17 Fevereiro 2020
"Esta exortação é uma canção de amor absolutamente linda e uma carta de amor para o povo da Amazônia, e um alerta para a conversão da Igreja como um todo", escreve Mauricio López Oropeza, Secretário Executivo da REPAM. O artigo foi publicado por National Catholic Reporter e por Vida Nueva, respectivamente em inglês e espanhol. A tradução para o português é de Luis Miguel Modino.
É quarta-feira, 12 de fevereiro, estou a caminho da região amazônica no Equador. Tivemos que sair muito cedo pela manhã para chegar à assembleia do Vicariato a tempo, é uma viagem de quatro horas à cidade de Puyo. Não é mais um dia para nós. É o dia esperado em que o Papa Francisco apresentará sua exortação apostólica pós-sinodal: Querida Amazônia.
Enquanto estamos na estrada, começo a ler um bom número de artigos, avanços e reflexões sobre isso, e a maioria deles vem de outros lugares, de todo o mundo. De certa forma, isso é bom, mas começo a sentir repetidas vezes a falta de entendimento nos comentários que não estão realmente preocupados com a Amazônia e seu povo. As reflexões se concentram principalmente em uma preocupação obsessiva pelas implicações dessa exortação para a Igreja universal, e não por seu verdadeiro impacto na vida das comunidades aqui na Amazônia, que sofrem e desejam aprofundar sua vida de fé de uma maneira mais conectada com suas identidades culturais e ancestrais.
Isso era de se esperar, é claro, mas esse fantasma e esse sentimento que experimentamos durante a assembleia de outubro voltam novamente. As palavras que vêm à mente quando leio a maioria dos artigos são as mesmas que vieram à mente durante nossa estada em Roma: desconexão, auto-afirmação, eurocentrismo, incompreensão, incompatibilidade.
Além disso, os artigos demonstram falta de respeito pelo foco central desse sínodo - a vida e o futuro dos povos da Amazônia.
Os comentários geralmente ignoram os povos indígenas que representam outras possibilidades diferentes de responder a essa crise climática sem precedentes, ou sua atitude de cuidar da criação que precisamos muito incorporar em nossa Igreja Católica, ou seu profundo desejo e direito de viver sua fé de uma maneira mais conectada e respeitosa à sua própria identidade cultural e espiritualidade. É particularmente preocupante o sofrimento que enfrentam devido à ameaça de interesses extrativos aliados aos governos locais e nacionais, que não respeitam seus direitos, colocando em risco suas vidas e seu futuro.
Durante a viagem de quatro horas, começo a sentir ansiedade. Quando a conferência de imprensa sobre a Exortação começa em Roma, minha conexão com a Internet é tão ruim que não consigo acompanhá-la ao vivo, mas, à medida que progride, ainda sinto como se todo o processo sinodal tivesse sido invadido por alguma mídia (e dos interesses por trás deles), concentrando-se em uma coisa: a aprovação ou não de padres casados.
Então, acho que como isso é possível, quando essa é apenas uma proposta das mais de 200 possibilidades apresentadas no documento final? Esta é uma questão, certamente importante, mas de modo algum a mais importante para os povos da Amazônia.
Não consigo deixar de lembrar a polarização de frações muito pequenas da assembleia sinodal, dois extremos que careciam de habilidades de escuta verdadeiras, como o próprio Papa fez, dando exemplo - e como ele nos pediu intensamente - como um requisito para o discernimento comunitário.
Em um extremo, os conservadores que não aceitam nenhuma mudança e se colocam como protetores da chamada ortodoxia da Igreja, quando, na realidade, parece ser sua intenção proteger o status quo de como governar a Igreja. É uma visão ocidental e eurocêntrica que de modo algum representa a totalidade da bela diversidade de nossa Igreja. Precisamos saber que essa diversidade faz parte de nossa própria história e identidade, destinada a expressar a verdadeira catolicidade de nossa Igreja.
E, por outro lado, vejo pessoas que defendem uma posição mais ideológica do que pastoral, argumentando que as mudanças devem ocorrer em um período de tempo de sua escolha e com as características que consideram essenciais, e somente essas. Qualquer resultado que não esteja de acordo com seus desejos é considerado mole ou sem coragem.
Ambas as partes parecem desconfortáveis com as resoluções finais da assembleia, e não posso deixar de perceber que, em ambos os casos, muitas dessas pessoas realmente não vivem na região amazônica e não trabalham direta e diariamente em relação a esse território e seu povo. Parece que ambas as partes estão usando a Amazônia como um mero pretexto para promover suas intenções particulares, independentemente dos verdadeiros gritos e esperanças deste território e de seus povos.
Neste momento, percebo que deixamos a região dos Andes do Equador, deixamos para trás as montanhas e a queda de neve perpétua e estamos entrando no belo portão natural para a Amazônia. Ela, a Amazônia, explode diante dos meus olhos. Bonita, indomável, diversa, cheia de contrastes e vibrante cheio de vida.
Então, lembro o que foi essencial para a abordagem da REPAM em todo esse processo: são as vidas das pessoas e nossa promessa feita a respeitar e honrar suas vozes o que nos trouxe aqui. É nosso compromisso voltar aqui e poder olhá-los nos olhos para dizer que cumprimos trazendo suas vozes ao coração do Papa para que sejam ouvidas pela Igreja e para garantir que seus gritos e esperanças mais urgentes sejam respeitados e reconhecidos.
Vendo a enorme diversidade de flora existente, também penso nas mais de 200 propostas no documento final que representam as expectativas das pessoas, e me sinto confirmado de que não podemos permitir que o medo daqueles que não estão aqui, e que eles não trabalham com e para esses povos, sejam quem direcione as discussões.
Como se atreve alguém a dizer que essa era uma intenção de destruir os valores fundamentais da Igreja?
Isso não coincide com o que ouço das irmãs e irmãos católicos que vivem neste território, expressando que pela primeira vez se sentem reconhecidos, afirmados na riqueza de sua identidade e espiritualidade ancestral. Eles sabem que pela primeira vez sua Igreja, no âmbito de um Sínodo, abraça firmemente sua sabedoria na proteção de nossa casa comum, de nossa mãe Terra, em vez de rejeitar, até mesmo sendo verdadeiros católicos, filhos e filhas desta terra.
Por outro lado, como alguns representantes da Igreja, chamados progressistas, se atrevem a dizer que isso foi um fracasso e até sugerir que o Papa se rendeu a pressões externas?
A única coisa que o Papa cede é o discernimento da voz do Espírito Santo. Esta exortação é uma canção de amor absolutamente linda e uma carta de amor para o povo da Amazônia, e um alerta para a conversão da Igreja como um todo.
Como dissemos repetidamente, nada será o mesmo após este sínodo. Somente aqueles que amam a Igreja, confiam no Espírito e se entregam a uma presença mais ampla de Deus - além de seu próprio conservadorismo ou visão ideológica autorreferencial - entenderão esse verdadeiro momento de Kairos e agirão e confiarão de acordo. Porque sabemos que foram plantadas sementes que continuarão a crescer e florescer ao longo dos anos e gerações vindouras, para realizar a conversão integral e as quatro conversões (pastoral, cultural, ecológica e sinodal) que resultam desse discernimento e que são expressas no documento final do sínodo.
Hoje tive a oportunidade de compartilhar com a Igreja Amazônica de Puyo os quatro sonhos do Papa em sua exortação. Perguntei-lhes quais são os seus sonhos para a sua missão presente e futura nesta porção da Amazônia. Vi olhos esperançosos, compromissos vibrantes e decisões concretas para avançar em comunhão com o que o Papa ofereceu como uma carta de amor enviada diretamente a eles.
Então, penso comigo mesmo: "Isso é tudo". Qualquer um que escrever e refletir sobre essa exortação deve vir aqui, se puder, e ouvir o que está no coração dessas pessoas antes de se posicionar sobre esse assunto.
Embora seja óbvio que a maioria não pôde comparecer, gostaria que lessem de coração aberto o documento preparatório e o documento final, para que pudessem reconhecer as vozes do território e, assim, talvez, mudar de perspectiva. É a periferia invadindo o centro, ajudando-o a mudar, como o Papa desejava para este sínodo.
Antes de retornar a Quito, onde moro, tenho o privilégio de visitar uma admirada amiga, Patricia Gualinga, que é uma das líderes indígenas mais fortes que já conheci. É uma promotora de direitos indígenas respeitada internacionalmente, e também uma católica comprometida que fez parte de todo o processo sinodal, incluindo a assembleia, e fará parte da comissão pós-sinodal nomeada pelo Papa.
A conversa é, como sempre, profunda e cheia de esperança, mas ela também se pergunta por que a maioria dos debates em torno do sínodo ignorou as questões mais importantes para o povo dessa Amazônia.
Sabemos que há uma decisão dos representantes de alguns meios de comunicação de desviar a atenção de questões realmente cruciais relacionadas à ecologia integral, à expressão intercultural na Igreja e à visão mais ampla da promoção de ministérios, de acordo com a realidade da Amazônia. Essas questões vêm do coração das pessoas e sabemos que não há possibilidade de elas desenvolverem e aprofundarem nos próximos anos, não há como voltar atrás.
Continuaremos colocando nossas vidas a serviço disso, e como é típico do ritmo da Amazônia, a tempestade passará como sempre, o sol brilhará novamente como sempre e a última palavra será uma palavra de esperança.
Deus continua a se manifestar no meio do mistério sagrado deste território e de seus povos, independentemente dos medos de mudança que isso possa produzir em alguns, ou do desejo de outros de controlá-lo e fazê-lo ideológico.
Cristo continua a se encarnar em todas as culturas e as sementes que plantou estão lá, em toda parte, para que o Reino continue prevalecendo, para iluminar nosso caminho e nossas estruturas, fazendo tudo novo uma e outra vez. Obrigado, querida Amazônia.
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Querida Amazônia: uma carta de amor para a conversão dos corações - Instituto Humanitas Unisinos - IHU