17 Outubro 2019
“A luta contra a fome e a desnutrição não cessará enquanto prevalecer exclusivamente a lógica do mercado e se busque somente a ganância a todo custo, relegando os alimentos a um mero produto de comércio, sujeito à especulação financeira e distorcendo seu valor cultural, social e marcadamente simbólico”. Hoje, Dia Mundial da Alimentação, o Papa escreveu uma mensagem a Qu Dongyu, diretor-geral da FAO, em que recorda “o grito de tantos irmãos nossos que seguem sofrendo as tragédias da fome e malnutrição”.
Em suas palavras, escritas em castelhano, Bergoglio faz sua a Agenda 2030, ainda que denuncie que “segue sendo um programa por realizar em muitas partes do mundo”, e analisa a “distorção do binômio alimento/nutrição”.
“Vemos como a comida deixa de ser meio de subsistência para se converter em canal de destruição pessoal. Assim, frente aos 820 milhões de pessoas famintas, temos do outro lado da balança quase 700 milhões de pessoas com sobrepeso, vítimas de hábitos alimentares inadequados”, confronta o Papa, que aponta que não se trata somente de um problema de países ricos, mas sim que “em países de baixa renda, se segue comendo pouco e mal, copiando modelos alimentícios das áreas desenvolvidas”.
A reportagem é publicada por Religión Digital, 16-10-2019. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
É o “desequilíbrio” por “defeito”, documentado pelo crescente número de mortes por anorexia e bulimia. Frente a isso, Francisco destaca que “os transtornos alimentícios somente podem ser combatidos cultivando estilos de vida inspirados em uma visão agradecida daquilo que nos dá, buscando a temperança, a moderação, a abstinência, o domínio de si e a solidariedade: virtudes que acompanharam a história do homem”.
“Se trata de voltar à simplicidade e à sobriedade, e viver cada momento da existência com um espírito atento às necessidades do outro”, constata o Papa, que advoga por “uma fraternidade que busque o bem comum e evite o individualismo e o egocentrismo, que somente geram fome e desigualdade social”.
Ao tempo, Francisco anima a “não esquecer que há aqueles ainda se alimentam de uma maneira pouco saudável”. “Resulta cruel, injusto e paradoxo que, hoje em dia, tenha alimentos para todos e, no entanto, nem todos tenham acesso a isso, ou que existam regiões do mundo nas quais a comida se desperdiça, se deseja, se consome em excesso ou se dedicam alimentos a outros fins que não são alimentícios”, lamenta Bergoglio, que reclama impulsionar “instituições econômicas e raízes sociais que permitam aos mais pobres acessar de maneira regular os recursos básicos”.
“Quando se coloca a pessoa humana no lugar que lhe corresponde, então as operações de ajuda humanitária e os programas destinados ao desenvolvimento terão uma maior incidência e darão os resultados esperados. Não podemos esquecer que o que acumulamos e desperdiçamos é o pão dos pobres”, culmina o pontífice.
A vossa excelência, senhor Qu Dongyu, diretor-geral da FAO,
A Jornada Mundial da Alimentação faz eco cada ano do grito de tantos irmãos nossos que seguem sofrendo as tragédias da fome e malnutrição. De fato, apesar dos esforços realizados nas últimas décadas, a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável segue sendo um programa por realizar em muitas partes do mundo. Para responder a este grito da humanidade, o tema proposto este ano pela FAO, “nossas ações são nosso futuro. Uma alimentação sã para um mundo #FomeZero”, põe em destaque a distorção do binômio alimento/nutrição.
Vemos como a comida deixa de ser meio de subsistência para se tornar um meio de destruição pessoal. Assim, frente aos 820 milhões de pessoas famintas, temos do outro lado da balança quase 700 milhões de pessoas com sobrepeso, vítimas de hábitos alimentares inadequados. Esses já não são simplesmente emblemas da dieta dos “povos de opulência” (cf. Paulo VI, encíclica Populorum Progressio, 3), mas sim que começam a habitar inclusive países de baixa renda, onde se segue comendo pouco e mal, copiando modelos alimentícios das áreas desenvolvidas. Por causa da malnutrição, as patologias vinculadas à opulência podem derivar tanto em um desequilíbrio por “excesso”, cujos resultados são frequentemente a diabetes, doenças cardiovasculares e outras formas de enfermidades degenerativas, como em um desequilíbrio por “defeito”, documentado pelo crescente número de mortes por anorexia e bulimia.
É necessária, portanto, uma conversão de nosso modo de atuar, e a nutrição é um ponto de partida importante. Vivemos graças aos frutos da criação (cf. Sal 65, 10-14; 104, 27-28) e estes não podem se reduzir a um simples objeto de uso e dominação. Por essa razão, os transtornos alimentares somente podem ser combatidos cultivando estilos de vida inspirados em uma visão agradecida do que recebemos, buscando a temperança, a moderação, a abstinência, o domínio de si e a solidariedade: virtudes que acompanharam a história do homem. Se trata de voltar à simplicidade e à sobriedade, e viver cada momento da existência com um espírito atento às necessidades do Outro. Assim, podemos cimentar nossos vínculos em uma fraternidade que busque o bem comum e evite o individualismo e o egocentrismo, que somente geram fome e desigualdade social. Um estilo de vida que nos permitirá cultivar uma relação saudável com nós mesmos, com nossos irmãos e com o entorno em que vivemos.
Para assimilar essa forma de vida, a família tem um lugar principal, e por isso a FAO dedicou uma atenção especial à tutela da família rural e à promoção da agricultura familiar. No âmbito familiar, e graças à sensibilidade feminina e materna, se aprende a desfrutar o fruto da terra sem abusar dela, e se descobrem as melhores ferramentas para difundir estilos de vida respeitosos do bem pessoal e coletivo.
Por outro lado, a interdependência atual das nações pode ajudar a deixar de lado os interesses particulares e favorecer a confiança e a relação de amizade entre os povos (cf. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 482). Espero que o tema deste ano ajude a não esquecer que há aqueles que ainda se alimentam de uma maneira pouco saudável. Resulta cruel, injusto e paradoxo que, hoje em dia, tenha alimentos para todos e, no entanto, nem todos tenham acesso a isso, ou que existam regiões do mundo nas quais a comida que se desperdiça, se deseja, se consome em excesso ou se dedicam alimentos a outros fins que não são alimentícios. Para sair dessa espiral, é necessário impulsionar “instituições econômicas e canais sociais que permitam aos mais pobres acessar de maneira regular os recursos básicos” (encíclica Laudato Si’, 109).
A luta contra a fome e a desnutrição não cessará enquanto prevaleça exclusivamente a lógica do mercado e se busque somente a ganância a todo custo, relegando os alimentos a um mero produto de comércio, sujeito à especulação financeira e distorcendo seu valor cultural, social e marcadamente simbólico. A primeira preocupação há de ser sempre a pessoa humana, especialmente aqueles que carecem de alimentos diários e que a duras penas podem se ocupar das relações familiares e sociais (cf. encíclica Laudato Si’, 112-113). Quando se põe a pessoa humana no lugar que lhe corresponde então as operações de ajuda humanitária e os programas destinados ao desenvolvimento terão uma maior incidência e darão os resultados esperados. Não podemos esquecer que o que acumulamos e desperdiçamos é o pão dos pobres.
Senhor Diretor Geral: Essas são algumas reflexões que desejo compartilhar com vocês, em razão desta Jornada, enquanto peço a Deus que abençoe a cada um de vocês e que encha de frutos seu trabalho, de modo que cresça constantemente a paz ao serviço do progresso autêntico e integral de toda a família humana.
Francisco
Vaticano, 16 de outubro de 2019.
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“O que acumulamos e desperdiçamos é o pão dos pobres”, afirma o papa Francisco em carta à FAO - Instituto Humanitas Unisinos - IHU