13 Março 2019
“A economia dos cuidados abre todas as portas que a ortodoxia econômica gostaria de manter fechadas: desde ‘o que é produzir riqueza’ até que sentido tem ‘a gestão do tempo’ ao longo da vida. Colocar no centro esses debates é a maior contribuição que o feminismo está trazendo à economia, escreve o economista Ignacio Muro, especialista em modelos produtivos e em transições digitais, em artigo publicado por Economistas Frente a la Crisis, 08-03-2019. A tradução é do Cepat.
Voltar a falar da vida que queremos, da sociedade que queremos, é falar do tempo humano como referência básica da vida e base de um novo Contrato Social.
O momento atual reivindica uma profunda reordenação das hierarquias entre os espaços que identificamos com a produção de bens e serviços – a única reconhecida pela economia – e a reprodução social, ou seja, as atividades conectadas à sustentabilidade e reprodução da sociedade: ter e criar filhos, formar os jovens, cuidar dos avós, atender os doentes e manter a organização de lares e comunidades.
Essa visão nos obriga a dar conta de uma bateria de soluções à denominada “crise dos cuidados”: um conjunto muito diverso de conflitos e demandas que vão desde a divisão das tarefas do lar à licença-paternidade, da diminuição da diferença salarial às rendas básicas, dos despejos à segurança alimentar...
Todas elas questões situadas nos espaços da reprodução social, tão centrais para a atual conjuntura, como as lutas de classes no âmbito da produção no capitalismo tradicional.
Esta situação tem suas raízes na dinâmica estrutural do capitalismo financeiro, que obtém sua rentabilidade de qualquer espaço. Não só extraindo mais-valia das classes populares tradicionais (do velho proletariado, do autônomo, das classes médias profissionais, das pequenas e médias empresas nacionais), como também de qualquer empresa, administração ou família endividada, de qualquer recurso público estatal, regional ou local (aposentadorias, desemprego, dependência) e de qualquer estrutura social fragilizada.
A economia dos cuidados abre todas as portas que a ortodoxia econômica gostaria de manter fechadas: desde “o que é produzir riqueza” até que sentido tem “a gestão do tempo” ao longo da vida. Colocar no centro esses debates é a maior contribuição que o feminismo está trazendo à economia.
Obriga a recuperar o foco sobre a diminuição, racionalização e flexibilização dos tempos produtivos (redução da jornada de trabalho, trabalhos de tempo parcial voluntário e jornadas flexíveis, licença-paternidade e bolsas de conciliação familiar, reordenação horária, teletrabalho e direito à desconexão). Não é concebível que as potencialidades de produtividade trazidas pelas mudanças tecnológicas não redundem, como sempre ocorreu na história, em uma diminuição e racionalização do tempo de trabalho.
Obriga a reconsiderar e a tornar tangível o valor dos tempos considerados “não produtivos”: os dedicados a atender necessidades familiares básicas (infância e velhice, doença, incapacidade) e as outras atividades domésticas de apoio (higiene, limpeza, ordem, companhia). Implica denunciar a máxima expressão da contradição entre valor e preço: as coisas mais importantes são ignoradas e invisibilizadas porque acontecem “no lar” e não tem repercussões mercantis; e o que tem preço, ainda que seja ilegal e oculto como a prostituição ou o tráfico de drogas, atividades que foram incluídas de repente no PIB em 2010, é reconhecido como valor.
Obriga a colocar o foco em como reconstruir o espaço vital coletivo, seja urbano ou rural, que diminua os tempos mortos (deslocamentos, abastecimentos, manutenção, limpeza) e maximize os tempos vivos compartilhados (formação, família, descanso, ócio). De forma muito especial, confronta-nos com o custo crescente da moradia símbolo da contradição geográfica fundamental que provoca a centralização do capital imobiliário no coração das grandes cidades e os maiores deslocamentos diários dos trabalhadores, com custos crescentes – em tempo e dinheiro –, para lugares marginais ou periféricos.
O último capitalismo tende a exprimir, cada vez mais, um conjunto de capacidades sociais chaves para a vida. E faz isso de duas maneiras: como norma, socializando o encargo e transferindo às mulheres das famílias um esforço excessivo crescente e invisível. Mas também quando dessas atividades sociais surgem perspectivas de lucro, privatizando sua gestão, externalizando serviços e contratando filiais de grandes corporações.
Sirva como paradigma a CLECE, uma empresa multisserviços, filial do Grupo ACS, que administra a Residência da Fundação Rainha Sofia Alzheimer, de titularidade pública, um lugar denunciado porque faltam fraldas ou lençóis para trocar os anciãos, fazendo-lhes passar dias sobre sua própria urina, com cuidadoras cobrando 600 euros ao mês, enquanto declara milhões em lucros.
Há espaços em que a lógica do mercado deveria ser vetada. Faz sentido melhorar a oferta de serviços de abastecimento, manutenção e limpeza do lar, local onde a economia digital está se destacando por suas maiores vantagens. Contudo, nunca no que se refere aos elementos centrais da convivência, como são os cuidados.
Uma passagem pelos dados comparados de diferentes países confirma que as carências e desequilíbrios dos serviços públicos desembocam em desequilíbrios de gênero.
As horas diárias que as famílias dedicam às tarefas do lar, aquelas que não são cobertas por serviços profissionais remunerados, são menores e mais divididas nos países nórdicos europeus, com bons serviços públicos (Suécia, Noruega) e maiores e mais feminizadas nos países mais dependentes do mercado (Itália) ou com culturas mais patriarcais (Japão, México, Turquia, Índia).
Obviamente, as medidas não refletem as diferenças de classe dentro de um mesmo Estado. Em camadas profissionais médias, a diminuição do tempo ocupado pelas mulheres em tarefas do lar, nem sempre significa que os homens façam mais, mas, ao contrário, que terceirizam as tarefas domésticas, contratando outras mulheres normalmente migrantes.
É nesse ambiente que a noção de “feminismo liberal” ganha sentido, pois significa substituir a desigualdade de gênero entre homens e mulheres por uma desigualdade de classe. O que é criar riqueza? O PIB não se limita a quantificar a produção registrada pelo mercado. A contabilidade nacional também inclui no PIB os bens e serviços de não-mercado, que são aqueles que, como a saúde ou os cuidados, são proporcionados aos lares individuais, de forma gratuita pelo Estado ou a preços economicamente não significativos, por instituições sem fins lucrativos.
Quando esses bens são sustentados pelas famílias, são invisíveis e não reconhecidos. Só quando as lutas sociais obrigam a assumi-los como novos bens públicos, aflora de repente essa riqueza oculta, expressão do conceito de valor social que a sociedade exige em cada momento.
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O feminismo e os cuidados oxigenam a economia. Artigo de Ignacio Muro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU