11 Junho 2019
"Você sabe muito bem que o melhor da tradição cristã (que é o menos conhecido dela) te chamou de pecadora, mas não era para te denigrir como uma mulher, mas para lembrar-nos que o amor de Deus é capaz de tirar do maior pecador uma santidade superior a de todos os bons, sempre tão ameaçados por essa tentação do farisaísmo", escreve José Ignácio González Faus, jesuíta, teólogo, em carta à Maria Madalena.
A carta é publicada pelo blog de Cristianisme i Justícia. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Minha irmã:
Não estranhe que eu te escreva. Se já escrevi cartas até para Deus! Acontece que, de tanto escrever, penso muito melhor escrevendo. E como escrever sozinho é entediante, imaginar um interlocutor me inspira mais. Dessa vez você é a vítima, porque tenho algumas perguntas perdidas por aí...
Não vou te perguntar se foste tu a primeira testemunha da aparição do Ressuscitado (como conta João) ou se foi todo o grupo de mulheres (como conta Mateus) ou se, como narra Marcos, as mulheres saíram todas assustadas sem dizer nada a ninguém. Sabemos já que essas perguntas, tão importantes para nossa curiosidade (que não para nossa fé), eram alheias às intenções dos evangelistas que, além disso, deveriam encontrar distintas tradições orais, em parte coincidentes e em parte distintas. Sei que o importante para os evangelistas nesse caso é o fato de que o Ressuscitado se refere aos apóstolos como “meus irmãos”, e nisso coincidem tanto Mateus como João. O importante é essa nova situação a partir da Ressurreição de Jesus.
Porém me resta outra pergunta que pode ter mais significado. Não sei se tu és a mesma prostituta daquela cena que fecha o capítulo 7 do Evangelho de Lucas. Antes se dava por certa essa identificação, talvez um pouco rapidamente, pois Lucas nunca disse que essa cena da pecadora ocorrera em Magdala, ainda que seja verdade que, somente 2 versículos depois, nos conta que a primeira das mulheres que acompanhavam Jesus era “Maria, a chamada Madalena, da qual haviam saído sete demônios”. Esses são os dados que eu conheço, e acho que eles não podem chegar por si a qualquer conclusão verdadeira.
Hoje existem muitos que tomam como certa a não identificação entre a prostituta de Lucas 7 e a ti, Maria. Eu me pergunto se não é mais por razões afetivas que por argumentos científicos... Talvez tu possas acrescentar que, dado o que eram as aldeias ao redor do lago onde Jesus se deslocava, Magdala foi uma das poucas que poderiam ter uma prostituta, pois tinha indústrias de peixes salgados (para levar o peixe para Jerusalém) e isso lhe dava um ar mais urbano e um nível de vida superior ao entorno. Flávio Josefo disse que tinha cerca de 40.000 habitantes, mas não são cifras seguras. Eu acho que não podemos dizer mais nada.
Mas se estou interessado em tua identidade, eu acho que não é só por curiosidade, mas porque essa questão científica pode esconder uma outra questão muito mais séria. Eu explico:
Duas ou três vezes eu vi esse título lá fora: “Maria Madalena não era uma prostituta". Alguém poderia perguntar ao autor, ou autora, como ele sabe disso. Porém eu prefiro perguntar se ele diz isso querendo te defender. Pois essa vontade de "desfazer moinhos", de Dom Quixote, reflete uma definição da prostituta como uma pecadora. E essa é uma definição totalmente machista, feita a partir de uma perspectiva masculina. Claro, existira, e existem, algumas prostitutas que são verdadeiras pecadoras: como aquelas prostitutas de que fala o livro bíblico do Eclesiástico. Mas esse qualificativo não se aplica à maioria delas.
Na maioria dos casos, a prostituta não é uma pecadora, mas uma vítima. E o poder patriarcal tem emergido como claramente o primeiro adjetivo, como faz também nossa economia machista, quando nos diz que os pobres assim são "por sua própria culpa". E claro, alguns o são por isso. Mas a maioria não. Há muitos anos, eu escutei Iñaki Gabilondo falar em uma televisão que mais de 90% das prostitutas na Espanha, exercem o ofício contra sua vontade. Mas ali continuam.
Com nossa indiferença para com esta tremenda tragédia, o carrasco fica livre de culpa e a vítima torna-se em culpada. E repito: isso não é verdade na maioria dos casos. É por isso que dói que um ramo do feminismo contemporâneo (que chamo de feminismo burguês), nunca tenha aberto a boca para protestar contra tamanha calúnia: como se essas pobres prostitutas não fossem as mulheres as quais todo feminismo autêntico deve se preocupar!
Se tu, querida Madalena, estivesses entre aquelas, como suspeito, me entenderás melhor do que aquelas pseudofeministas: tu saberias muito bem que um dos mais velhos sofrimentos de qualquer vítima é causado pela incapacidade de ser reconhecida como uma vítima ou como maltratada. E só Deus sabe a quantidade de lágrimas derramadas em solidão e em silêncio, o que é essa dor provocada na maioria das prostitutas.
Concreções dessa dor há muitas: é típica a crueldade irresponsável do macho que se recusa a vestir uma camisinha, correndo o risco de infectar a pobre mulher. É atual que a relação em que o, eufemisticamente, chamado "cliente" se apaixona por uma garota e brinca com ela: quando ela procura carinho, ele a maltrata, mas quando ela quer deixá-lo imediatamente, ele se torna amoroso e carinhoso e a engana. É mais frequente do que pensamos que a relação sexual termine com a violência física (hematomas, mordidas e outros golpes ...), porque o homem não suporta a dependência que aquela mulher criou ou o seu próprio descontrole sexual, e se vinga castigando-a no lugar de castigar a si mesmo.
Para outros casos, naqueles que há mudança constante de casal, eu ouvi duas vezes de homens casados o comentário de que "todos os dias, a mesma comida, cansa". Para o qual eu tentei responder que se sua esposa e o outros são para você apenas um prato, não há mais o que dizer. E ele literalmente clama ao céu a situação de muitas meninas, raptadas como escravas para aqueles que foram roubados a documentação, impôs uma dívida muito alta, real ou fictícia, que permanece ao controle dele, e nem estão autorizadas a sair de casa para que não possam escapar.
Por tudo isso, Madalena admirável, amiga íntima de Jesus, sinto muito que o evangelista Lucas não esclareceu mais a tua identidade. No caso de que fosses aquela pecadora ungida por Jesus no final do Capítulo 7 do livro de Lucas, entrando na casa do fariseu que te tinha convidado para comer, sinto muito que o evangelista, talvez por causa da honestidade narrativa, não disse nada sobre o que provocou essa tua conduta. Eu gostaria de saber o que foi para ti isso que chama “A porta aberta”, um ótimo filme que só poderia ser feito por uma mulher. Saber se houve alguma forma de encontro prévio: talvez um olhar furtivo e terno que derreteu todas as tuas paredes interiores, ou se era apenas a fama e o que tu ouviste falar de Jesus que te deu força, loucura e coragem suficiente para jogar tudo em uma difícil aposta, correndo aquele risco com a certeza de que era um "agora ou nunca". A tua fé te salvou, como costumava dizer o Mestre.
Nós nunca saberemos se foste tu ou não a pecadora daquela cena que conta Lucas. Mas pelo menos ele nos diz que tinham saído de ti "sete demônios" (e 7 é o número de plenitude). Em todo caso, não tenho certeza te dizer que Maria Madalena não era uma prostituta é uma maneira de defendê-la e elogiá-la. Tu sabes muito bem que o melhor da tradição cristã (que é o menos conhecido dela) te chamou de pecadora, mas não era para te denigrir como uma mulher, mas para lembrar-nos que o amor de Deus é capaz de tirar do maior pecador uma santidade superior a de todos os bons, sempre tão ameaçados por essa tentação do farisaísmo.
Temo por quem dá por certo que não foste uma prostituta, mesmo que os argumentos históricos sejam tão duvidosos. Eu ainda não tinha sabido levar a cabo aquele programa de J.B Metz, de ir “mais além da religião burguesa”. E me confirmo outra vez: uma das coisas em que mais diferem a fé cristã da religião burguesa é no conceito de dignidade. Mais próxima está o cristianismo do chato Marx, quando afirma (no Manifesto...) que “a burguesia chegou para fazer da dignidade pessoal um mero valor de troca”.
E se verdadeiramente foste uma “vítima” no sentido que tentei descrever aqui, a outra cena leva à profundidade do teu encontro com o Ressuscitado, no capítulo 20 de João e aquela palavra, única, que te abriu os olhos: “Maria!”. Nada mais.
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Carta à Maria Madalena - Instituto Humanitas Unisinos - IHU