28 Junho 2019
"Por sua 'guerra suja' contra a biosfera, Bolsonaro será um dia julgado por ecocídio, um delito que designa a destruição em larga escala do meio ambiente. O Tribunal Penal Internacional (TPI) reconhece o ecocídio como um crime contra a humanidade".
A análise é de Luiz Marques, professor livre-docente do Departamento de História do IFCH/Unicamp; pela editora da Unicamp, publicou Giorgio Vasari, Vida de Michelangelo (1568), 2011 e Capitalismo e Colapso ambiental, 2015, 2a edição, 2016; coordena a coleção Palavra da Arte, dedicada às fontes da historiografia artística, e participa com outros colegas do coletivo Crisálida, Crises SocioAmbientais Labor Interdisciplinar Debate & Atualização (crisalida.eco.br). O artigo é publicado por Jornal da Unicamp, 19-06-2019.
O mote Écrasons l’infâme, com o qual Voltaire assinava suas cartas, exprimia sua indignação contra o obscurantismo e o desprezo pela ciência. No Brasil de hoje, a infâmia chama-se Bolsonaro, agente de anomia social e, acima de tudo, um ecocida que está acelerando exponencialmente a trajetória de nossas sociedades em direção a um colapso socioambiental. É preciso que todos nos organizemos numa grande frente de autodefesa socioeconômica e ambiental para deter a ruína final do país. Bem-vinda seja a essa frente a crescente legião de bolsonaristas desiludidos! Confrontos e revanchismos seriam fatais agora. Quando a casa está pegando fogo, a única opção é salvar o essencial, isto é, a sobrevivência da sociedade organizada e dos alicerces da vida no planeta.
Essa frente de oposição à catástrofe Bolsonaro está crescendo muito rapidamente. Os exemplos chegam de toda a parte. Todos os ex-Ministros ainda vivos do Meio Ambiente, da Educação e da Justiça de todos os governos anteriores conseguiram superar suas imensas diferenças e assinar documentos conjuntos, em nome da obrigação maior de alertar a sociedade brasileira sobre a catástrofe em curso.
A primeira reação veio das sete personalidades que chefiaram o Ministério do Meio Ambiente, desde sua criação em 1992. Rubens Ricupero, Gustavo Krause, José Sarney Filho, José Carlos Carvalho, Marina Silva, Carlos Minc, Izabella Teixeira e Edson Duarte denunciaram por meio de uma carta aberta o “desmonte” desse Ministério pelo moleque de recados de Bolsonaro e do Ministério da Agricultura.
Em carta aberta, publicada na Folha de São Paulo, os onze ex-chefes da pasta da Justiça – homens situados em posições ideológicas tão diversas quanto Aloysio Nunes Ferreira, Eugênio Aragão, José Carlos Dias, José Eduardo Cardozo, José Gregori, Luiz Paulo Barreto, Miguel Reale Jr., Milton Seligman, Raul Jungmann, Tarso Genro e Torquato Jardim – denunciam os “retrocessos” de conquistas históricas sobre a convivência civilizada entre os membros da sociedade: “Como ex-ministros e cidadãos, estamos convencidos de que ampliar o acesso às armas e o número de cidadãos armados nas ruas, propostas centrais dos decretos publicados pelo Executivo federal, não é a solução para a garantia de nossa segurança, de nosso desenvolvimento e de nossa democracia”.
Não menos contundente é a carta aberta lançada por seis ex-Ministros da Educação – José Goldenberg, Murilo Hingerl, Cristovam Buarque, Fernando Haddad, Aloizio Mercadante e Renato Janine Ribeiro – na qual afirmam: “A Educação se tornou a grande esperança, a grande promessa da nacionalidade e da democracia. Com espanto, porém, vemos que, no atual governo, ela é apresentada como ameaça”. Cientes da necessidade de derrotar a tentativa de destruir o pouco que foi alcançado na educação brasileira, os ex-ministros estão criando o Observatório da Educação Brasileira.
Essas cartas abertas à sociedade brasileira são um fenômeno sem precedentes na história política do país e mostram boa percepção da envergadura extrema do perigo Bolsonaro. Não por acaso os signatários em questão são justamente os ex-representantes, nas políticas públicas nacionais, da educação, da justiça e do meio ambiente, pois esses são os três setores nos quais o déficit histórico da sociedade brasileira é nada menos que abissal. Os dois primeiros setores – a educação e a justiça – estão se insurgindo contra Bolsonaro.
Milhões de pessoas já foram às ruas em todos os estados do país e estão mobilizadas em defesa da agenda educacional. Essas manifestações mostraram a importância que a sociedade como um todo atribui a todos os níveis da educação e à pesquisa universitária. E quando digo a sociedade como um todo, refiro-me ao arco que vai de Delfim Neto a Haddad e Boulos, e que vai dos setores mais excluídos aos mais privilegiados da sociedade brasileira. Desde 15 de maio, a sociedade brasileira vem colocando Bolsonaro contra a parede, reduzindo-o às suas vociferações habituais contra os estudantes e a seus disparos instintivos contra tudo o que lhe pareça dotado de vida inteligente. A vitória da sociedade é clara: a Justiça atendeu ação movida pelo diretório estudantil da UnB e mandou o MEC suspender o bloqueio de recursos às Universidades federais. Abraham Weintraub foi completamente desmoralizado pela inquirição da Deputada Tabata Amaral no Congresso Nacional. Ele ainda pode recorrer da decisão judicial, mas isso só o tornará ainda mais desprezível aos olhos da opinião pública. E isso é só o começo…
A questão da Justiça não se restringe apenas ao pacto civilizacional, segundo o qual o Estado deve ter o monopólio das armas, de modo a inibir a extrema agressividade pulsional de nossa espécie. E isso inclui inibir o fetiche de Bolsonaro por armas, já várias vezes associado à sua obsessão pelo falo. A questão da Justiça estende-se a outra condição essencial de toda civilização: a distinção entre política e justiça.
A autodenominada Força-Tarefa Lava-Jato de Curitiba, chefiada pelo então juiz e hoje Ministro da Justiça de Bolsonaro, traiu o anseio da sociedade brasileira por isonomia no combate à corrupção e demais formas de malversação dos recursos públicos. As revelações trazidas pelo The Intercept Brasil começaram a desnudar o fato maior da história recente do país: o ex-juiz Sérgio Moro fez ignóbil dobradinha contra a defesa, traindo a missão primeira de todo juiz: julgar de modo objetivo e equidistante das partes. Como bem afirma Glenn Grenwald, “o objetivo de Moro era prender Lula e torná-lo inelegível”. Ele estava “obcecado por isso”. Num artigo da revista Época (15/06/2019), Luiz Fernando Vianna põe em evidência um dos fatos mais grotescos do Brasil contemporâneo: “Nem que fosse para manter as aparências, [Moro] jamais poderia aceitar um convite de Jair Bolsonaro, cuja vitória foi impulsionada pela inviabilização da candidatura de Lula”. Só um homem com dose tão repugnante de improbidade e indignidade poderia caber na posição de Ministro da Justiça de Bolsonaro. E também aqui a sociedade brasileira está se mostrando intransigente. A começar pelos próprios pares do Ministro. O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, por exemplo, divulgou nota na qual afirma: [I]
“Não se pode desconsiderar (…) a gravidade dos fatos, o que demanda investigação plena, imparcial e isenta, na medida em que estes envolvem membros do Ministério Público Federal, ex-membro do Poder Judiciário e a possível relação de promiscuidade na condução de ações penais no âmbito da operação lava-jato. Este quadro recomenda que os envolvidos peçam afastamento dos cargos públicos que ocupam, especialmente para que as investigações corram sem qualquer suspeita. A independência e imparcialidade do Poder Judiciário sempre foram valores defendidos e perseguidos por esta instituição, que, de igual modo, zela pela liberdade de imprensa e sua prerrogativa Constitucional de sigilo da fonte, tudo como forma de garantir a solidez dos pilares democráticos da República.
A Ordem dos Advogados do Brasil, que tem em seu histórico a defesa da Constituição, da ordem jurídica do Estado Democrático e do regular funcionamento das instituições, não se furtará em tomar todas as medidas cabíveis para o regular esclarecimento dos fatos, especialmente junto ao Supremo Tribunal Federal (STF), Procuradoria-Geral da República (PGR), Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e Conselho Nacional de Justiça (CNJ), reafirmando, por fim, sua confiança nas instituições públicas”.
O juiz Alfredo Attié Junior, presidente da Academia Paulista de Direito, afirmou no mesmo sentido: “A principal nulidade de qualquer processo, sobretudo do processo penal, decorre da suspeição do juiz ou da juíza que profere uma decisão. (…) Em teoria do direito, chama-se princípio do juiz natural. (…) O sistema jurídico se corrompe quando o princípio do juiz natural é quebrado. Ou seja, o pior que pode acontecer numa sociedade é o juiz se tornar parcial. Quer dizer, ele não julga mais. Ele passa a participar do processo, torna-se parte, aconselhando um dos lados, tornando-se próximo, íntimo de uma das partes. No caso, segundo o que se lê da publicação, não negada pelas pessoas envolvidas, o juiz do caso trocava ideias com o órgão de acusação, sugerindo caminhos e usando, inclusive, o pronome ‘nós’, primeira pessoa do plural. O órgão de acusação recebia do juiz impressões e sugestões fora dos autos, sem o controle da sociedade e sem que as outras partes, os réus e investigados, soubessem e pudessem se defender e mesmo apresentar representação pelo afastamento do juiz, que se tornava suspeito, ou seja, parcial, interessado no desenrolar do processo e na decisão da condenação. Vejo como grave a referência a órgãos da mídia, como se aliados fossem, ou, pior, como se a condução se pautasse pela utilização de meios de comunicação, ao ponto de se poder pensar em manipulação da opinião pública. É extremamente grave, porque o ato ilegal de um juiz ou de uma juíza, seja quem for, influencia na visão que a sociedade tem do judiciário como um todo. (…) Penso que deve haver investigação dos órgãos de controle, invalidação de decisões e mesmo de atos do Ministério Público e punição dos responsáveis.
O TER, o STJ, o STF devem investigar. (…) Mas não é possível prever o que o presidente Bolsonaro vai fazer. Ele deve, em tese, preservar seu governo de uma dúvida de ilegitimidade. Se fizer o oposto, a crise vai aprofundar, pois vivemos momento de contestação da legitimidade”. [II]
A transgressão de vários artigos do código penal por Moro, sob o pretexto de um pretenso combate à corrupção econômica, corrompeu a lisura do judiciário e tornou a corrupção brasileira ainda mais sistêmica. No que se refere em particular a Lula, não cabe a mim e a ninguém que não tenha competência jurídica e não esteja imerso na análise dos autos do processo emitir vereditos. Mas cabe a todos nós, cidadãos, reconhecer e afirmar alto e bom som que Lula não teve um julgamento justo. E porque não teve, tudo o que Moro e “seus” Procuradores conseguiram foi, em suma, transformá-lo num prisioneiro político. E essa é uma razão a mais, importantíssima, mas não a principal, para tornar moralmente ilegítima a vitória eleitoral de Bolsonaro.
Por que não a principal? Pela simples razão de que o mal feito por Bolsonaro e Moro à educação e à justiça, por pior que seja, é reparável. Ninguém ignora que a educação no Brasil nos níveis pré-universitários está de há muito numa situação alarmante. Indicadores de progresso existem, mas são modestos e não definem claramente a tendência geral. Com Bolsonaro, todos os indicadores vão despencar a níveis jamais imaginados. E, entretanto, reverter esse declínio será sempre possível no “após-Bolsonaro”, pois essa reversão depende apenas da decisão da sociedade de pôr em marcha um processo positivo. Na esfera da justiça ocorre o mesmo. Injustiças podem causar estragos imensos, mas também elas são reparáveis. Aliás, a Justiça existe justamente para reparar injustiças, já que é impossível evitá-las.
Mas o mal que Bolsonaro está fazendo à natureza e a nós todos, ao liberar o desmatamento, a caça e os agrotóxicos, é irreparável ou, na melhor das hipóteses, o será muito em breve, talvez mesmo já durante o quadriênio de seu mandato. E, no entanto, esse mal, incomparavelmente maior que todos os demais, ainda não mobiliza as ruas, a imprensa e, de forma geral, a opinião pública. Com exceção das vigorosas manifestações dos ex-Ministros do Meio Ambiente e de algumas associações da sociedade civil (Observatório do Clima, ClimaInfo, Instituto Socioambiental, Greenpeace etc), poucos são ainda os sinais vitais de autodefesa da sociedade. As greves dos adolescentes em defesa do meio ambiente (Fridays for Future) não estão ecoando com força entre nossos adolescentes.
Nem mesmo na Universidade, supostamente mais bem informada sobre os diagnósticos científicos, percebem-se reações de grande envergadura. Trata-se de uma omissão grave e injustificável. As Universidades não estão cumprindo sua missão e dever de informar e alertar a sociedade para o colapso socioambiental já em curso, processo que ainda podemos, contudo, atenuar significativamente, aumentando nossas chances de adaptação. Num próximo artigo, devo abordar o uso em doses brutais pelo agronegócio brasileiro de clorpirifós, um inseticida da classe dos organofosforados que inibe a transmissão dos receptores do sistema nervoso, consensualmente acusado de ser responsável pela perda irreversível de QI nas crianças. Atenho-me aqui, por falta de espaço, apenas à questão da perda de biodiversidade.
As florestas tropicais são (ainda) o habitat de 80% das espécies terrestres. O desmatamento é, portanto, a forma mais fulminante de destruir o maior número possível de formas de vida. Um trabalho publicado por James Watson e colegas (2016) mede a dimensão da catástrofe em escala global: [III]
“Demonstramos perdas alarmantes, compreendendo um décimo (3,3 milhões de km2) de áreas selvagens (wilderness [IV]) globais nas duas últimas décadas, particularmente na Amazônia (30%) e na África Central (14%)”.
Na mente entrevada de Bolsonaro, contudo, as florestas tropicais são um estorvo. Para ele, os que desmatam são vítimas da “indústria das multas”. Por isso, proclama com orgulho que “está tirando o Estado do cangote de quem produz e investe”. [V] Em outras palavras, “liberou geral”… O presidente do Brasil conclamou suas hostes a substituir florestas por soja e gado. A destruição da cobertura florestal do país não começou com Bolsonaro, é claro. Mas pode se consumar com ele. Justamente porque essa destruição foi posta em marcha pela ditadura militar no final dos anos 1960, e justamente porque os governos civis prolongaram a linha ascendente da devastação (exceção feita aos anos 2005 – 2012), a situação das florestas brasileiras tornou-se hoje extremamente precária.
Estamos muito próximos de cruzar pontos críticos, os quais, uma vez cruzados, dão lugar a processos terminais irreversíveis. Um “empurrãozinho” a mais numa floresta já muito amputada e degradada pode bastar para que ela se desestabilize de vez e transite para uma formação não florestal, num processo eventualmente abrupto.
Também a sobrevivência das espécies depende de não se ultrapassarem pontos críticos de redução de suas populações e de empobrecimento de sua diversidade genética, dois fatores obviamente interligados. Quando ambas declinam muito, a espécie torna-se criticamente vulnerável à extinção. Fruto de um trabalho de três anos de mais de 150 cientistas de mais de 60 países, a primeira avaliação global do estado da biodiversidade planetária, lançada em maio de 2019 pela Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES), mostra exatamente isso: 1 milhão de espécies animais e vegetais – 12,5% do total estimado de 8 milhões de espécies na Terra (75% das quais são insetos) – podem se extinguir nas próximas poucas décadas. [VI]
Segundo as estimativas do IPBES, cerca de 550 mil espécies de insetos estão ameaçadas de extinção. Grande parte dos polinizadores são insetos e da polinização depende a conservação das florestas e de muitos produtos agrícolas.
O agente maior do colapso da biodiversidade advertido pelo IPBES é a engrenagem do sistema alimentar corporativo e globalizado, dominado pelas megacorporações da agroquímica, por um punhado de Traders, por bancos que transformaram os alimentos em commodities negociadas em mercados futuros e por fazendeiros que veem nas florestas um obstáculo à expansão de seus negócios. Os fazendeiros são apenas a ponta do iceberg, mas são os agentes diretos do abate global de algo como 15 bilhões de árvores por ano. [VII]
Consequência direta disso: segundo Rodolfo Dirzo, Mauro Galetti e coautores de uma revisão publicada na Science de julho de 2014, “estamos perdendo entre cerca de 11 mil e 58 mil espécies anualmente”, [VIII] o que significa algo entre 30 e 159 espécies por dia. Doze anos atrás, Sigmar Gabriel, então Ministro do Meio Ambiente na Alemanha, já afirmava: “A perda de diversidade biológica em escala global está avançando a um ritmo sem precedentes. Até 150 espécies estão se extinguindo a cada dia. A teia da vida que sustenta nossa sociedade global está se tornando mais e mais frágil”. [IX] Em junho de 2010, o documento The State of the Planet’s Biodiversity do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) estimava que “entre 150 e 200 espécies animais e vegetais extinguem-se a cada 24 horas”. [X] A velocidade da sexta extinção não tem medida comum com as cinco maiores extinções em massa anteriores. Em 2005, o Millenium Ecosystem Assessment afirmava: “As taxas de extinções conhecidas de espécies no século XX foram de 50 a 500 vezes maiores que a taxa de extinção calculada a partir dos registros fósseis, que é de 0,1 a 1 extinção por 1.000 espécies por 1.000 anos. A taxa atual é até 1.000 vezes maior que as taxas de extinção de base, se incluirmos as espécies possivelmente já extintas”. E o mesmo documento projetava que em 2050 a taxa de extinção será uma ordem de grandeza maior que as taxas atuais, isto é, uma taxa até 10.000 vezes maior que a taxa de base [XI]. Estamos agora, em 2019, em suma, em estado de denegação, isto é, de recusa irracional de confrontar a realidade.
E, entretanto, ainda está em nossas mãos, como sociedade organizada, evitar esse não futuro. E a responsabilidade de quem mora no Brasil é tanto maior, dada a riqueza extraordinária da biodiversidade no país. O Brasil, justamente por essa riqueza, está sendo a maior vítima desse processo. Isso se evidencia de modo inequívoco no terceiro dos três gráficos da Figura 1, que resumem os dados da última avaliação do Living Planet Index (LPI).
Fonte: Damian Carrington, “Humanity has wiped out 60% of animal populations since 1970, report finds”. The Guardian, 30/X/2018. Baseado em Living Planet Index. 2018: Aiming higher.
Esses três gráficos mostram quedas abruptas de abundância, entre 1970 e 2014, em 16.704 populações de 4.005 espécies de vertebrados em todo o planeta, avaliadas por mais de 50 cientistas do LPI. O gráfico da esquerda mostra que nesse período de menos de meio século a humanidade eliminou em média 60% das populações das 4.005 espécies de vertebrados avaliadas. A esse respeito, Mike Barrett, diretor executivo de ciência e conservação da WWF, comentou: [XII]
“Estamos sonambulando em direção à beira do abismo. Se houvesse um declínio de 60% da população humana, isso seria equivalente a esvaziar a América do Norte, a América do Sul, a África, a China e a Oceania. Essa é a escala do que fizemos. Isso é muito mais do que simplesmente estar perdendo as maravilhas da natureza, tão desesperadamente triste quanto isso seja. Isso está na realidade ameaçando o futuro das pessoas. A natureza não é algo ‘agradável de se ter’ – é o sistema de suporte de nossa vida”.
Há anos, outros cientistas vêm dizendo o mesmo. Em 2011, comentando o relatório do Panorama da Biodiversidade Global 3, Achim Steiner, então subsecretário-geral das Nações Unidas e diretor-executivo do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), lamentava: “A arrogância da humanidade é que, de alguma forma, imaginamos que podemos sobreviver sem a biodiversidade, ou que ela é, de algum modo, periférica”.
O gráfico central da Figura 1 mostra que as populações dos vertebrados vivendo em habitats de água doce colapsaram em média em 83%. O gráfico da direita mostra, enfim, o que está acontecendo no Brasil, e em geral na América do Sul e Central: uma redução média de 89% das populações avaliadas. Isso quer dizer que onde havia 100 indivíduos de uma dada espécie, hoje há apenas, em média, 11. Lontras e macacos aranhas, por exemplo, estão no limiar da extinção.
Como mostra a Figura 2, os três principais vetores dessa aniquilação da natureza são a caça (Exploitation, 37%), a degradação dos habitats (31,4%) e o desmatamento (13,4%), os três pontos que Bolsonaro tem priorizado pessoalmente em seu “plano de governo”. Juntos, eles somam 81,8% das causas do extermínio em curso dos vertebrados, como mostra a Figura 2.
Figura 2 Ameaças primárias às populações de vertebrados avaliadas (Fonte: Living Planet Index Report 2014)
Por sua “guerra suja” contra a biosfera, Bolsonaro será um dia julgado por ecocídio, um delito que designa a destruição em larga escala do meio ambiente. O Tribunal Penal Internacional (TPI) reconhece o ecocídio como um crime contra a humanidade. Valérie Cabanes, da ONG End Ecocide On Earth, afirma que “a ideia de ecocídio existe há 50 anos e foi evocada pela primeira vez quando os americanos usaram dioxina nas florestas durante a Guerra do Vietnã. Agora queremos reviver essa ideia que considera que atentar gravemente contra ciclos vitais para a vida na Terra e ecossistemas deve ser considerado um crime internacional”. [XIII] Objetos dessa criminalização são as grandes corporações e chefes de Estado, e as penas de prisão podem valer para o Brasil, país signatário do Tratado de Roma, que aceita a jurisdição do TPI. Em todo o caso, Bolsonaro terá assegurado o direito a um julgamento imparcial, o que é bem mais do que o julgamento a que Lula teve direito.
Referências:
[I] – Ver
[II] – Cf. Frederico Vasconcelos, “Juiz sugere afastamento de Moro e criação de CPI”. Folha de São Paulo, 11/VI/2019.
[III] – Cf. James E.M. Watson et al., “Catastrophic Declines in Wilderness Areas Undermine Global Environment Targets”, Current Biology, 7/XI/2016.
[V] – Cf. Gustavo Porto, “Na Agrishow, Bolsonaro diz querer não atrapalhar quem produz”. UOL, baseado em O Estado de São Paulo, 29/IV/2019.
[VI] – O IPBES segue critérios estabelecidos pela União Internacional de Conservação da Natureza (IUCN), cuja Lista Vermelha das Espécies Ameaçadas soma 25% das mais de 70 mil espécies monitoradas.
[VII] – Cf. T. W. Crowther et al. (2015). “Mapping tree density at a global scale” Nature, 2/IX/2015.
[VIII] – Cf. R. Dirzo, M. Galetti; Ben Collen et al. “Defaunation in the Anthropocene”. Science, 345, 6195, 25/VII/2014, pp. 401-406.
[IX] – Citado por Thomas L. Friedman, “In the Age of Noah”. The New York Times, 23/XII/1997: “The loss of global biological diversity is advancing at an unprecedented pace. Up to 150 species are becoming extinct every day. The web of life that sustains our global society is getting weaker and weaker.”
[X] – Veja-se.
[XI] – Cf. Ecosystems and human well-being. Synthesis, 2005, p. 38 (em rede).
[XII] – Citado por Damian Carrington, “Humanity has wiped out 60% of animal populations since 1970, report finds”. The Guardian, 30/X/2018:“We are sleepwalking towards the edge of a cliff. If there was a 60% decline in the human population, that would be equivalent to emptying North America, South America, Africa, Europe, China and Oceania. That is the scale of what we have done. This is far more than just being about losing the wonders of nature, desperately sad though that is. This is actually now jeopardising the future of people. Nature is not a ‘nice to have’ – it is our life-support system.”
[XIII] – Cf. “Tribunal Penal Internacional reconhece “ecocídio” como crime contra a humanidade”. Consultor Jurídico, 12/II/2017.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Bolsonaro, o ecocida. Artigo de Luiz Marques - Instituto Humanitas Unisinos - IHU