Por: João Vitor Santos | 10 Setembro 2016
Para o professor da PUC–SP Ladislau Dowbor, é possível concluir que o atual sistema democrático não é mais “puro sangue”. É algo que surge a partir da solidificação do capital dentro desse sistema, uma espécie de “capitalismo democrático”. Não bastando isso, os poucos suspiros de democracia que se tem ainda são sufocados por uma espécie de cercamento. Sem ter para onde crescer ou ir, sucumbir passa a ser a única ação. É como se a lógica das corporações que visam encher os bolsos dos donos através da exploração transbordasse para as esferas políticas. “A conta é simples: elegemos os políticos, mas segundo regras das corporações. Nas corporações mandam pessoas que não são eleitas, mas têm dinheiro”, conclui, ao lembrar do “patrocínio” das corporações a determinadas campanhas eleitorais.
Dowbor analisa como esses tentáculos financeiristas abraçam as instâncias em que há detentores de cargos políticos. Destaca, por exemplo, que a apropriação do sistema judiciário acontece em escala planetária. “Nos EUA, há numerosos estudos em particular ligados à análise dos impactos dos acordos internacionais sendo negociados”, recorda. “A realidade é que a economia é hoje dominada pelos sistemas financeiros, e estes agem em escala planetária, enquanto os sistemas jurídicos são nacionais. O resultado é que se aplica a justiça que interessa a grandes grupos”, conclui.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, ainda demonstra como se dá o ataque das empreiteiras multinacionais brasileiras nesse contexto. “O desajuste entre o espaço de interesses e poder econômicos por um lado, que agem em nível global, e o espaço de regulação jurídica que é nacional torna qualquer controle efetivo precário”, aponta. “O poder político de representação democrática é radicalmente diminuído quando qualquer decisão nacional pode ser travada ou deturpada pelas dinâmicas globais”.
Ladislau Dowbor | Foto: Dowbor.org
Ladislau Dowbor é doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia, professor titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP e da Universidade Metodista de São Paulo – Umesp. Além disso, é consultor de diversas agências das Nações Unidas.
Nos dias 13 e 14 de setembro realiza-se o IV Colóquio Internacional IHU. Políticas Públicas, Financeirização e Crise Sistêmica. A entrevista a seguir, publicada originalmente na revista IHU On-Line, no. 492, é um importante subsídio para a discussão da próxima semana.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - De que forma os parâmetros oriundos das lógicas dos processos de financeirização atravessam a civilização nos tempos atuais?
Ladislau Dowbor - O elemento básico é que hoje rende mais fazer aplicações financeiras do que investir na produção. Isto é geral no planeta. Se pegarmos os 28 gigantes financeiros mundiais, cada um gere um capital de 1,8 trilhão de dólares em média. Só para lembrar, o Brasil, 7ª potência econômica mundial, tem um Produto Interno Bruto - PIB de 1,5 trilhão. O deslocamento de poder é radical. Piketty [1] mostrou como isto paralisa os países mais ricos; Gerald Epstein [2] e Stiglitz [3] do Roosevelt Institute [4] mostram o sistema nos Estados Unidos; os trabalhos que temos feito com o Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos - Dieese, Sindicato dos Bancários e outros, bem como as análises de Amir Khair [5], mostram como isto se dá no Brasil.
IHU On-Line - Que relações são possíveis estabelecer entre crise civilizatória e crise econômica?
Ladislau Dowbor - Para se ter uma referência, o PIB mundial em 2012 é da ordem de 75 trilhões de dólares. Os 28 grandes bancos manejam no conjunto cerca de 50 trilhões de dólares, e criaram um mecanismo de extração de mais-valia financeira diferente do que se dava no capitalismo produtivo, o proprietário da fábrica que pagava mal aos seus trabalhadores e extraía uma mais-valia empresarial. Este sistema continua. Stiglitz mostra que, nas últimas décadas, a economia americana teve um avanço de 161% na produtividade do trabalho, mas apenas 19% foram para os trabalhadores.
O novo sistema, de mais-valia financeira, em que à exploração empresarial se acrescenta a exploração via crediários, juros sobre pessoa física e jurídica e juros sobre a dívida pública, permite uma apropriação em escala muito mais ampla, menos transparente nos seus mecanismos, e leva a este absurdo de 62 bilionários que detêm mais riqueza do que a metade mais pobre da população mundial. É um desastre em termos sociais, era do lucro improdutivo.
O mesmo desvio dos recursos gera o desastre ambiental planetário. Uma Samarco [6] sabe que deveria investir nas infraestruturas da mineração e reduzir os riscos, mas quem manda na Samarco é o Bradesco e a Billiton. Ambos exigem retorno financeiro, e entre a pressão dos grupos financeiros que detêm o capital e o engenheiro que diz que a barragem vai romper, a opção é óbvia. Mas isto vale para a Volkswagen, que monta uma fraude ambiental sistêmica [7], a Chevron-Texaco, que gera desastres ambientais no Equador, a Shell na Nigéria, o gigante GSK, que frauda medicamentos (estão pagando 3 bilhões de dólares de multa só nos EUA), e tantos outros.
Para completar o tripé da crise civilizatória, os recursos financeiros, que deveriam financiar a inclusão produtiva para reduzir a miséria e a desigualdade, bem como financiar a reconversão tecnológica (em particular energética) para reduzir o ritmo de destruição do planeta, não só não são aplicados produtivamente, como sequer pagam impostos, ao migrar para paraísos fiscais. A Apple paga na Europa 50 dólares de impostos para cada milhão de dólares de lucro, ou seja, 0,005% de impostos. Eu, professor da PUC, vejo o meu imposto descontado na folha. É mais do que 0,005%. Nos paraísos fiscais, estima-se um total de 21 a 32 trilhões de dólares, para um PIB mundial de 73 trilhões (2012).
IHU On-Line - Em que medida é possível afirmar que a globalização financeira compromete o próprio capitalismo?
Ladislau Dowbor - A crise é sistêmica quando gera uma engrenagem emperrada simultaneamente social, ambiental e econômica. Estudamos isto com Ignacy Sachs [8] e Carlos Lopes no texto Crises e oportunidades em tempos de mudança [9]. Stiglitz apresenta a New Agenda, porque a atual não funciona. Gar Alperovitz [10], Jeffrey Sachs [11] e outros apresentam The Next System, porque o sistema atual não faz sentido, Lester Brown [12] apresenta o Plano B 4.0 porque obviamente o plano A já era. Estas visões sistêmicas são essenciais para entendermos que os desafios críticos não se dão apenas no Brasil, ainda que aqui a tropa de elite econômica recorra ao golpe para salvar os privilégios de maneira mais truculenta.
Compreender o argumento central amplamente apresentado por Thomas Piketty é importante: quando fazer aplicações financeiras rende mais do que produzir, os recursos das nossas poupanças, que é o que os grandes grupos utilizam, em vez de permitir desenvolvimento, geram renta, ou seja, privilegiam rentistas e não investidores. Utilizamos aqui o conceito de renta, que é lucro sobre atividades não produtivas, porque ajuda a diferenciar as formas como as pessoas enriquecem.
Em inglês é diferente income, renda que vem do trabalho, e rent, que é renda que resulta de aplicações financeiras, sem o esforço produtivo correspondente, e que gera o que chamamos de rentismo. Em francês é igualmente explícito, revenu é renda, rente é renta. É tempo de completarmos um pouco o nosso vocabulário. A mesma confusão reina em torno do conceito de investimento (geração de atividades produtivas) e aplicação financeira (compra de papéis que rendem mas não acrescentam nenhum produto à economia). Os banqueiros adoram dizer que estamos “investindo”.
IHU On-Line - Gostaria que o senhor explicasse seu conceito de “intermediários financeiros”. E qual o potencial desses intermediários no travamento da economia? Gostaria, ainda, que explicasse como se dá esse travamento no cenário nacional.
Ladislau Dowbor - A economia funciona com quatro motores: as exportações, a demanda das famílias, o investimento e produção empresarial, e o investimento público. As exportações estão fragilizadas pela crise internacional e a queda dos preços das commodities, dinâmica que não depende de nós. A demanda das famílias, principal motor, foi estrangulada pelos juros: 105% nos crediários para “artigos do lar” (13% ao ano na Europa), 103% de juros bancários para pessoa física (3,5% ao ano na Europa), 12% no crédito imobiliário (2,27% no Canadá): o acúmulo de juros levou a que as famílias gastassem 19,3% da sua renda pagando dívida em março de 2005, e 46,5% em março de 2015: quando quase a metade dos ganhos vai para pagar dívidas, não se expande o consumo.
O terceiro motor, do mundo empresarial, é travado por três fatores: como a demanda das famílias foi estrangulada, não há para quem produzir. Os juros para pessoa jurídica sobre créditos que poderiam ajudar o empresário a atravessar a má fase são da ordem de 10 vezes maiores do que nos países desenvolvidos. E o capitalista tem a opção de aplicar o seu dinheiro na dívida pública, que rende 14,25%, risco zero, liquidez total, de mão no bolso: mesmo descontando a inflação, é excelente rendimento, mas não produtivo. Parou o terceiro motor.
O quarto motor é o investimento público. A carga tributária do Brasil não é particularmente elevada, 35% do PIB. Mas foi instituído, em 1997, o sistema de taxas de juros sobre a dívida pública (Selic) elevadas, na faixa de 25% a 30% durante a fase FHC, e hoje 14,25%, nível absolutamente inviável para que o Estado funcione. Nos EUA, esta taxa é de 0,5%, nos outros países quase sempre abaixo de 1% ao ano. Em termos práticos, o banco aplica as nossas poupanças em títulos do governo, que tira dos nossos impostos um montante que atingiu em 2015 a soma de 501 bilhões de dólares (quase 9% do PIB). Este meio trilhão de reais poderia servir para gerar infraestruturas e políticas sociais, dinamizando a economia.
Fechando a equação, não contentes de ganhar rios de dinheiro retirando recursos do circuito produtivo em vez de fomentá-lo, os diversos intermediários financeiros alimentam os paraísos fiscais para evitar pagar impostos. A Tax Justice Network dos EUA estima em 520 bilhões de dólares o que os afortunados do Brasil têm em paraísos fiscais, equivalentes a 30% do nosso PIB. Temos aí os dados do Panamá, de Luxemburgo, do HSBC em Genebra.
É este sistema que travou a economia do país, os quatro motores sofrem todos diretamente o impacto das finanças desreguladas [13].
IHU On-Line - Como compreender o cercamento que as corporações fazem à democracia? Como ele se dá e quais as consequências?
Ladislau Dowbor - As pesquisas hoje se dão em torno do conceito de captura do poder. Conhecemos os sistemas tradicionais de lobbies. Hoje se agigantaram, verdadeiras atividades empresariais em grande escala que geram assédio político e jurídico permanente. Mais importante é o financiamento das campanhas políticas pelas corporações, de uma inconstitucionalidade óbvia (Artigo 1º da Constituição, “Todo poder emana do povo...” e não “da corporação”), decretado ilegal pelo Supremo Tribunal Federal – STF, mas presente nos EUA desde 2010 (em nome da liberdade de expressão!). Mesmo eleito em base de procedimentos inconstitucionais, o presente Congresso se dá ao luxo de derrubar uma eleição presidencial.
A conta é simples: elegemos os políticos, mas segundo regras das corporações. Nas corporações mandam pessoas que não são eleitas, mas têm dinheiro. No sistema a legalidade é avaliada por juízes, que não são eleitos. O poder impressionante das quatro famílias da mídia, que inventaram de fazer política sem precisar de mandato, tampouco obedece a voto popular. Os sistemas de autoridade policial tampouco são submetidos a eleições ou a escrutínio popular. E o sistema jurídico está sendo apropriado por interesses corporativos em todo o planeta, e os juízes não são eleitos, podem até chantagear por salários. O que sobra da democracia? Interessante estudo de Wolfgang Streeck [14] sugere que estamos assistindo não ao fim do capitalismo, mas ao fim do capitalismo democrático [15].
IHU On-Line - Em que medida casos como da Operação Lava Jato ajudam a compreender a engrenagem dessa “colonização” dos megaempresários do capital em agentes políticos, nos poderes institucionais, nos setores públicos e privados?
Ladislau Dowbor - A apropriação corporativa do sistema jurídico é planetária. Nos EUA, a dinâmica foi particularmente estudada pela senadora Elizabeth Warren [16], mas há numerosos estudos em particular ligados à análise dos impactos dos acordos internacionais sendo negociados. Warren apresenta as suas principais conclusões, com nome das corporações, no seu sucinto relatório Rigged Justice [17]. A realidade é que a economia é hoje dominada pelos sistemas financeiros, e estes agem em escala planetária, enquanto os sistemas jurídicos são nacionais. O resultado é que se aplica a justiça que interessa a grandes grupos.
O ataque a empreiteiras multinacionais brasileiras e a reservas brasileiras de petróleo é perfeitamente compreensível neste contexto. O desajuste entre o espaço de interesses e poder econômicos por um lado, que agem em nível global, e o espaço de regulação jurídica que é nacional torna qualquer controle efetivo precário, como se vê na radical bandidagem em termos fiscais de grupos como Apple, Google, McDonald e tantos outros. O poder político de representação democrática é radicalmente diminuído quando qualquer decisão nacional pode ser travada ou deturpada pelas dinâmicas globais.
IHU On-Line - O governo petista, essencialmente nos últimos anos de Dilma Rousseff na presidência, compreendeu esse estado de crise? E como analisa os movimentos do governo de Michel Temer nesse cenário?
Ladislau Dowbor - Como vimos acima, o Brasil transferiu cerca de R$ 500 bilhões dos nossos impostos essencialmente para grupos financeiros durante o ano de 2015. Volume suficiente em si para entender o travamento econômico geral, pois estes recursos não foram aplicados de maneira produtiva, e frequentemente sequer pagam impostos. Este sistema de juros — e inclusive os juros sobre pessoa física e pessoa jurídica — estavam tornando a economia no seu conjunto inviável a partir de 2013/2014. O governo Dilma começou a reduzir os juros da dívida pública, que chegaram a um civilizado 7,25% (para uma inflação na faixa de 5%), e começou a reduzir os juros para pessoa física e jurídica, que permitem o consumo familiar e o investimento empresarial, por meio de alternativas no sistema público como a Caixa Econômica Federal e o Banco do Brasil.
Isto gerou uma revolta profunda dos bancos, e do conjunto dos que na economia ganham com papéis em vez de com produção. A partir deste momento, a guerra econômica foi declarada e um conjunto de oportunistas políticos viram nisto a oportunidade de casar interesses financeiros e interesses políticos. Gerou-se a quadrilha do golpe, com intermediários financeiros, o congresso eleito por dinheiro corporativo, a grande mídia e segmentos do judiciário. A Dilma no segundo mandato não teve um dia para governar. Boicote funciona.
Mas o que tem este poder usurpado a oferecer? Aumento impressionante dos salários do judiciário, evidentemente, para reforçar a coesão. Mas, sobretudo, a privatização do Pré-Sal, imenso interesse internacional. Aumento do déficit que disseram vir combater, para assegurar mais emendas parlamentares, o que reforça a coerência no baixo clero e prepara eleições municipais. O fechamento de alguns ministérios é ridículo, pois as funções não desaparecem ao se fechar um ministério. Mas no conjunto o essencial é reduzir as políticas sociais, travar o progresso da massa dos pobres do país, reconcentrar ainda mais a renda e a riqueza: é voltar atrás, liquidar os avanços permitidos pela Constituição de 1988. Reduzir o papel social do Estado e se apropriar dos sistemas de saúde e de educação representam um horizonte interessante para os grupos privados. Voltamos com isto à indústria da doença e indústria do diploma.
IHU On-Line - Quais os limites das políticas de inserção via consumo? Em que medida as políticas de liberação de crédito para consumo cedem à lógica da financeirização, mantendo as desigualdades?
Ladislau Dowbor - É importante entender que o crédito para o consumo é bom. Estamos num país de mais de 200 milhões de habitantes, o que permite que o desenvolvimento se concentre na expansão do consumo popular, argumento essencial nesta fase de marasmo do mercado externo de commodities. Em vez da política de austeridade proposta, que não deu certo em lugar algum, pois reduz o mercado interno, o que reduz investimentos e empregos, o que por sua vez reduz o volume de impostos e aumenta o déficit, temos de usar o crédito para fomentar o consumo e redinamizar a produção, emprego e atividade econômica em geral.
O problema não está no crédito, mas na usura que caracteriza o sistema financeiro nacional. Você pode entrar em qualquer agência da Banque Postale, na França, e sair com um crédito de 20 mil euros, sem tarifas nem penduricalhos, pagando 3,5% ao ano, para comprar um carro ou fazer a reforma na sua casa. O que travou o sistema no Brasil é que os grandes agentes do sistema financeiro nunca acham que ganham o suficiente. Quando um banco agrupa nossas poupanças, e as empresta com juros razoáveis para um empresário desenvolver uma atividade produtiva, isto gera produto, emprego, e lucro do empresário que servirá em parte para restituir o empréstimo. Isto é fomento. O que é praticado no Brasil é usura. É até impressionante Steinbruch [18], primeiro vice-presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo - Fiesp, escrever no jornal Folha de São Paulo que não é possível tocar uma economia com juros de 300% (sic).
IHU On-Line - A construção de uma alternativa econômica para o Brasil passa essencialmente pelo quê?
Ladislau Dowbor - Promover a redução gradual e sistemática dos juros para tomador final e sobre a dívida pública: o governo tem uma arma poderosa na mão, que são os bancos públicos, ou dominantemente públicos, que podem ser utilizados para reduzir as taxas de juros no cartel bancário em geral. E a redução da taxa Selic levaria gradualmente os empresários e rentistas que ganham dinheiro através dos nossos impostos a buscar a aplicação produtiva do dinheiro. Trata-se de um eixo essencial de mudança, e o fato de o governo ter tentado esta política em 2013/2014 não a invalida. O que invalidou a proposta foi o governo ter se assustado com as reações dos rentistas e recuado. Não vamos poder continuar com as taxas de juros aberrantes da nossa economia e a recompensa generalizada dos improdutivos.
É vital resgatar um mínimo de equilíbrio tributário. Não se trata de aumentar os impostos, mas de racionalizar a sua incidência e de fiscalizar o pagamento. Uma pesquisa do Instituto de Estudos Socioeconômicos - Inesc mostra que “a tributação sobre o patrimônio é quase irrelevante no Brasil, pois equivale a 1,31% do PIB, representando apenas 3,7% da arrecadação tributária de 2011. Em alguns países do capitalismo central, os impostos sobre o patrimônio representam mais de 10% da arrecadação tributária, como, por exemplo, Canadá (10%), Japão (10,3%), Coreia (11,8%), Grã‑Bretanha (11,9%) e EUA (12,15).” (Inesc, 2014, p.21).
Se acrescentarmos a baixa incidência do imposto sobre a renda, e o fato de os impostos indiretos representarem 56% da arrecadação, assim como o fato de os grandes devedores recorrerem de forma massiva à evasão fiscal, temos no conjunto uma situação que clama por mudanças. Segundo informações extraídas da Pesquisa de Orçamento Familiar - POF de 2008/2009 pelo Ipea, estima-se que 10% das famílias mais pobres do Brasil destinam 32% da renda disponível para o pagamento de tributos, enquanto 10% das famílias mais ricas gastam 21% da renda em tributos.” (Inesc, 2014, p.6). Taxar o capital financeiro improdutivo, em particular, constituiria um excelente estímulo aos que busquem investir e fomentar a economia.
Trata-se de ampliar, tanto em termos de escala como de capilaridade, o conjunto dos sistemas locais de financiamento, as chamadas finanças de proximidade. Voltando ao exemplo visto rapidamente acima, o sistema alemão de crédito, muito descentralizado e constituindo um poderoso vetor de dinamização da pequena e média empresa, é um ponto de referência interessante. “Na Alemanha, os grandes bancos de cobertura nacional constituem apenas cerca de 13% do sistema bancário. O sistema é muito dominantemente (overwhelmingly) de base local, apoiando pequenas e médias empresas que asseguram 80% dos empregos em qualquer economia” (Brown, p. 269).
O Brasil já tem 107 bancos comunitários de desenvolvimento e interessantes programas de microcrédito, mas é essencial compreender que o próprio sistema bancário e de intermediação financeira em geral, que hoje constitui um número limitado de gigantes econômicos, e se comporta como oligopólio, tem de passar a contribuir para a dinamização produtiva do país.
Centenas de bilhões de reais são aplicados pelos fundos de pensão. Estes fundos tanto podem buscar aplicações lucrativas em termos financeiros, por exemplo através de títulos da dívida pública, como poderiam contribuir para o fomento econômico ao investir na economia real. Que impacto têm estes fundos sobre a economia, de dreno ou de fomento, e quais são os montantes? Em 2015 são R$733 bilhões, 13% do PIB, dos quais 65% aplicados em renda fixa, e nestes 78% em títulos da dívida pública. Apenas 3% podem ser considerados como fomentando a economia real. O Conselho Monetário Nacional - CMN autoriza os fundos a aplicar até 100% dos recursos em títulos da dívida pública. Mudar estas regras poderia estimular os fundos a buscarem investir em atividades produtivas [19].
É essencial, portanto, entender que a intermediação financeira não é produtiva como atividade, pois é uma atividade-meio: a sua produtividade se dá de forma indireta, quando investe os recursos captados da economia para financiar atividades produtivas, estimulando a economia real, as chamadas atividades-fins. Ao agregar as nossas poupanças para fomentar a economia, cumpre um papel positivo. Se as drena para fins especulativos, fragilizando a demanda e o investimento, está sendo contraprodutivo, torna-se um atravessador. É o nosso caso.
Como são poucos e grandes os principais bancos, a cartelização torna-se natural, e a cooptação do Banco Central como órgão regulador fecha o círculo. A capacidade de gerar crises sistêmicas, na linha do too big to fail constatado nos EUA e na Europa em particular, adquiriu aqui feições diferentes, mas funções iguais, pela capacidade real de chantagem política.
Pela importância que adquiriu a intermediação financeira, é preciso dinamizar um conjunto de pesquisas sobre os fluxos financeiros internos e disponibilizá-las amplamente, de maneira a gerar uma transparência maior nesta área onde as pessoas simplesmente não se orientam. Para criar a força política capaz de reduzir o grau de cartelização, reintroduzindo mecanismos de mercado e transformando o sistema de intermediação financeira, é preciso ter uma população informada. Uma das coisas mais impressionantes para esta área vital para o desenvolvimento do país é o profundo silêncio não só da mídia, mas também da academia e dos institutos de pesquisa, sobre o processo escandaloso de deformação da economia pelo sistema financeiro. O fato de os grupos financeiros serem grandes anunciantes na mídia evidentemente não ajuda na transparência.
Notas:
[1] Thomas Piketty (1971): economista francês, concentra seus estudos no acúmulo e desigualdade de renda. É diretor de pesquisas da École des hautes études en sciences sociales (EHESS) e professor da Escola de Economia de Paris. Seu livro best-seller, O Capital no Século XXI (São Paulo: Intrínseca, 2014), enfatiza as questões do acúmulo de renda nos últimos 250 anos, e argumenta que o acúmulo de capital cresce mais rápido que a economia, o que gera desigualdade. A edição 449 da IHU On-Line, intitulada A desigualdade no século XXI. A desconstrução do mito da meritocracia, inspira-se na obra O Capital no Século XXI e foi publicada meses antes de a obra ser publicada traduzida no Brasil. A edição está disponível em http://bit.ly/2bwwtg8. O IHU realiza no segundo semestre de 2016 o “Ciclo de Estudos do Livro ‘O Capital no Século XXI’ - A Estrutura da Desigualdade”. (Nota da IHU On-Line)
[2] Gerald Epstein: bacharel em Ciência Política, é professor de Economia e codiretor do Instituto de Pesquisa de Economia Política da Universidade de Massachusetts. Possui Ph.D. em Economia e MPP em Política Pública, ambos pela Universidade de Princeton. (Nota da IHU On-Line)
[3] Joseph Eugene Stiglitz (1943): economista estadunidense, foi presidente do Conselho de Assessores Econômicos (Council of Economic Advisers) no governo do Presidente Bill Clinton (1995-1997), Vice-Presidente Sênior para Políticas de Desenvolvimento do Banco Mundial, onde se tornou o seu economista chefe. Recebeu, juntamente com A. Michael Spence e George A. Akerlof, o Prêmio de Ciências Econômicas em Memória de Alfred Nobel, também designado para o "Prêmio Nobel de Economia" em 2001 "por criar os fundamentos da teoria dos mercados com informações assimétricas". Stiglitz defende a nacionalização dos bancos americanos e é membro da Comissão Socialista Internacional de Questões Financeiras Globais. (Nota da IHU On-Line)
[4] Instituto Roosevelt: organização liberal norte-americana. De acordo com a organização, ela existe "para levar adiante o legado e os valores de Franklin e Eleanor Roosevelt através do desenvolvimento de ideias progressistas e uma forte liderança no serviço de restaurar a promessa de América de oportunidade para todos”. É sediada em New York. (Nota da IHU On-Line)
[5] Amir Khair: engenheiro e mestre em finanças públicas, foi secretário de Finanças da Prefeitura de São Paulo (1989/92). Atualmente é consultor na área fiscal, orçamentária e tributária. A IHU On-Line realizou diversas entrevistas com Khair, entre elas Um modelo de desenvolvimento baseado no consumo, publicada na revista IHU On-Line 392, de 14-05-2012. (Nota da IHU On-Line)
[6] Samarco: empresa da área de mineração responsável pela barragem de Fundão, localizada no subdistrito de Bento Rodrigues, a 35 km do centro do município brasileiro de Mariana, Minas Gerais. Na tarde de 5 de novembro de 2015, a barragem rompeu e transformou toda a localidade em um grande mar de lama e destruição. A seção Notícias do Dia, do sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, vem publicando materiais sobre o caso. Confira aqui. (Nota da IHU On-Line)
[7] O Instituto Humanitas Unisinos – IHU vem reproduzindo uma série de textos sobre o caso na seção Notícias do Dia, em seu sítio. Entre eles “Escândalo da Volkswagen: É hora da indústria alemã abandonar sua arrogância”. Leia mais aqui. (Nota da IHU On-Line)
[8] Ignacy Sachs (1927): eco-socioeconomista polonês, professor da Escola de Altos Estudos e Ciências Sociais (EHESS), em Paris, e codiretor do Centro de Estudos sobre o Brasil contemporâneo. Escreveu mais de 20 livros, dos quais estão publicados no Brasil Capitalismo de Estado e Subdesenvolvimento: Padrões do setor público em economia subdesenvolvida (Petrópolis: Vozes, 1969); Ecodesenvolvimento: crescer sem destruir (São Paulo: Vértice, 1986); Espaços, tempos e estratégias do desenvolvimento (São Paulo: Vértice, 1986): Desenvolvimento includente, sustentável e sustentado (Rio de Janeiro: Garamond/Sebrae, 2004). (Nota da IHU On-Line)
[9] O texto está disponível aqui. (Nota da IHU On-Line)
[10] Gar Alperovitz (1936): economista, político e historiador norte-americano. Foi professor de Economia Política na Universidade de Maryland, College Park Departamento de Governo e Política de 1999 a 2015. Também atuou como Diretor Legislativo na Câmara dos Representantes e do Senado dos Estados Unidos e como assistente especial do Departamento de Estado dos EUA. Alperovitz é um membro do conselho de diretores da New Economics Institute e um dos principais fundadores da Democracia Collaborative. (Nota da IHU On-Line)
[11] Jeffrey David Sachs (1954): economista norte-americano conhecido pelo seu trabalho como conselheiro econômico de diversos governos da América Latina, do Leste Europeu, da extinta União Soviética, da Ásia e de África. Atualmente, trabalha como professor na Universidade de Columbia. Propôs uma "terapia de choque" como solução para as crises econômicas que afetavam a Bolívia, a Polônia e a Rússia como parte do seu trabalho de aconselhamento. (Nota da IHU On-Line)
[12] Lester Russell Brown (1934): analista do ambiente que já escreveu vários livros relativos ao ambiente global. É o fundador e presidente do Earth Policy Institute, organização não governamental baseada em Washington, DC. Entre suas sobras de destaque, está Plano B 2.0: Resgatando um Planeta sob Stress e uma Civilização em Apuros. (Nota da IHU On-Line)
[13] Detalhes e fontes completas aqui. (Nota do entrevistado)
[14] Wolfgang Streeck (1946): é um dos mais conceituados sociólogos alemães da atualidade, diretor do Max Planck Institut de Colónia, e autor de uma vasta obra que cruza os domínios da sociologia e da economia. (Nota da IHU On-Line)
[15] Vejam mais aqui. (Nota do entrevistado)
[16] Elizabeth Ann Warren (1949): é uma política estadunidense, Senadora pelo Partido Democrata de Massachusetts. (Nota da IHU On-Line)
[17] Leia mais aqui. (Nota da IHU On-Line)
[18] Benjamin Steinbruch (1953): empresário brasileiro, formado em Administração pela Fundação Getulio Vargas. Filho de Mendel Steinbruch, que, ao lado de Jacks Rodrigues Rabinovich, foi fundador do Grupo Vicunha, maior grupo têxtil da América Latina. Além do Grupo Vicunha e CSN sua família também tem o controle do Banco Fibra. Atualmente sua fortuna está estimada em R$ 980 milhões. (Nota da IHU On-Line)
[19] Ver Resolução 3792 do CMN, art. 35, 24 de setembro de 2009. (Nota do entrevistado)
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O escandaloso processo de deformação da economia pelo sistema financeiro e o silêncio da mídia, da academia e dos institutos de pesquisa. Entrevista especial com Ladislau Dowbor - Instituto Humanitas Unisinos - IHU