30 Abril 2020
A pandemia está provocando mudanças nas relações entre a Santa Sé e a Europa, os Estados Unidos e a China.
A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, em artigo publicado em La Croix International, 29-04-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A pandemia da Covid-19 terá um impacto sobre a ordem mundial e as relações internacionais e, é claro, também sobre a Igreja Católica.
O papado se destaca como um ponto de referência global. Isso ocorre em parte porque a maioria dos líderes mundiais perdeu credibilidade.
Mas também porque o papa Francisco, desde o início do seu pontificado, articula continuamente a visão da única família humana neste único mundo: um mundo feito de fronteiras que podem se tornar limiares para novas relações humanas.
Nos últimos anos, o magistério papal abriu caminho para um “processo de paz global” – da Laudato si’ (a encíclica de 2015 sobre o cuidado da casa comum) ao Documento sobre a Fraternidade Humana (coassinado por Francisco e pelo Grão-Imã de al-Azhar, Ahmad al-Tayyeb, em Abu Dhabi, no dia 4 de fevereiro de 2019).
A letra e o espírito desses textos extraordinários não poderiam ser mais visivelmente diferentes das políticas dos homens fortes que atualmente lideram governos em lugares como Estados Unidos, Rússia, Índia, Turquia e Brasil.
Não sabemos o que acontecerá com a ordem mundial quando a pandemia terminar. O fim desta crise global pode ser uma lombada ou um desvio.
Mas, provavelmente, ela parecerá menos com a recessão global de 2008 e mais com o ano de 1919 – abrindo para uma nova ordem mundial com consequências muito diferentes em países diferentes.
Na Itália, isso significou a ascensão do governo fascista entre 1922-1925 e por duas décadas até o fim da Segunda Guerra Mundial. Por outro lado, Bento XV articulou uma nova doutrina católica sobre as missões, com a sua encíclica Maximum Illud, de 1919. Isso demarcou a independência da Igreja Católica das aventuras nacionalistas e colonialistas.
Os anos 1920 também marcaram uma aceleração da tradição católica no sentido de favorecer o multilateralismo. Apesar de todas as incertezas, sabemos onde está a espinha dorsal do ensino católico contemporâneo sobre os direitos humanos, a migração, a economia, a globalização e o ambiente.
Já podemos ver que a crise global da saúde confirmou a interpretação do Papa Francisco sobre os nossos tempos como uma disrupção da globalização. Há uma crise inegável das instituições multilaterais.
Como escreveram recentemente Gaïdz Minassian e Marc Semo no Le Monde, essa crise é “velha, profunda e agora mais evidente do que nunca”.
Existem diversas formas de olhar para as consequências da pandemia sobre a ordem mundial. Alguns veem este momento como uma crise do internacionalismo em termos de tentar parar a globalização como o caminho para a prosperidade.
“A pandemia provocou um anacronismo, um renascimento da cidade murada em uma era em que a prosperidade depende do comércio e do movimento globais de pessoas. As democracias do mundo precisam defender e sustentar seus valores iluministas”, escreveu o ex-secretário de Estado dos EUA Henry Kissinger em um artigo publicado no Wall Street Journal.
Outros dizem que estamos testemunhando uma ameaça ao modelo democrático liberal, dado “o triunfo das democracias não individualistas na Ásia”. É uma ameaça que também está surgindo em alguns países da Europa.
Independentemente de como se olhe para ela, a pandemia certamente poderia acelerar as mudanças no equilíbrio de poder em determinadas partes do mundo.
A maior questão diz respeito às relações entre a Europa, os Estados Unidos e a China. O Vaticano já teve que adaptar significativamente o seu posicionamento geopolítico em relação a a três entidades nos últimos anos, especialmente após a eleição de Trump e graças ao acordo epocal entre a Santa Sé e o governo chinês sobre a nomeação de bispos em setembro de 2018.
Não há dúvida de que a resposta à pandemia aprofundou a crise da liderança estadunidense no mundo. A legitimidade dos Estados Unidos como um líder global sempre se baseou em um governo doméstico estável, na provisão de bens públicos globais e na capacidade (e disposição) de coordenar uma resposta global às crises.
“A pandemia do coronavírus está testando todos os três elementos da liderança dos EUA. Até agora, Washington está fracassando no teste”, disseram dois especialistas estadunidenses sobre a Ásia, em um artigo recente publicado na revista Foreign Affairs.
Do outro lado do Atlântico, a União Europeia está em um momento crucial para a sua sobrevivência. De forma semelhante, vários países do Velho Continente, que são vitais para a Igreja Católica, estão em um ponto de virada.
A Alemanha, por exemplo, em breve verá a aposentadoria de Angela Merkel e a possível ascensão de um tipo muito diferente de líder do partido democrata-cristão, como Friedrich Merz. Isso colocaria a nação mais poderosa da Europa em um caminho muito mais conservador.
E o que vai acontecer na Ásia?
“A Covid-19 também acelerará a mudança em termos de poder e de influência do Ocidente para o Oriente”, escreveu Stephen Walt na revista Foreign Policy.
“A Coreia do Sul e a Cingapura responderam melhor, e a China reagiu bem após seus primeiros erros. A resposta na Europa e nos Estados Unidos tem sido lenta e aleatória comparativamente, manchando ainda mais a aura da ‘marca’ ocidental”, disse ele. Alguns especialistas preveem que a gestão da pandemia pode ser o começo de um levante para a China comunista. A Igreja Católica está observando com grande preocupação o papel que a China está desempenhando nas relações internacionais.
Pequim tem conduzido uma campanha de poder suave muito agressiva que tem dividido a Europa. Os países da Europa oriental (membros e não membros da União Europeia) começaram a adotar a liderança chinesa quando começaram a receber ajuda do governo chinês.
Qual tem sido a resposta da Santa Sé a essa situação que muda muito rapidamente? À primeira vista, parece que ela está reagindo favoravelmente ao charme chinês de forma semelhante à de alguns países europeus (incluindo a Itália). Mas, olhando com mais cuidado, detecta-se uma abordagem muito mais nuançada e sutil. Declarações vaticanas agradecendo à China no início de abril por enviar ajuda e suprimentos para combater o coronavírus são um exemplo disso.
Nas páginas do L’Osservatore Romano e nos comunicados da Sala de Imprensa da Santa Sé, o Vaticano expressou especificamente o seu agradecimento à “Sociedade da Cruz Vermelha da China e à Fundação de Caridade Hebei Jinde”, assim como “aos bispos, aos fiéis católicos, às instituições e a todos os outros cidadãos chineses”. O esforço para elaborar bem as palavras visava claramente a evitar qualquer interpretação da declaração de gratidão do Vaticano como um endosso a Pequim.
Essa abordagem também visa a contrabalançar as opiniões de alguns católicos proeminentes em todo o mundo que veem o papel da China de uma forma muito mais negativa. O cardeal Charles Bo, de Mianmar, por exemplo, adotou uma postura pública muito diferente e muito forte contra o regime chinês, conectando o tratamento dado por ele à pandemia com o seu histórico em relação aos direitos humanos e à liberdade religiosa.
Mais importante ainda, o Vaticano não seguiu o mesmo caminho de outros países ocidentais na sua retirada para o provincialismo e o paroquialismo, que fazem parte do colapso intelectual das elites políticas. Muito pelo contrário. Francisco investiu mais energia e atenção na diplomacia vaticana. Ele apresentou um novo modelo para treinar futuros diplomatas papais e instituiu uma “terceira seção” dentro da Secretaria de Estado para lidar explicitamente com os núncios papais. Se a pandemia reduziu temporariamente o funcionamento dos escritórios vaticanos no Vaticano, incluindo a Secretaria de Estado, há mudanças que preparam o futuro.
Nas últimas semanas, o papa e seus assessores vaticanos se concentraram na União Europeia. “Entre as tantas áreas do mundo atingidas pelo coronavírus, eu dirijo um pensamento especial à Europa”, disse Francisco durante o seu discurso “Urbi et Orbi” na Páscoa. “Hoje, a União Europeia tem diante de si um desafio epocal, do qual dependerá não apenas o seu futuro, mas também o do mundo inteiro”, alertou. Francisco está falando mais diretamente com a Europa do que possivelmente poderia falar com os Estados Unidos ou a China. É surpreendente que, sob a liderança do papa latino-americano, a Santa Sé tenha redescoberto a importância e a necessidade de sobrevivência da União Europeia.
Outra evidência do foco de Francisco no Velho Continente durante a pandemia foi a sua oração pela unidade europeia na missa em Santa Marta no dia 29 de abril, festa de Santa Catarina de Siena, copadroeira da Europa.
Essa nova atenção surge após anos de ceticismo liderado pelo Vaticano em relação às instituições europeias que eram percebidas como tecnocráticas e secularistas.
A pandemia do coronavírus está levantando questões sobre a viabilidade de um conjunto de ideias e valores políticos que moldaram a ordem internacional no mundo pós-1945.
Em relação ao ensino e ao entendimento da humanidade por parte da Igreja Católica, alguns deles são evidentes.
Eles incluem a defesa do multilateralismo sobre o nacionalismo; a crença de que a democracia constitucional, em vez da ditadura e do autoritarismo, é mais compatível com o Evangelho; e um compromisso com o trabalho da Igreja pela paz e pelo desarmamento, assim como pela justiça social e econômica internacional, no marco de uma cultura da vida.
Em outras questões, a postura do Vaticano será mais difícil de prever.
O alinhamento pós-1945 entre o catolicismo e a geopolítica da Otan foi radicalmente questionada após as consequências do 11 de setembro e, ultimamente, pelo governo Trump.
Ainda não está claro qual será o significado da abertura diplomática da Santa Sé à China em longo prazo. E ela enfrenta outros desafios no modo de lidar com as novas divisões ideológicas entre a Europa oriental e ocidental.
Comparada com as pandemias anteriores, a liberdade religiosa tornou-se uma questão emergente para a Igreja Católica em alguns países não afetados realmente pelas guerras culturais. Na Itália, por exemplo, tem havido tensões crescentes entre a Conferência dos Bispos e o governo nacional
A pandemia criou uma situação de grande incerteza nas relações internacionais. E o papado e a diplomacia do Vaticano precisam navegar nisso.
A diferença é que o catolicismo não sofre da mesma incerteza em termos de doutrina: não existe nenhum vácuo real no modo como o magistério da Igreja olha o mundo global moderno. É uma doutrina que foi temperada por uma série de choques históricos que tiveram consequências sobre o desenvolvimento teológico e magisterial: a queda dos Estados papais em 1870; as duas Guerras Mundiais e suas consequências; a ilusão de uma ordem mundial liberal inquestionável no fim da Guerra Fria; a instabilidade pós-11 de setembro…
Comparada aos botes salva-vidas ideológicos que pontilham o horizonte de hoje, a barca de Pedro tem maior estabilidade. A grande questão é até que ponto a doutrina social vaticana será capaz de influenciar os católicos em seus próprios contextos locais e nacionais.
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O Vaticano e a ordem mundial pós-pandemia. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU