13 Março 2019
A formação da opinião pública se transformou numa grande indústria. Em “Chomsky & Cia”, documentário de Daniel Mermet e Olivier Azam, temos uma excelente sistematização de Noam Chomsky. Enfrentamos o oligopólio mundial do império de Murdoch, aqui a nossa Globo, até a surrealista TV Record, e evidentemente a indústria dos fake news, que hoje conta com a possibilidade técnica de se falsificar vídeos e falas, e de atingir, por meio de algoritmos, qualquer pessoa em qualquer parte, a começar pelo celular que temos no bolso. Tudo isso gerou um outro universo de informação. E não podemos esquecer a rede mundial de think tanks, com financiamentos nababescos, que geram a matéria prima da desinformação, da falsificação da história, e das campanhas mundiais sobre como devemos pensar. Hoje, temos de enfrentar uma impressionante indústria com capacidade de nos fazer pensar qualquer bobagem, e nos fazer acreditar que pessoas com “bom senso” pensam como nós. O documentário Driblando a Democracia, inclusive, escancara como o próprio sistema político foi apropriado.
O texto é de Ladislau Dowbor, economista, doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia, professor da PUC-SP e da Umesp, publicado em seu Blog, 19-02-2019.
É legítimo não aceitarmos que tantas pessoas sejam transformadas em zumbis, repetindo o que aparece nesses diversos instrumentos de manipulação. O que me interessa aqui é dar, através do testemunho de como eu organizo a minha informação, indicações de excelentes fontes de análises, internacionais e nacionais, que apresentam não só boa informação, mas informação com facilidade de verificação. Ou seja, podemos, de forma rápida, gratuita e bem organizada, saber o que realmente está acontecendo pelo mundo e em particular no nosso quintal. Isso envolve repensar as nossas fontes, mas também as formas de organização e de interação. O mundo do conhecimento mudou.
Eu, por desgraça e provavelmente por idade, acordo às 6:20h da manhã. No silêncio e tranquilidade da hora, e na ausência de perturbações comerciais, clico no “G” que está no meio do meu celular ou do tablet, e vejo o que acontece no mundo por meio do The Guardian. Trata-se seguramente hoje da melhor fonte de informação internacional, inclusive com excelentes artigos sobre o Brasil. Informação muito confiável, com bom sistema de correção de erros, porque herdou uma cultura de decência e de diversidade. Não estão vendendo nada a ninguém. Eles dependem apenas, como a Wikipédia, das contribuições dos seus leitores. E se você não lê inglês, ao abrir o Guardian, aparece a opção de ler a tradução em português, e hoje, com análise semântica incorporada, as traduções já fazem sentido.
Ver o que acontece no resto do mundo ajuda imensamente, porque não somos tão particularmente originais, tranquilizem-se, o caos está se instalando no planeta de maneira bastante repartida. Mas, a particularidade de ler um jornal online é que se você se interessou por um artigo e o abriu, e quer aprofundar o tema, o software abre automaticamente chamadas para vários artigos anteriores sobre o mesmo assunto. Ou seja, é você que aprofunda a análise do tema, podendo inclusive resgatar a história de um fenômeno particular. As fontes de cada informação aparecem marcadas, é só clicar para ter a pesquisa ou livro de onde a informação foi tirada. O artigo sobre o futuro do emprego, por exemplo, apresenta as principais tendências, mas apresenta também o link para o estudo completo da Organização Internacional do Trabalho. Na leitura online assim organizada, você resgata a compreensão da dinâmica e pode checar as fontes, em vez de apenas de se indignar ou se alegrar com a “última notícia”. Não é só a origem da carne do supermercado que pode ser rastreada.
Ao sentar para trabalhar, posso varrer informações mais significativas simplesmente porque solicitei que me mandem como mailing: fontes como Carta Maior, IHU, GGN, Outras Palavras, Brasil 247, The Intercept, Agência Pública, Fundação Perseu Abramo, Diálogos do Sul e outras nos apresentam informações, análises, ou estudos aprofundados sobre os mais diversos temas, de forma extremamente fácil de acessar.
Acho El País também muito útil, em português. Todas são gratuitas. Le Monde Diplomatique Brasil, mensal, pode ser assinado para ter a íntegra da edição que está nas bancas, mas o conjunto do acervo, anos de análises aprofundadas sobre grandes tendências de mudança no Brasil e no mundo, constituem inclusive material de grande valor, por exemplo, para que professores recomendem pesquisas aos seus alunos. Os alunos adoram fontes gratuitas e disponíveis online.
Como as informações estão disponíveis na internet, não precisamos mais de gigantes comandando redes de repórteres que “formatam” o que devemos pensar. Grupos menores, com pessoas de elevado nível de conhecimento específico, passam a filtrar e a disponibilizar informação de maneira organizada. Eu recomendo que vocês se inscrevam para receber o material desses veículos. É uma garantia em termos de qualidade da informação.
Além do jornalismo, muitos trazem excelente conteúdo analítico. Eu, como economista, publico análises econômicas; médicos escrevem sobre problemas de saúde e assim por diante: não é um repórter que conversou com um médico, e sim o médico que escreve e assina. Com isso, a deformação gerada por intermediários se reduz drasticamente. Por que será que aparecem tão pouco na mídia comercial os escândalos da indústria farmacêutica ou os da agiotagem dos bancos? A resposta é simples: neste tipo de mídia, o objetivo é comercial. Quem paga a publicidade é poupado, inclusive, no plano político.
O que nos leva à questão de como sobrevive esta nova mídia. O Guardian ou o International Consortium of Investigative Journalists (ICIJ) no plano internacional, e os diversos grupos menores nacionais, aqui mencionados, dependem essencialmente das contribuições de seus próprios leitores. Eu reservo uma pequena verba mensal, espécie de imposto direto e direcionado, contribuindo ora para um, ora para outro, e considero que é dinheiro muito bem investido: pequenas contribuições de muitas pessoas resolvem o problema, tanto porque os custos dessa mídia são muito pequenos, como porque todas trabalham com open access, acesso aberto, permitindo que as mais diversas matérias sejam repassadas e republicadas em várias mídias.
Eu, por exemplo, como acadêmico e pesquisador, organizo o material científico e o disponibilizo online, gratuitamente, no blog. Muitos grupos de mídia não comercial “pescam” o material que publico no blog, fazendo com que este conhecimento circule entre seus diversos públicos. O universo assim gerado, na linha do Creative Commons, bens comuns criativos, está explodindo no planeta. Entre produtores e reprodutores, vivemos com pouco dinheiro e muita cultura e informação.
Com a quantidade de informações que recebemos, gerou-se uma tensão entre tanta coisa interessante e de qualidade e a nossa escassa capacidade de aproveitamento. Saber navegar se tornou essencial. É muito mais importante do que simplesmente encher a cabeça de informação. Eu tenho uma forma simples de “recepção” organizada do que leio. Ou seja, nesta era de imensa quantidade de informação disponível, além de aprender a selecionar o que se lê, temos de aprender a tornar essa informação disponível para nós mesmos. O ponto de partida é que as novas mídias nos permitem não só ler o que aparece a cada dia, semana ou mês, como também fazer pesquisa organizada, com palavras-chave, nome do autor, instituição de pesquisa ou o que seja.
Eu também preciso ter facilmente acessível o conteúdo que já li e me interessa. Para isso, dentro do meu computador, eu mantenho uma pasta que chamo “Artigos Recebidos”, onde salvo os artigos mais importantes, e que deverei provavelmente utilizar. Cada artigo é gravado com ano e nome: antes de tudo, eu identifico o ano, permitindo que o computador agrupe os textos pelo ano (2019, 2018, 2017 etc.), depois uso uma palavra chave do tema (desemprego, juros etc.) e outra da fonte que o publicou, por exemplo, “19 desemprego Brasil Guardian”. Com isso, os artigos mais antigos se agrupam por ano e vão “desaparecendo” no fundo da pasta, mas se precisar, tenho como encontrá-los facilmente. Dessa forma, eu que leio muito e trabalho com inúmeras fontes, posso agrupar leituras pelo tema, revê-las e usá-las para o que for necessário.
Tenho também um outro arquivo no computador, uma pasta chamada “Citações”, onde coloco, num simples arquivo Word, e na mesma página, qualquer tabela ou informação/citação que me pareçam excepcionalmente úteis, uma declaração ou conclusão importante de uma personalidade ou de uma instituição e assim por diante. De certa forma, esse arquivo é uma caixa de ferramentas que tenho. Por exemplo, achei muito bom o trecho de um artigo no New York Times, sobre os bilionários, que ficou assim no meu arquivo:
NYTimes – Billionaires? – Abolish Billionaires – Farhad Manjoo – NYT 6feb. 2019: “A billion dollars is wildly more than anyone needs, even accounting for life’s most excessive lavishes. It’s far more than anyone might reasonably claim to deserve, however much he believes he has contributed to society. At some level of extreme wealth, money inevitably corrupts. On the left and the right, it buys political power, it silences dissent, it serves primarily to perpetuate ever-greater wealth, often unrelated to any reciprocal social good.”
Trechos assim se enfileiram, os mais recentes no alto da página (alimento por cima), o que me gera uma excelente fonte de citações, além de me permitir, pelo link, rever o artigo completo na fonte se for necessário.
E tenho, evidentemente, o meu blog, o dowbor.org, que constitui a minha biblioteca pessoal online, com milhares de itens, artigos, livros, resenhas, documentários, receitas de pão ou o que for que faça parte do meu universo de interesses. Hoje, após 20 anos, tenho uma memória organizada. Não preciso mais me irritar por não lembrar onde está a revista que eu precisaria para uma consulta. No começo, usei meu blog de modo privado e quando ele se tornou mais recheado, eu o abri para consulta. Hoje, ele é uma fonte aberta e gratuita de consulta científica. Sou, como hoje está na moda qualificar, um prosumidor.
Milhares de pessoas utilizam meu blog não só para ler e citar os meus estudos, mas também para acessar estudos de inúmeras pessoas que eu publico. Ou seja, na linha do mencionado Creative Commons, passei a fazer parte de uma rede mundial de pesquisadores que interagem, consultam os materiais uns dos outros, e geram um ambiente interativo e colaborativo de construção de conhecimentos científico. O custo é ridículo, uso a tecnologia wordpress, gratuita. É como ter uma grande estante em casa, só que é muito fácil encontrar onde está cada item, é só pesquisar por alguma palavra relacionada com o que procuro. Quer fazer a sua própria biblioteca online? Em Vale a pena um professor criar o seu blog, eu explico o passo a passo. Não queria deixar a impressão de que sou um obcecado do mundo virtual, a informática não substitui o papel, que é igualmente precioso, mas articular a permanência e o “tato” do papel com a navegação informática, aumenta radicalmente o aproveitamento de ambos.
Estou dando o exemplo do meu blog, que funciona há mais de 20 anos, e tem dezenas de milhares de pessoas que acompanham. Mas muita gente organiza excelente material em blogs abertos, como Roosevelt Institute, Oxfam, ICLEI, Greenpeace, Tax Justice Network, Amnesty International, Real World Economics, Piketty.blog.lemonde.fr e inúmeros outros aqui no Brasil. Aqui, a consulta é especializada, e depende do interesse específico do que você procura. Mas o essencial é pensar que as fontes para aprofundar o conhecimento ou pesquisa sobre um tema deve levar em conta não só os livros escritos, a chamada bibliografia, mas o fato que muitas instituições pelo mundo afora já dispõem de equipes de pesquisa relevantes, e isso abre acesso para informação extremamente focada e atualizada. É uma forma de não reinventar a roda, e de se colocar imediatamente na crista da onda do que está sendo pesquisado em qualquer parte do mundo.
Cada vez menos gente aguarda os artigos científicos com double peer review, em revistas indexadas, que geram lucros da ordem de 40% para os gigantes como Elsevier e pontuação para as instituições acadêmicas, mas que estão sendo cada vez mais postos de lado do mainstream da pesquisa internacional. Um Stiglitz, por exemplo, do Roosevelt Institute, como tantos outros, publicam online sob forma de acesso aberto, e quem acha que o estudo é válido ou não é quem lê. O tão importante relatório sobre a desigualdade no mundo, o WIR, mostra a nova forma de organização de ciência colaborativa: “As séries (estatísticas) apresentadas no presente relatório estão baseadas no esforço coletivo de mais de uma centena de pesquisadores, cobrindo todos os continentes, que contribuem para o banco de dados WID.world. Todos os dados estão disponíveis no wir2018.wid.world e podem ser reproduzidos, permitindo que qualquer pessoas faça a sua própria análise e crie a sua própria visão sobre a desigualdade.”
O tão rigoroso New Scientist britânico chama a indústria parasita de “o escândalo da publicação acadêmica” (the scandal of scholarship) e recomenda o documentário Paywall: the business of scholarship, sobre como se expandiu o pedágio privado sobre a as publicações científicas: . A alternativa geral é acessar Sci-Hub, com acesso aberto a artigos científicos, para escapar ao que o New Scientist chama de “modelo de pedágio” (toll-access model). Hoje só nos EUA mais de 15000 cientistas boicotam as revistas indexadas e publicam em arXiv, Plos e semelhantes sistemas abertos. A palavra de ordem aqui é Open Access, ou Creative Commons.
Bem, a vida não é só trabalho. Eu gosto de assistir à TV e de noite assisto bastante, mas como tenho problemas cardíacos, evito sempre o Jornal Nacional e semelhantes injeções de veneno. E é uma luta porque tudo é feito para dificultar (leia-se cobrar) o nosso acesso a excelentes programas de TV. A Net e outras empresas cobram mais caro, não porque tenham mais custos, mas justamente para manter o grosso da população fora da TV por assinatura, com a cabeça atolada nas bobagens e na manipulação política. O fato é que temos excelentes programas diários nos canais Curta, Arte1, Films&Arts, e também Cultura e Futura.
No plano internacional, temos excelentes informações e programas pela TV5Monde, BBC e CNN. O BBC Earth é maravilhoso, mas por alguma razão, a Net e outros simplesmente tiraram o canal do ar. O canal francês, TV5Monde, apresenta diariamente um jornalismo investigativo de primeira qualidade, tipicamente uma hora (das 19h às 20h), trazendo temas como a desinformação alimentar, os falsos medicamentos, os sistemas de aposentadoria e semelhantes, em uma rede que articula as TVs da França e as de língua francesa da Suíça, da Bélgica e do Canadá. E tudo legendado. Assistir a um programa desses me deixa de boca aberta ao constatar o imenso potencial de uma TV inteligente e não controlada por grupos econômicos que empurram ideologia e consumismo. E para uma visão claramente mais progressista, temos a TVT, TV dos Trabalhadores, com excelentes entrevistas, abrindo um leque de análises em profundidade, que é o caso também de Tutameia. Aliás, no computador dá para acessar excelentes programas no Aljazeera live.
Queria salientar que eu mencionei aqui um certo número de fontes, que são as que eu mais utilizo, e bastante centradas na problemática do desenvolvimento econômico e social. Há tantas outras, e cada um pode organizar de certa forma o seu leque de fontes. De qualquer maneira, como é óbvio, estamos na era da informação, da revolução digital, do tudo aqui e agora, da vertigem de fragmentos desconectados de conhecimento que giram na nuvem e na nossa cabeça. Selecionar as fontes, apoiar a mídia livre, receber de maneira organizada e apoiar-se numa memória virtual personalizada, o seu próprio blog, constitui hoje uma necessidade premente. O mundo mudou e precisamos de novas ferramentas. Muito além do fake news e dos bate-boca nas mídias sociais, surgem imensas oportunidades para uma ciência e conhecimentos democratizados. A mesma tecnologia que gera por vezes o caos informacional pode ter o seu sentido invertido, e servir para construir uma sociedade realmente informada.
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Como eu me informo. Artigo de Ladislau Dowbor - Instituto Humanitas Unisinos - IHU