04 Julho 2019
"A Mensagem do Dia dos Pobres contém esse e outros elementos de profecia, que não devem ser silenciados. Pelo contrário, seria apropriado indicar sua leitura meditada em todas as comunidades paroquiais e em todas as famílias", escreve o padre Francesco Cosentino, professor de teologia fundamental na Gregoriana, em artigo publicado por Settimana News, 28-06-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
O grito dos pobres continua a ser ignorado. A amarga constatação - que pareceria até negar o que a Sagrada Escritura nos assegura - surge da observação de que, com exceção de algumas "saídas" oficiais, a Mensagem do Papa Francisco para o 3º Dia Mundial dos Pobres permaneceu vítima de um silêncio ensurdecedor.
Que os pobres sejam incômodos, não é uma novidade. Com sua presença e sua carne ferida, representam a fissura mais perigosa na edificação desta sociedade, construída sobre a primazia do sucesso e da imagem, da fortuna e do dinheiro.
Quando os encontramos, nos cantos da rua, mas também naquelas situações comuns que, tomados pela pressa, muitas vezes deixamos de perceber, os pobres gritam mesmo que não falem.
Que se trate da pobreza material ou da marginalização agora generalizada que o nosso mundo gera, mesmo sem perceber, deixando nas margens da vida pedaços da humanidade confinados à solidão, à doença, ao desemprego, à falta de meios culturais suficientes, à degradação da periferia da cidade ou na miséria humana e espiritual, os pobres estão ali, diante de nossos olhos e contestam a injustiça deste mundo, suas estruturas injustas, seus mecanismos desumanos, sua economia do descarte.
É óbvio que, sobre os pobres, é melhor não falar demais. É melhor não colocá-los no centro, limitando-se a fazer algum gesto de aparente solidariedade, encoberto daquela pátina burguesa da qual a religiosidade do mundo ocidental ainda tem dificuldade de se livrar, que satisfaz as próprias necessidades, usa também Deus para o "capital" de seu bem-estar e realiza gestos que não correspondem a uma real conversão na direção do amor ao próximo e que, portanto, deixam a história assim como ela é.
Ao apresentar a Mensagem para o Dia dos Pobres deste ano, dom Fisichella, presidente do Pontifício Conselho para a Nova Evangelização, destacou claramente a passagem: não apenas gestos esporádicos para os pobres, mas sinais de esperança. Isto é, abertura do coração para entrar em sua cultura, em sua história, no mundo interior que eles vivem.
É a passagem - para usar as palavras do teólogo alemão Metz, também um especialista em teologia fundamental como dom Fisichella - da religião burguesa para aquela messiânica: não gestos que acalmem a consciência, deixando-nos tranquilos num estilo de vida consumista e pouco afetado pelo Evangelho, mas a coragem de se envolver com uma profunda compaixão, entrando na vida do outro e tratando suas feridas. Só isso realmente constrói esperança para os pobres do mundo.
A Mensagem do Dia dos Pobres contém esse e outros elementos de profecia, que não devem ser silenciados. Pelo contrário, seria apropriado indicar sua leitura meditada em todas as comunidades paroquiais e em todas as famílias.
O texto é corajoso, claro, capaz de tocar o coração sem marcar nem tons de acusação, mas também sem realidade diplomaticamente "edulcoradas".
A esperança do pobre, que não se decepciona porque Deus está do lado dele, obriga a fé cristã a sair do conforto dos ritos sagrados que não tocam a vida e não transformam a história, para ir olhar de perto e com lágrimas nos olhos. Aqueles que os escritos do Papa Francisco chamam de "muitas formas de novas escravidões às quais estão submetidos milhões de homens, mulheres, jovens e crianças... famílias obrigadas a deixar a sua terra à procura de formas de subsistência noutro lugar; órfãos que perderam os pais ou foram violentamente separados deles para uma exploração brutal; jovens em busca duma realização profissional, cujo acesso lhes é impedido por míopes políticas econômicas; vítimas de tantas formas de violência, desde a prostituição à droga, e humilhadas no seu íntimo. Além disso, como esquecer os milhões de migrantes vítimas de tantos interesses ocultos, muitas vezes instrumentalizados para uso político, a quem se nega a solidariedade e a igualdade? E tantas pessoas sem abrigo e marginalizadas que vagueiam pelas estradas das nossas cidades?”
A Mensagem chega como um aguilhão poderoso que perturba a tranquilidade de nossa consciência agora acostumada e anestesiada: "vemos os pobres nas lixeiras a recolher o fruto do descarte e do supérfluo ... Eles próprios se tornam parte duma lixeira humana são tratados como lixo, sem que isso provoque qualquer senso de culpa em quantos são cúmplices desse escândalo ... rama dentro do drama, não lhes é consentido ver o fim do túnel da miséria. Chegou-se ao ponto de teorizar e realizar uma arquitetura hostil para desembaraçar-se da sua presença mesmo nas estradas, os últimos espaços de acolhimento.”.
Diante desse cenário, cheio de tristeza e amargura, a fé cristã coloca o sinal daquela esperança que se chama Jesus Cristo. Diante das piadas "sociais" daqueles que contestam a esta Igreja de Francisco uma escolha de campo excessivamente política - enquanto deveria ocupar-se de "almas", incenso e sacristias - a fé cristã é acolhimento do amor que o Pai nos doou em Cristo seu Filho, que não se limita a atos de culto religiosos ou a profissões de fé simplesmente enunciadas, mas transforma a vida a partir de dentro e a direciona para o amor ao próximo.
Nesse sentido, a fé cristã é sempre "orientada politicamente", não porque tem que fazer política ativa nos partidos, mas por ser fé encarnada na história, que convida os crentes a "se posicionarem" diante da dor do mundo e a exercer a compaixão Cristo e sua prática de libertação para os oprimidos do mundo. Carregar a cruz - um convite que Jesus nos dirige - em vez de ser o ato sacrificial de masoquismo espiritual que muitos entendem, deveria significar isso: erguer a dor do mundo, carregando seu peso, até se quebrar e morrer pelo outro. Assim como fez Jesus.
O Papa Francisco não tem dúvidas: é a esperança que o cristianismo é chamado a construir, interceptando a necessidade de Deus que os pobres têm, oferecendo-lhes mãos e coração para serem erguidos, sem esquecer que “Por vezes, basta pouco para restabelecer a esperança: basta parar, sorrir, escutar. Durante um dia, deixemos de parte as estatísticas; os pobres não são números, que invocamos para nos vangloriar de obras e projetos. Os pobres são pessoas a quem devemos encontrar: são jovens e idosos sozinhos que se hão de convidar a entrar em casa para partilhar a refeição; homens, mulheres e crianças que esperam uma palavra amiga. Os pobres salvam-nos, porque nos permitem encontrar o rosto de Jesus Cristo”.
Assim, a Mensagem continua: "Podem-se construir muitos muros e obstruir as entradas, iludindo-se assim de sentir-se a seguro com as suas riquezas em prejuízo dos que ficam do lado de fora. Mas não será assim para sempre. O ‘dia do Senhor’, descrito pelos profetas (cf. Am 5, 18; Is 2 – 5; Jl 1 – 3), destruirá as barreiras criadas entre países e substituirá a arrogância de poucos com a solidariedade de muitos. A condição de marginalização, em que vivem acabrunhadas milhões de pessoas, não poderá durar por muito tempo. O seu clamor aumenta e abraça a terra inteira. Como escrevia o padre Primo Mazzolari: ‘O pobre é um contínuo protesto contra as nossas injustiças; o pobre é um paiol. Se lhe ateias o fogo, o mundo vai pelo ar’".
Enquanto são lidas essas palavras, uma foto de um pai abraçado com sua filhinha nas margens do rio Grande diz o que nos tornamos. Imensa tristeza, com razão, foi a legenda do L'Osservatore Romano. Assim como imensa tristeza é aquela que se sente diante do navio lotado de migrantes em Lampedusa. Uma tristeza que indigna, mas também uma indignação que se torna a semente de um cristianismo de olhos abertos, capaz de fazer a diferença e de perfurar, com coragem, o muro da indiferença, do medo e do ódio.
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O grito dos pobres e da esperança - Instituto Humanitas Unisinos - IHU