07 Agosto 2019
Ekaitz Cancela (Barakaldo, Espanha, 1993) busca em seu último livro, Despertar del sueño tecnológico. Crónica sobre la derrota de la democracia frente al capital (Akal, 2019), analisar a tecnologia que condiciona nosso dia a dia, a partir de um outro ponto de vista. Em vez de centrar a visão nos efeitos que provoca em nós como consumidores, Cancela muda o foco para os meios de produção e sua intersecção com a inteligência artificial, o capitalismo digital, a esfera pública, nossa almejada democracia e os meios de comunicação.
Por meio de longas frases subordinadas, que denotam uma falta de edição, em “Despertar del sueño tecnológico”, Cancela lança uma carga de profundidade contra as bases capitalistas que cercam e nutrem o ecossistema digital criado pelas grandes companhias tecnológicas do Vale do Silício.
Para realizar esta crônica do capitalismo tecnológico atual, Cancela bebeu principalmente de três autores: Karl Marx, para o século XIX, Walter Benjamin, para o século XX, e Evgeny Morozov, para o “breve” século XXI. A erudição do autor se ressalta com um mero dado: 407 notas de rodapé, em 444 páginas.
Em uma época onde o tempo de elaboração de um livro parece ser inversamente proporcional às de suas vendas, Cancela dedicou dois anos para elaborar um ensaio que procura olhar a tecnologia e os meios de comunicação a partir de uma perspectiva inédita no mercado editorial espanhol.
A entrevista é de Fermín Grodira, publicada por Público, 04-08-2019. A tradução é do Cepat.
Que papel o investimento estatal e as subvenções no desenvolvimento das tecnologias da informação desempenharam?
O Vale do Silício não é uma criação mágica. Antes que surgissem estas grandes empresas, nos Estados Unidos, viu-se um processo de privatização enorme das telecomunicações e de liberalização desse mercado com o objetivo de vencer uma guerra militar e econômica: a Guerra Fria. As infraestruturas sobre as quais se assentavam eram de controle público, foram privatizadas e começaram a ser exploradas pelas companhias privadas.
Os modelos de negócio dessas empresas se baseavam em cobrar de você por usar sua infraestrutura. O Vale do Silício começa a se assentar em outro modo, por meio do modelo da publicidade já existente. Este modelo publicitário de maneira histórica está orientado para o mercado, pois busca aguçar o consumo e não gerar nenhum tipo de conhecimento mais amplo sobre a existência dos cidadãos no mundo.
Esse processo de privatização que se iniciou com as telecomunicações é o modelo de negócio privado sobre o qual as redes com as quais nos comunicamos se levantam. A questão é se pode haver uma democracia quando toda a infraestrutura sobre a qual nos comunicamos está eminentemente dirigida para manipular as pessoas para encaminhá-las ao mercado. Com tantos dados capazes de mercantilizar cada vez mais áreas da vida, estamos diante de uma prática de poder autoritária. Não há liberdade para escolher uma alternativa à forma mercantil.
E, de repente, a última batalha nesta guerra tecnológica entre os Estados Unidos e a China: a luta pela hegemonia sobre o 5G...
Demandamos uma força computacional tão grande para conectar as pessoas em todo momento com economia e com o mercado que são necessárias estas redes de 5G. A China pode oferecer isso a um custo muito baixo e é complicado competir com a Huawei ou com a capacidade do Estado chinês em beneficiar a sua indústria frente à concorrência das empresas privadas.
Os Estados Unidos dependem da liberalização e, por isso, não poderão regulamentar o Vale do Silício. “Se dividir meu negócio, qualquer empresa chinesa irá entrar e ocupará o mercado”, poderia dizer o Vale do Silício. Isto é o que permite ao Facebook justificar sua criptomoeda Libra, já que WeChat e Alibaba, ambas companhias tecnológicas chinesas, já lançaram seus sistemas de pagamento digitais.
Há setores políticos nos Estados Unidos, inclusive o cocriador do Facebook, Chris Hughes, que defendem a divisão dos gigantes do Vale do Silício e a aplicação das leis antimonopólio. É uma possível solução?
Não concordo com as aproximações neoclássicas sobre a concorrência. Minha posição é mais heterodoxa: procuro ver como o mundo mudou nestes dez últimos anos e se boa parte das categorias que utilizamos são válidas. Antes, era possível existir monopólios ferroviários porque havia uma infraestrutura para que os trens e as mercadorias circulassem em um mundo menos conectado. Na atualidade, o que temos são infraestruturas e mercadorias muito diferentes.
Agora, o que circula é informação e de forma muito mais rápida. Além disso, o trem não era traçado para que os usuários passassem toda a sua vida em um trem, mas, ao contrário, apenas os transportava de um lugar para o outro. O Facebook foi feito para que você nunca saia e tem um poder político e de mercado diferente. Não acredito que possamos acabar com o Facebook assim como haveríamos feito com outro tipo de empresa, há cem anos. Precisamos recuperar essa infraestrutura e entendê-la como um bem público.
Temos o precedente do desmembramento do monopólio da Standard Oil, em 1911, que controlava desde a produção do petróleo, sua distribuição e venda final.
Você pode dividir o Facebook em três, mas continuaremos tendo um sistema capitalista que atrela os usuários em três plataformas, não em uma. De acordo, mas queremos partir o Facebook para ter um sistema capitalista um pouco mais sadio ou queremos pensar em políticas públicas alternativas mais ambiciosas para pensar um modelo diferente? Eu não quero que existam pessoas que passem o tempo de sua vida consumindo lixo no Facebook. Quero que as redes de comunicação contribuam para criar um conhecimento diferente, não para desinformar.
Acredita que a guinada à esquerda do Partido Democrata em relação ao Vale do Silício, após a derrota de Hillary Clinton, se deve ao uso do Facebook pelo Partido Republicano e ao papel que teve nas eleições de 2016?
Vem um pouco pela tradição rooseveltiana da política estadunidense. Acreditam que porque em um momento da história se fez um New Deal, agora é possível fazer um New Deal On Data ou um Green New Deal. Não estão entendendo 2019 como uma época diferente de 1930. Agora, o que vemos é uma versão social-democrata um tanto oportunista porque dá votos se meter com as big tech.
Esse debate público lixo deu lugar a dois polos, esquerda e direita, problematizando as big tech, mas nenhuma dizendo de maneira clara qual é o papel que o capitalismo estadunidense possui. Quem terá a coragem de dizer para a Amazon ou Alphabet, a matriz do Google, que serão divididas? E se isso ocorre, quem irá ocupar esse lugar? Sob a economia capitalista, será a China. Os Estados Unidos farão uma proposta que realmente seja anticapitalista e irá mudar sua política econômica? Deixarão os poderes que lá existem? Eu acredito que não. Por isso, os Estados Unidos não são um lugar onde depositar nossas esperanças políticas. Na Europa, acredito que há uma tradição política mais ampla.
O que os países europeus podem fazer contra as big tech estadunidenses?
Evidentemente, não irão encerrar o motor de busca do Google. Muitas das empresas francesas e alemãs têm contratos em matéria de cibersegurança, principalmente com a Amazon Web Services e com o Google Cloud. Seria o caso de dizer para os Estados Unidos, cujas empresas tecnológicas ganham uma grande quantidade de dinheiro graças a contratos governamentais, que irão cancelá-los e utilizar esse dinheiro para investir para que haja empresas europeias, talvez públicas.
Bruno Le Maire, o ministro da Economia e Finanças francês, já disse que não quer que as companhias francesas tenham negócios com as empresas estadunidenses. Já há uma mínima resposta comercial europeia no plano tecnológico. Começa a existir uma mobilização forte em um país pedindo que as empresas estadunidenses deixem de angariar contratos de segurança dos governos europeus, como precisa acontecer. Sofreriam Facebook e Trump e haveria capacidade para utilizar a política comercial porque a Europa é um mercado muito importante.
Em torno do ano 2011, no contexto das primaveras árabes e do 15-M, há uma visão hegemônica, ao menos de certa esquerda, de que as redes sociais como Twitter são ferramentas de mobilização e informação militante.
Devemos entender que não foram as redes que trouxeram o 15-M e as primaveras árabes. Por si mesmas, as pessoas têm capacidade e vontade de mudar as coisas. Claro que utilizam as ferramentas a sua disposição para protestar ou se reunir. Que estas tecnologias em si empoderem as pessoas é uma ilusão que vivemos de maneira momentânea, em razão da propaganda das empresas que as controlam.
Esses bancos contra os quais os indignados protestavam graças às tecnologias digitais, agora também dependem delas, mas para um uso diferente. A Repsol depende do machine learning do Google para tornar mais eficiente a extração do petróleo. A Telefónica depende da Amazon, Microsoft e Google para oferecer serviços cloud a seus clientes. O Santander e o BBVA dependem dos sistemas de pagamento destas empresas, que foram introduzidos na vida de seus clientes graças aos celulares. Todo o IBEX 35 depende do Vale do Silício.
Agora, a visão é quase contrária: as redes sociais desagregam a ação política coletiva e favorecem a extrema direita e o discurso de ódio. Como passamos do tecno-otimismo ao tecnopessimismo, em menos de 10 anos?
Toda a força das primaveras árabes e do 15-M não foi criada pelo Facebook, eram pessoas que tinham um problema político real e o Facebook serviu de maneira momentânea como uma ferramenta para disputar uma luta política. Quando esta luta é vencida pelas elites e perde a estratégia política de um partido de esquerda, então aparecem na sociedade as forças da extrema direita. E o que os impede de utilizar estes meios de comunicação? Uma vez que você perde a batalha, o neoliberalismo segue o seu curso.
No 15-M, além de páginas webs como tomalaplaza.net, foi lançada uma rede social própria, alternativa ao Facebook e Twitter, chamada N-1, que nasceu e morreu com o movimento dos ‘indignados’.
Para mim, as intervenções tecnopolíticas ficam muito limitadas porque é uma forma de utilizar uma tecnologia distinta, mas sem de modo algum enfrentar o sistema capitalista que há por trás. A tecnologia não deve ser orientada para que algumas poucas empresas disparem a rentabilidade e muito menos para eliminar a força de trabalho, sem oferecer nada em troca. Sem uma política diferente por trás, as outras ferramentas que seriam utilizadas pelo 15-M teriam os dias contados.
Para promover uma rede diferente do Facebook e ter servidores próprios, você precisa do apoio de um Estado que facilite os meios de acesso ao investimento, mas que depois deve se retirar e deixar que os cidadãos solucionem seus problemas de maneira distinta. Isto é a mudança institucional que se reivindicava em 2011. O 15-M não era apenas uma questão tecnológica, mas de poder. O Podemos não compreendeu isso.
No livro, você diz que os meios de comunicação “cumprem com sua nova tarefa histórica para servir aos planos de acumulação da classe dominante”. Já não faziam isso?
Os meios de comunicação sempre serviram à classe dominante. Em que sentido, agora, há algo diferente? Basicamente, a infraestrutura sobre a qual operam. Antes, havia uma infraestrutura que era uma impressora, agora é um celular. Acredito que isso muda radicalmente o papel dos meios de comunicação, mas também da economia, da política e tudo mais.
A estrutura econômica se transformou, mas também podemos nos mobilizar politicamente para influenciar no desenvolvimento da tecnologia. Não quero que essa responsabilidade recaia em capitalistas como Google, Facebook e Amazon. Os meios de comunicação foram uma das primeiras ferramentas da burguesia ilustrada da época moderna e os primeiros a perecer na atualidade. Por outro lado, o poder público que os jornalistas exerciam na esfera pública, durante a modernidade, foi reduzido a pó.
Como o domínio do Vale do Silício afeta a liberdade de imprensa e de expressão?
Afeta o conceito de liberdade de expressão porque quem a garante é uma empresa privada, que somente tem a obrigação de garantir a rentabilidade de suas operações a longo prazo. Ao se estabelecer como o mediador básico desta infraestrutura, o Facebook tem uma grande capacidade para determinar quem acede à esfera pública e quem não, qual discurso se escuta e qual não.
Além disso, tornou a liberdade de imprensa um serviço e, de algum modo, a mercantilizou. Se você quer sobreviver em seu ecossistema, precisa competir produzindo muitos artigos e, portanto, reduzindo sua qualidade. Por outro lado, dado que acelera boa parte do tempo de produção jornalística, você pode ser muito independente para escolher o que publicar, mas não sobre o tempo que possui para fazer isso.
No início dos anos 2000, explodiu a bolha da Internet e parece que são notados sintomas de esgotamento da indústria dos dados pessoais. Acredita que estamos diante de uma bolha dos dados, que explodirá?
Não há uma bolha, mas, sim, uma pirâmide de Ponzi, uma estafa. Isso é o Uber e a WeWork. Todos os anos, seus investimentos lhes dão uma quantidade de dinheiro similar ao que perdem. Mesmo que estas empresas não sejam rentáveis, o capital requer ter dinheiro circulando, porque ou circula ou o sistema cai.
A Arábia Saudita ganhou muito dinheiro da crise do petróleo, comprando dívida, e agora todo esse dinheiro que ganhou precisa continuar reinvestindo na indústria tecnológica. Não sei se em cinco anos terá explodido tudo isso ou se os xeiques serão muito mais ricos e o mercado de iates de luxo disparará.
A pergunta é se queremos que o desenvolvimento tecnológico em áreas como a inteligência artificial se baseie em queimar tanto dinheiro procedente de alguns milionários ou se preferimos iniciativas locais muito mais baratas e com um retorno público muito maior.
Você dedica um capítulo inteiro para derrubar “o mito da inteligência artificial capitalista”.
Procuro traçar os limites entre o consumo e a produção, observar como a exploração comercial da internet fez com que algumas empresas abarquem os dois pontos. Google e Amazon querem me espionar ou lhes interessa ter sistemas de reconhecimento de voz muito mais refinados, para depois oferecer serviços na nuvem de maneira muito mais precisa? O governo chinês quer espionar seus cidadãos ou que suas empresas tenham uma base de dados enorme, treinem os sistemas de reconhecimento facial e depois ofereçam esses serviços aos governos europeus, supostamente democráticos?
Neste sentido, a última invenção do consumismo são os microfones inteligentes, onde estamos constantemente atrelados a esse ecossistema acústico que extrai dados de nós. Tento dizer que a inteligência artificial não é uma criação mágica, mas, ao contrário, existem diferentes tipos de exploração por trás de seu desenvolvimento. Esse é o mito da inteligência artificial. Se acabou o consumo, acaba de chegar a produção. Quando a tecnologia poupar os custos de produção, uma série de pessoas ficarão na rua.
O exército industrial de reserva do qual falava Karl Marx, em ‘O Capital’.
A “população empreendedora sobrante”. Nossa geração já está experimentando essa violência. A precariedade é, de certo modo, a exclusão do mercado de trabalho de toda uma geração, pois como cada vez você é menos necessário como força de trabalho, podem pagar menos. Isso já é violência para mim. A precariedade é o passo prévio à automação.
Qual a sua opinião sobre a frase: “Se algo é gratuito, o produto é você”.
Isso dá a entender que você é somente consumidor. Isto é um ecossistema sensorial composto por dados que estas empresas exploram do mesmo modo que as energéticas fazem com as terras da América Latina. A diferença é que reúnem dados para ver como nos utilizam melhor como produtores e consumidores.
As ferramentas do senhor nunca desmontarão a casa do senhor, como disse Audre Lorde?
Se entendemos ferramentas como ferramentas de produção, então você pode politizar a tecnologia. Se você enxerga a tecnologia como um meio de produção, pode deixar de propor alternativas no plano do consumo, que é o que fazem vozes da tecnopolítica cuja ambição suprema é utilizar Tor.
Eu o que desejo é que esse instrumento de produção gere uma série de benefícios para a sociedade e sejam repartidos. É possível utilizar o meio de produção? Sim, reúna essa tecnologia e a politize para pensar formas diferentes de sociedade e de economia. Planeje a economia de maneira automatizada, reduza o peso do mercado e do Estado, utilize a tecnologia para descentralizar os processos de decisão e de planejamento e, portanto, acabar com o Estado e com o mercado ao mesmo tempo. Por outro lado, a tecnologia pode ser utilizada para melhorar a coordenação social e os serviços públicos.
O que diria a quem chegou a esta entrevista por meio do Google ou Facebook?
Peça a seus líderes políticos de esquerda que tenham um plano industrial. Exija isso antes de votar neles, que não se metam com a casta. Também diria a eles como seria bonito se uma entrevista pausada como esta pudesse acontecer em uma televisão pública ou em um espaço onde seja possível debater e falar mais do que lhe é permitido fazer com a rolagem cinco vezes no telefone. Ficaram muitas coisas no tinteiro. Seria bom se houvesse um ecossistema de comunicação que abra espaços para qualquer pessoa que busca gerar conhecimento.
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“O Vale do Silício não é uma criação mágica”. Entrevista com Ekaitz Cancela - Instituto Humanitas Unisinos - IHU