25 Janeiro 2020
“O Papa Francisco fala com todos aqueles que podem contribuir para avançar a proposta de uma gestão diferente da crise da globalização – da questão ambiental à migratória. Ao mesmo tempo, Francisco está claramente indisposto a emprestar o catolicismo à agenda etnonacionalista do Partido Republicano agora nas mãos de Trump.”
A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, nos EUA, em artigo publicado por HuffingtonPost.it, 24-01-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A audiência concedida pelo Papa Francisco ao vice-presidente dos Estados Unidos, Mike Pence, na manhã do dia 24 de janeiro, representou o encontro de cúpula do mais alto nível entre o Vaticano e o governo Trump dos últimos três anos, desde a etapa romana da viagem à Europa e ao Oriente Médio do presidente em maio de 2017.
Janeiro de 2020 é um momento politicamente muito diferente, no início de um longo ano eleitoral. Em dez dias, no dia 3 de fevereiro, celebra-se a abertura da temporada das primárias, com os caucuses do Partido Democrata em Iowa, um Estado onde a presença dos católicos é significativa.
Os dois candidatos à frente nas pesquisas têm uma relação particular com a Igreja Católica. Joe Biden é católico e poderia se tornar o segundo presidente católico dos EUA depois de John F. Kennedy. Bernie Sanders é um judeu socialista, casado com uma católica e o mais próximo da doutrina social da Igreja sobre ambiente, economia, saúde (e, em 2016, durante as primárias depois vencidas por Hillary Clinton, ele teve um fugaz e desajeitado encontro com o Papa Francisco em Santa Marta).
Tanto Biden quando Sanders têm um problema com o eleitorado católico por causa da crescente lacuna entre a posição do magistério e dos bispos sobre o aborto, por um lado, e a tendência do Partido Democrata de conjugar a plataforma sobre o aborto em termos não muito diferentes da cultura libertária: estão distantes os tempos em que Bill Clinton descrevia a plataforma progressista sobre o aborto como “legal, segura e rara”.
Dentro da galáxia do front antiabortista, o componente católico é fundamental, ideológica e politicamente. Aqui se insere o contato entre Pence e o Vaticano do Papa Francisco: a audiência ocorreu no mesmo dia em que o presidente Trump falou em Washington à “Marcha pela Vida” – a marcha organizada pelo movimento pro-life nos EUA desde 1974, um ano após a legalização do aborto em nível federal.
Trump é o primeiro presidente a falar aos manifestantes da marcha: nem mesmo os presidentes republicanos levados à Casa Branca pelo voto antiabortista, Reagan e os dois Bush, haviam feito isso. O conúbio político entre o movimento antiabortista e o Partido Republicano alcançou o seu apogeu durante a presidência do mais inverossímil dos defensores da moral cristã, Donald Trump.
Francisco e Pence se encontraram tendo em mente objetivos muito diferentes. A relação assimétrica entre o Vaticano de Francisco e a Casa Branca de Trump não está relacionada apenas à disparidade de meios políticos, econômicos e militares entre as duas últimas “potências cristãs” no mundo ocidental de hoje. É também uma fundamental assimetria de intenções.
Por um lado, à espera de entender quando iniciará o pós-Trump nos EUA, Pence visa a se credenciar e a não perder a oportunidade de reiterar a mensagem que hoje é repetida pelos círculos do catolicismo filiado ao Partido Republicano (incluindo um número significativo de bispos): a reeleição de Trump é a única opção, e o processo de impeachment agora em curso é apenas uma tentativa de remover “o presidente mais antiabortista” da história estadunidense.
Por outro lado, o Papa Francisco fala com todos aqueles que podem contribuir para avançar a proposta de uma gestão diferente da crise da globalização – da questão ambiental à migratória. Ao mesmo tempo, Francisco está claramente indisposto a emprestar o catolicismo à agenda etnonacionalista do Partido Republicano agora nas mãos de Trump – aquela mesma inclinação política cujas alas intelectuais organizam em Roma, no dia 4 de fevereiro de 2020 (1), um evento de alto nível na tentativa de anexar o pontificado de João Paulo II à agenda do soberanismo e etnonacionalismo transatlânticos.
Essa é uma das questões-chave para entender as tensões muito fortes, de 2013 até hoje, entre o catolicismo do establishment branco nos EUA e o pontificado de Francisco. No establishment, ainda há incredulidade diante do acordo entre o Vaticano e Pequim de setembro de 2018: mas há também um senso mais geral de perda de primogenitura que atingiu a Igreja “made in USA” desde os primeiros dias após a eleição de Francisco. A Igreja Católica branca nos EUA se sente órfã desse Vaticano.
No quadro das relações entre cristianismo e política nos EUA hoje, as pertenças confessionais (católicos, protestantes, evangélicos, ortodoxos) contam muito menos do que as identidades étnicas (brancos, afro-americanos, latinos, asiáticos). A crescente extremização das posições políticas sobre o aborto corre o risco de fazer do voto dos católicos brancos um subconjunto do voto dos evangélicos brancos, que, em novembro de 2016, somaram cerca de 80% para a chapa Trump-Pence.
Não é de se admirar que quem está tentando recuperar a relação com Roma é Mike Pence, um ex-membro da Santa Igreja Romana que se define como “um católico evangélico”.
[1] Dia 4 de fevereiro é o dia da publicação da importante Declaração "A fraternidade humana. Em prol da paz mundial e da convivência comum", assinada em Abu Dhabi, em 2019.
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Reconectar a Casa Branca e o Vaticano: a complexa missão de Pence junto a Francisco. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU