05 Março 2020
Em um dia comum, o homem indicado pelo Papa Francisco para lidar com os migrantes tem uma caixa de documentos empilhados sobre a sua mesa: desde a coordenação do lançamento de um documento papal sobre a região amazônica até um apelo para que as Conferências Episcopais de toda a Europa ajudem os requerentes de asilo.
A reportagem é de Inés San Martín, publicada em Crux, 03-03-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
No entanto, o cardeal jesuíta Michael Czerny, subsecretário da Seção de Migrantes e Refugiados do Dicastério para a Promoção do Desenvolvimento Humano Integral – um escritório que responde diretamente ao papa –, tem algo mais que o mantém acordado durante a noite: “O desafio de tentar se envolver com a verdade, apesar das falsidades que se espalham tão rapidamente nas mídias sociais modernas”.
“Algumas das falsidades podem ser perigosos exageros de algo bom, mas eu acho que muitas delas surgem a partir da má vontade”, disse o cardeal canadense ao Crux. “Eu não acho que seja realmente possível ignorar essa dimensão muito nova da vida cotidiana e fingir que podemos nos ater exclusivamente às formas mais antigas de comunicação. Em vez disso, precisamos desenvolver novas habilidades para navegar no ciberespaço e ser eficazes, mantendo o equilíbrio e a serenidade.”
Antes de ir para o retiro espiritual para os membros da Cúria Romana na cidade italiana de Ariccia, nesta semana, Czerny conversou com o Crux por escrito.
Em uma carta do dia 28 de janeiro, divulgada no site da Comissão dos Episcopados da Comunidade Europeia (Comece) no dia 20 de fevereiro, junto com os cardeais Konrad Krajewski e Jean-Claude Hollerich, o senhor pediu aos bispos europeus que ajudem a reassentar os refugiados que atualmente estão detidos em Lesbos. Já teve alguma resposta a esse apelo? Se sim, poderia dar alguns exemplos?
Não, eu não recebi nenhuma resposta. Mas reassentamentos patrocinados poderiam beneficiar potencialmente até 20.000 adultos e mais de 1.100 menores desacompanhados que estão detidos indefinidamente em campos temporários e em estruturas precárias “na Europa, mas fora da sociedade europeia”, como dissemos na nossa carta.
Continuamos dizendo que, como a experiência já demonstra, “as chances de uma recepção positiva são maiores do que o esperado; de fato, muitos menores foram acolhidos em famílias, enquanto adultos e famílias foram bem recebidos pelas comunidades religiosas, paróquias e famílias que se colocaram à disposição para esse serviço”.
Por isso, espero que em breve possamos conhecer novas iniciativas para reassentar os refugiados em toda a Europa, calorosamente acolhidos em resposta ao convite do Papa Francisco em setembro de 2015.
No início deste mês, o Vaticano anunciou que o Papa Francisco o nomeou para a Congregação para a Evangelização dos Povos, fundada em 1622. Embora seja habitual que os cardeais façam parte de mais de um escritório vaticano, como o senhor acha que o seu ministério pode ajudá-lo nessa responsabilidade a mais? O senhor acredita que isso se cruza com o trabalho que está fazendo no Dicastério para o Desenvolvimento Humano Integral? Como?
Em seu discurso à Cúria Romana, pouco antes do Natal, o Papa Francisco chamou a evangelização de “a principal razão para a existência da Igreja... a primeira e mais importante tarefa da Igreja... o coração da reforma”. Apropriadamente, a nova constituição apostólica da Cúria Romana será chamada Predicate evangelium, ou “Pregai o Evangelho”. Assim, com essa nomeação para a Congregação para a Evangelização dos Povos, eu sinto que minha missão como subsecretário da Seção de Migrantes e Refugiados adquire um fundamento mais profundo e um significado ainda mais abrangente.
Pode-se dizer que, durante o primeiro meio século desde o Vaticano II, trabalhamos no entendimento da Igreja sobre as características do mundo moderno – estávamos aprendendo a ler os sinais dos tempos. Agora é uma questão de afirmar que Cristo, através da Igreja, está plenamente encarnado neste mundo, e todos nós, na Cúria e em toda a Igreja, precisamos espalhar a mensagem de Cristo sobre a plenitude da vida, da vida em plenitude. O nosso trabalho na Seção de Migrantes e Refugiados evidencia que é preciso viver o Evangelho não apenas no próprio coração, na própria família, na próprio comunidade e na próprio paróquia, mas também nas esferas públicas e sociais, “impregnando as estruturas da convivência humana com um pouco mais de justiça e um pouco mais de caridade”, nas palavras de um ex-superior geral da Companhia de Jesus.
Estou curioso para ouvir as perspectivas dos meus colegas cardeais na Propaganda Fide [o nome tradicional da Congregação para a Evangelização dos Povos] e oferecer as minhas. Cada um de nós encontrou Deus de formas particulares. Além da família, das escolas e dos contextos culturais que me influenciaram, eu tive o privilégio de ver Deus em ação através da Igreja em todo o mundo e especialmente na América Central, África, Europa Central onde nasci e na América do Norte onde cresci e estudei. Graças ao que tenho visto em relação às muitas maneiras diferentes pelas quais as pessoas encontram a Deus, recebem o Evangelho e vivem a sua fé na vida cotidiana, eu espero oferecer intuições para a evangelização hoje e amanhã.
Agora que a “tempestade midiática” após o lançamento da “Querida Amazônia” se acalmou, embora muitos católicos e não católicos ainda a estejam lendo ou se preparando para ler o documento, em que o senhor os aconselharia a focar? Qual é a “novidade” desse documento?
Este ano, 2020, é o quinto aniversário da Laudato si’. Isso nos dá a oportunidade de recordar a sua rica análise e seu apelo inspirador, chamando a humanidade a se afastar da insanidade e a cuidar da nossa casa comum e de todos os que nela vivem, agora e no futuro. O Papa Francisco chamou o Sínodo Amazônico de filho da Laudato si’, e o professor Carlos Nobre chamou a “Querida Amazônia” de filha da Laudato si’.
Eu espero que os católicos e muitos outros leiam três textos juntos: a Laudato si’, a “Querida Amazônia” e o documento final do Sínodo – a fim de compartilhar o grande, concreto e generoso processo de aplicação da Laudato si’ em uma região específica e no mundo inteiro. E eles estão intrinsecamente ligados: o mundo não pode prosperar se a região amazônica se deteriorar ainda mais.
Ao mesmo tempo, a “Querida Amazônia” é uma novidade entre os documentos papais. É uma carta de amor cheia de poesia e de sonhos. Ela constantemente apela a todos e todas, em todos os lugares, em todos os cantos da sua sociedade, a se unirem. A “Querida Amazônia” procura inspirar e engajar a todos e todas a apreciar os frutos do Sínodo, como expressado no seu documento final, e a aplicar as sugestões que eles encontram lá e, originalmente, na Laudato si’.
O tempo da Quaresma está começando, e o senhor está indo para o retiro espiritual da Cúria Romana. Que conselho daria aos católicos que, por diferentes razões – seja a violência ou a perseguição, a idade, a saúde ou até mesmo o trabalho –, não podem dedicar alguns dias exclusivamente para contemplar melhor o mistério que é o amor de Cristo pela humanidade?
Suspeito que o que você descreve na sua pergunta seja mais a norma do que a exceção. Aqueles que têm a oportunidade de participar de um retiro, mesmo de algumas horas em um retiro paroquial, obviamente deveriam fazê-lo. Mas todos os católicos, quer possam participar de um retiro especial ou não, devem se esforçar para viver a Quaresma nas suas vidas diárias, renovando suas relações com o nosso Pai celestial (oração), com seus próximos (esmola) e consigo mesmos (jejum).
Não há nenhum momento em que não possamos olhar para o mistério do amor de Cristo pela humanidade. Não há nenhum momento em que não possamos perguntar a Jesus: “Senhor, quando foi que te respondemos?” e ouvir a sua resposta: “Quando vocês dão de comer aos famintos e acolhem os sem-teto”, conforme lemos no capítulo 25 do Evangelho de Mateus, “vocês não apenas atendem às minhas necessidades, mas também me encontram nos menores dos meus irmãos e irmãs”. O que você descobre em momentos de oração ao longo do dia ou durante um tempo abençoado de retiro é como Jesus é fiel às suas promessas.
Em um dia comum, o senhor deve ter muitos problemas, solicitações, coisas que passam pela sua mesa. O que mantém o cardeal Czerny acordado à noite?
Algo que pode me manter acordado à noite é o desafio de procurar me envolver com a verdade, apesar das falsidades que se espalham tão rapidamente nas mídias sociais modernas. Algumas das falsidades podem ser perigosos exageros de algo bom, mas eu acho que outras surgem da má vontade. Eu não acho que seja realmente possível ignorar essa dimensão muito nova da vida diária e fingir que podemos nos ater exclusivamente às formas mais antigas de comunicação. Em vez disso, precisamos desenvolver novas habilidades para navegar no ciberespaço e ser eficazes, mantendo o equilíbrio e a serenidade.
Aqui está uma imagem tradicional, dos primeiros tempos: um anjo bom em um ombro e um anjo ruim em outro, cada um tentando nos direcionar. De fato, nós, humanos, somos complexos e misteriosos, até para nós mesmos; capazes de grande maldade, mas, com a graça de Deus, também podemos alcançar um bem extraordinário. A noite é para dormir, não para se preocupar, mas, adormecendo, podemos rezar para que amanhã sejamos um pouco mais gentis com os outros, pois juntos nos esforçamos para seguir a Cristo em nossos corações e no mundo.
Eu também poderia dizer que a condição geral do mundo hoje não é animadora. Em vez de ficarem acordadas se preocupando, eu espero que as pessoas aproveitem a oportunidade do quinto aniversário da Laudato si’ e a inspiração da “Querida Amazônia”, além do documento final do Sínodo para descobrir como elas podem ser agentes eficazes do cuidado da nossa casa comum durante o dia – e depois durmam melhor à noite!
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Cardeal Czerny, responsável vaticano pelos migrantes, lamenta a disseminação de falsidades “perigosas” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU