04 Junho 2019
Quando o arcebispo Carlo Maria Viganò pediu ao Papa Francisco que renunciasse no verão passado por supostamente encobrir os crimes sexuais do ex-cardeal Theodore McCarrick, foi "como um terremoto para a Igreja".
O comentário é de Robert Mickens, publicada por La Croix International, 31-05-2019. A tradução é de Natália Froner dos Santos.
Foi assim que o Monsenhor Anthony Figueiredo, ex-funcionário do Vaticano e consultor de longa data da CBS News, descreveu o "testemunho" de Viganò, um dossiê de 11 páginas de acusações e insinuações dirigidas ao Papa e a quase uma dúzia de prelados do Vaticano.
Mons. Figueiredo, um padre da Arquidiocese de Newark (Nova Jersey) que vive em Roma desde 2006, imediatamente defendeu a credibilidade de Viganò.
"Eu o conheço pessoalmente", disse ele à CBS. "Eu o conheço como um homem de grande integridade, essencialmente honesto. Ele trabalhou para três papas diferentes e foi enviado para uma posição no Vaticano, uma posição diplomática tão grande quanto os Estados Unidos, o que significa que ele é um homem de confiança."
O muito brilhante e articulado padre de Newark defendeu Viganò em 27 de agosto de 2018, apenas um dia depois que o ex-núncio papal acompanhou cuidadosamente o LifeSite News e o National Catholic Register para que publicassem suas 11 páginas de acusações.
Agora, nove meses depois, Mons. Figueiredo está de volta aos noticiários. E como!
Seguindo as pegadas de seu amigo, o arcebispo Viganò, o padre de 55 anos tornou-se o mais recente clérigo com um perfil público a denunciar o encobrimento da Igreja na hierarquia.
Ele o fez em 28 de maio quando lançou – simultaneamente através da CBS e da publicação católica, Crux – trechos de correspondência pessoal com McCarrick, um homem que (você verá em breve) ele já considerou uma figura paterna e patrono.
Esses trechos cuidadosamente escolhidos reforçam as alegações feitas por Viganò e outros de que um número de funcionários do alto escalão da Igreja estavam cientes de que Bento XVI havia discretamente colocado restrições ao ex-cardeal, mas não fizeram nada para aplicá-las.
O mais notável entre os acusados é o cardeal Donald Wuerl, o recém-aposentado arcebispo de Washington. Wuerl já negou qualquer conhecimento de sanções.
Mas o que há de novo no acervo de documentos de Figueiredo é que o próprio McCarrick afirma em cartas, que o monsenhor transmitiu às autoridades em Roma, que ele discutiu suas restrições com Wuerl. Mas, como McCarrick, agora destituído, provou ser menos que verdadeiro em vários outros assuntos, é apenas sua palavra contra a de Wuerl.
Mons. Figueiredo postou os documentos – e avisa que pode postar outros – em um site especial, chamado "Relatório Figueiredo". Apesar do nome auto-referencial do site, ele oferece razões nobres porquê ele se tornou um denunciante.
"Minhas ações em liberar este relatório neste momento são encorajadas pelo motu proprio do Papa “Vos Estis Lux Mundi”, baseado no princípio primordial de que é imperativo colocar no domínio público, na hora certa e prudentemente, informação que tem ainda de vir à luz e impacta diretamente em alegações de atividade criminosa, as restrições impostas ao meu ex-arcebispo agora laicizado, e que sabia o que e quando", diz ele.
Figueiredo expressa sua "afeição inabalável, lealdade e apoio ao Papa Francisco" e afirma que deseja “apenas apresentar fatos que ajudem a Igreja a conhecer a verdade".
Ele diz que vai a público agora depois de fazer "tentativas desde setembro de 2018 para compartilhar e discutir esses [documentos] com a Santa Sé e outros líderes da Igreja".
A implicação, claro, é que tais tentativas foram infrutíferas.
"O abuso de autoridade da hierarquia e o encobrimento, em suas diversas e sérias manifestações, infligiu consequências sobre mim também", revela o padre, expressando arrependimentos por ter prejudicado outros ao "buscar consolo no álcool". Ele diz que a terapia agora está ajudando-o a "abraçar uma vida de sobriedade".
De fato, em 1º de outubro de 2018 – apenas cinco semanas depois de defender o arcebispo Viganò por publicar seu dossiê – Mons. Figueiredo foi preso por causar um acidente ao operar um automóvel no estado de embriaguez. Ele acabou se declarando culpado por dirigir embriagado e bater em um carro dirigido por uma mulher grávida.
Greg Burke, que era o chefe da Assessoria de Imprensa do Papa na época, disse que Figueiredo havia sido chamado de volta à sua diocese de origem. Certamente deve ter sido um ponto baixo para um homem que vivia permanentemente em Roma desde 2006.
É natural que, tendo vivido em Roma e seguido os assuntos eclesiásticos e políticos por mais de 30 anos, fico um pouco cético quando um clérigo tem uma conversão repentina e começa a lavar a roupa suja da Igreja. Muitas vezes há mais do que aquilo que se encontra aos olhos.
Sem questionar a integridade ou motivos de Mons. Figueiredo, há uma série de aspectos de sua história pessoal e vocacional que devem levar qualquer jornalista a examinar mais cuidadosamente as razões completas de suas últimas ações.
Este padre sabe muito mais do que o que ele compartilhou até agora nesta seleção parcimoniosa e cuidadosa de correspondência com Theodore McCarrick.
Ele conhece o ex-cardeal desde pelo menos o início dos anos 1990 e os dois homens ficaram muito próximos nos anos seguintes.
Muito antes de cair em desgraça, McCarrick era talvez o patrono mais influente e bem relacionado da Igreja para Figueiredo.
Agora, qualquer conexão com McCarrick é a maior responsabilidade de Figueiredo. É compreensível por que o padre gostaria de se distanciar do homem que ele uma vez teve em tão alta estima.
McCarrick é a primeira pessoa que Figueiredo menciona na lista de agradecimentos encontrada em sua dissertação de doutorado, publicada pela Gregorian University Press em 2001.
“Sou grato a Deus pelo Cardeal Theodore McCarrick, que, como Arcebispo de Newark, me conferiu o dom do sacerdócio e me designou para fazer estudos em Roma”, escreveu Figueiredo em 2000 na página de agradecimentos de sua dissertação doutrinal.
"Sua Eminência tem sido um verdadeiro 'pai-em-Cristo', apoiando-me com seu cuidado, confiança e correção semelhantes aos de Cristo", escreveu o padre.
O caminho de Figueiredo para a ordenação foi através do Caminho do Neocatecumenato, um dinâmico, mas controverso, movimento pós-Vaticano II na Igreja, comumente chamado de Neocats.
Nascido no Quênia, e originalmente em Goa, sua família se mudou para a Inglaterra quando ele tinha três anos.
Após a conclusão dos estudos universitários no Reino Unido, ele "embarcou em uma carreira no setor bancário internacional na cidade de Londres".
Mas de acordo com um esboço biográfico de uma conferência da Igreja em 2011 nos Estados Unidos, Figueiredo "desistiu de sua posição de prestígio" três anos depois e fez o trabalho missionário "em lugares tão diversos como Nova York, Los Angeles e Etiópia".
A experiência despertou seu desejo de se tornar padre.
Não está claro como ele acabou em Newark, mas é certo que ele frequentou o seminário Redemptoris Mater que o então arcebispo McCarrick tinha acabado de permitir que os Neocats abrissem na arquidiocese. Figueiredo estava na primeira turma de ordenação do seminário de 1994.
Ele diz em seu novo site que ele serviu como secretário pessoal de McCarrick de setembro de 1994 a junho de 1995. São apenas nove meses. Mas ele acrescenta que retomou a assistência ao ex-cardeal "em caráter secretarial" quando se mudou para Roma.
Pouco mais de um ano depois da ordenação, o padre Figueiredo fez o trabalho missionário na Estônia com os Neocats. Depois, McCarrick o enviou a Roma para estudos de pós-graduação (1996-2000).
O jovem padre obteve um doutorado em teologia dogmática na Universidade Gregoriana, onde trabalhou sob a direção do falecido Karl Becker SJ (falecido em 2015), um teólogo alemão que Bento XVI nomeou cardeal em 2012.
Com o diploma de doutorado na mão, o padre Figueiredo trabalhou por seis anos (2000-2006) no seminário diocesano de Newark e na adjacente Universidade Seton Hall, antes de retornar a Roma para ser membro do extinto Conselho Pontifício "Cor Unum". (2006-2011).
Quando terminou seu trabalho no Vaticano, onde recebeu o título de "Monsenhor", Figueiredo foi contratado para dirigir o Instituto de Educação Teológica Contínua para sacerdotes em período sabático no Pontifício Colégio Norte Americano (NAC) em Roma.
Ele deixou essa posição em 2014, mas permaneceu no NAC como diretor espiritual adjunto dos seminaristas.
Parece que sua associação com a NAC parou subitamente em algum momento no verão de 2016.
Apesar de estar listado no catálogo oficial de 2016-2017 da universidade como continuando na posição, Mons. Figueiredo não estava mais no NAC no começo daquele ano acadêmico.
É neste ponto que o currículo do Monsenhor se torna obscuro.
Várias pessoas, todos colegas ou associados com os quais ele esteve envolvido em várias atividades ministeriais e de trabalho durante seu tempo aqui em Roma, notaram a determinação de Figueiredo em encontrar um emprego permanente na Cidade Eterna.
Mas nada se materializou.
"Ele parecia estar na carreira e, de repente, estava sem emprego", disse um deles.
Figueiredo foi à China todos os anos na última década para dar retiros aos bispos. Ele diz que as nomeações anuais começaram em 2008, quando ele ainda estava trabalhando em "Cor Unum" e foi para o sul da China em uma missão de alívio do terremoto em nome da Santa Sé.
"Cor Unum" foi oficialmente suprimido em janeiro de 2017, mas já havia sido mesclado alguns meses antes no que é hoje o Dicastério para o Desenvolvimento Humano Integral.
Em palestras regulares do passado, especialmente nos Estados Unidos, Mons. Figueiredo foi por vezes descrito como um consultor permanente da seção do Dicastério para Migrantes e Refugiados.
Mas, na verdade, sua relação com o escritório durou apenas três meses, cerca de dois anos atrás.
"Monsenhor Anthony Figueiredo trabalhou com a nova seção de Migrantes e Refugiados de aproximadamente meados de fevereiro até meados de maio de 2017, e desde então não teve nenhum relacionamento com a seção. Ele não era um consultor permanente, mas um funcionário temporário", confirmou o padre Michael Czerny SJ, sub-secretário do escritório.
Figueiredo também foi um "contribuinte especial" para a Eternal Word Television Network (EWTN), após sua passagem pelo Vaticano. Ele também serviu como uma espécie de capelão da EWTN, celebrando a missa com a equipe toda sexta-feira de manhã na Basílica de São Pedro.
Mas a rede conservadora parece ter cortado os laços de trabalho com ele depois de sua prisão por dirigir bêbado.
Mais recentemente, o padre de Newark escreveu para o jornal britânico Catholic Universe, que o descreve como seu correspondente sênior do Vaticano.
La Croix International enviou um e-mail para Mons. Figueiredo em 29 de maio solicitando esclarecimentos sobre seu status canônico, atual atribuição ministerial e se ele ainda está incardinado na Arquidiocese de Newark. Até esta publicação ele não respondeu.
E a arquidiocese também não emitiu declarações públicas sobre ele ou seu status atual. Apenas publicou o Catholic News Service relatando seu novo esforço de denúncia.
Então, por enquanto, há tantas – e talvez até mais – questões relativas a Anthony Figueiredo quanto à figura do padre, agora em desgraça, que o ordenou há 25 anos.
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Outro denunciante entre o clero. O que realmente está por trás do “Relatório Figueiredo” e quem é o autor? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU