais empresas petrolíferas do mundo não estavam alinhadas com as metas de emissões do Acordo de Paris, com a expectativa de que a indústria gastará trilhões de dólares na próxima década em novos projetos de exploração e extração.
Os preços do petróleo despencaram durante a pandemia. Prevê-se que as usinas a carvão dos EUA fornecerão menos de 20% da eletricidade da nação este ano e, pela primeira vez, produzirão menos energia do que a gerada por fontes de energia renováveis.
Stephen Schneck, diretor executivo da Franciscan Action Network, parte do último anúncio de desinvestimento, disse ao EarthBeat que era importante para a comunidade religiosa “dar esse passo simbólico”, de acordo com os ensinamentos sobre o cuidado da criação.
“Eu acho que neste quinto ano da Laudato si’, todos nós reconhecemos que os investimentos também são decisões morais. E o modo como investimos precisa refletir os valores aos quais nossas organizações estão associadas. E a Laudato si’ deixou perfeitamente clara a conexão entre os combustíveis fósseis e a devastação realmente global”, afirmou.
Outros grupos católicos presentes na promessa de desinvestimento são:
• Na Argentina, a Associação Civil Eco Raíces e o capítulo local do Movimento Católico Global pelo Clima;
• Na Austrália, Christian Life Community;
• Na Colômbia, a Confederação Interamericana de Educação Católica;
• No Equador, o Secretariado Latino-Americano MIEC-JEC;
• Na Irlanda, o Marino Institute of Education Trust Fund, as Irmãs Missionárias de São Columbano, a província da Pequena Companhia de Maria, a Creedon Educational Trust, a província da Ordem de Santo Agostinho e a Província Europeia dos Irmãos Cristãos;
• Na Itália, a Fundação MAGIS e Pro Civitate Christiana;
• No Quênia, a Universidade Católica da África Oriental;
• Em Myanmar, a Karuna Mission Social Solidarity da Cáritas Myanmar;
• Na Espanha, a ordem religiosa das Hermanitas de la Asunción;
• No Reino Unido, província das Irmãs de São José da Paz.
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Mais de 40 grupos religiosos de 14 países anunciam desinvestimento em combustíveis fósseis - Instituto Humanitas Unisinos - IHU