10 Fevereiro 2019
“Construir poder popular exclusivamente de cima é se condenar ao fracasso, cedo ou tarde. E podemos facilmente nos ver no espelho do Brasil e Venezuela”, analisa Roberto Pineda, ao comentar a conjuntura política de El Salvador, em artigo publicado por Alai, 07-02-2019. A tradução é do Cepat.
Os resultados das recentes eleições presidenciais em El Salvador, que favoreceram majoritariamente a candidatura do jovem político Nayib Bukele, enviaram para o terceiro lugar o principal partido de esquerda, a FMLN [Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional], já que as poderosas maquinarias eleitorais da ARENA [Aliança Republicada Nacionalista] e da FMLN foram literalmente varridas pela avalanche popular de eleitores pró-Nayib.
Esta situação merece do movimento popular salvadorenho um esforço em compreender as razões desta derrota, bem como vislumbrar as rotas que permitam recuperar a confiança dos setores populares em uma alternativa de esquerda.
Há uma nova realidade política, desde março do ano passado, que se pretende ocultar via voluntarismo, messianismo e sectarismo, mas enquanto não for reconhecida crítica e autocriticamente, não se conseguirá superá-la e o isolamento da esquerda será maior.
E tudo isto no marco de uma crescente e exitosa ofensiva da direita em nível latino-americano, mas também no marco das combativas marchas dos coletes amarelos na Europa. Na continuidade, identificamos algumas tendências neste ainda confuso e complexo panorama.
A ruptura da FMLN com Nayib Bukele, ex-prefeito de San Salvador, foi um grave erro estratégico, mais que tático, já que: a) rompe a aliança política construída com importantes setores do capital árabe a partir da candidatura de Mauricio Funes, em 2007, para privilegiar a aliança com setores do capital transnacional. Esta aliança com o capital árabe era chave para enfrentar politicamente o capital oligárquico representado na ARENA; b) esta ruptura cria uma lacuna política entre setores revolucionários (Frente) e setores democráticos (Nayib), o que fragiliza as forças pela mudança social e historicamente sempre conduziu ao fracasso de projeto popular; e c) indiscutivelmente, Nayib é o personagem político mais carismático dos últimos 50 anos, e enfrentá-lo eleitoralmente foi um claro exemplo de prepotência e evidente suicídio político.
Os resultados do dia 3 de fevereiro passado colocam a esquerda e a FMLN como seu principal responsável, na mais perigosa crise de sua história de 40 anos; já que não é uma crise derivada, como no passado (1981), de uma derrota militar ou inclusive eleitoral (1999). Vai além. É uma crise política de legitimidade do já centenário projeto histórico da esquerda frente aos olhos e o coração das pessoas.
Um problema básico é que as pessoas confundam o que é o projeto de esquerda histórico com esta oferta eleitoral conjuntural da FMLN e que isto golpeie o imaginário de esquerda na população. Está claramente no profundo do pensar popular o questionamento e a disputa sobre a ideia de mudança social. Isso é o que está em jogo. E da forma como for resolvida esta crise depende a viabilidade, não tanto do partido FMLN, mas da ideia de transformação social, de sua fundamentação ideológica e principalmente ética.
O acúmulo político (apoio popular) conquistado pela FMLN em seus primeiros doze anos (1980-1992) de enfrentamento à ditadura militar e intervenção dos Estados Unidos, que lhe permitiram alcançar os Acordos de Paz de 1992 e conquistar a presidência em 2009, encontra-se seriamente golpeado, senão esgotado.
E o conquistado de acúmulo político nestes dez anos de governo (2009-2019), por sua natureza clientelista, evapora rapidamente, passando, em cinco anos, (2014-2019), de primeira para terceira força política do país, não obstante ser a força eleitoral melhor organizada.
Diante disto, surgem diversas explicações e se abrem diversos cenários de futuro como força política de esquerda e frente aos setores populares.
Escutamos diversas narrativas que pretendem explicar o desenlace eleitoral. Para alguns e algumas, a razão deste desenlace adverso está em que “as pessoas são ingratas”, “tanto que lhes demos e viraram as costas para nós”. As pessoas são as culpadas, inclusive alguns se atrevem a classificar como traição a decisão popular pró-Nayib.
Outros aceitam o discurso da culpabilidade, mas o atribuem – como o ex-presidente Funes – a uma suposta “falta de informação” das pessoas, que permitiu que Nayib as enganasse. A tese é que as pessoas são ignorantes e se deixam facilmente manipular. Outros não dão importância a este desenlace, já que é “uma crise a mais que iremos superar”, “saímos de crises piores”. Ou seja, o voluntarismo.
Outros alegam que a vitória de Nayib não é representativa porque apenas 50% da população votaram, ou que foi por causa da prática midiática do ex-promotor Douglas Meléndez (La Página) e até algum partidário da teoria da conspiração acusa a todo-poderosa CIA por este descalabro eleitoral (terminar com 14% dos votos).
Na realidade, o fenômeno é multicausal, mas tem fortes raízes internas, deve-se a uma rejeição popular generalizada a diversos erros e condutas, entre estas, a uma atitude branda frente à corrupção (caso Funes, os supersalários), a estilos de vida suntuosos, a políticas clientelistas, ao abandono e enfraquecimento da organização e luta popular, ao peso subjetivo de 27 anos de luta eleitoral, etc. Aqui é que radicam as causas profundas desta derrota. Um dos principais erros políticos cometidos pela direção da Frente é o apoio a personagens vinculados a fatos de corrupção como o ex-presidente Funes, do qual deveria rapidamente se separar.
A direção da ARENA já se adiantou para responder a esta crise, com medidas de renovação, já que anteciparão as eleições internas e os integrantes da atual condução não poderão participar. Isto no marco do surgimento de vozes dissidentes em sua fração legislativa que reivindicam uma renovação profunda.
No caso da FMLN, estas vozes são mais escassas, como é o caso do prefeito de San Marcos, Fidel Fuentes. E na análise ainda predomina um esforço em jogar a culpa em fatores externos. Quanto mais a Frente demorar em sua “avaliação” e em tomar medidas credíveis de renovação, maior será a fatura política, diante de pessoas que em seu imaginário passaram a se deslocar do vermelho para o celeste como símbolo de esperança, de futuro, de utopia.
A experiência salvadorenha de dez anos de governo do FMLN ensina que as mudanças de cima (o poder popular de cima, os governos de esquerda) só podem se consolidar com um forte poder popular de baixo, caso contrário, resultam frágeis e temporais, são facilmente reversíveis. Só a organização e a consciência popular garantem a continuidade das mudanças.
Fica comprovado que os programas sociais não se traduzem em votos, nem muito menos em consciência e organização. São dez anos de assistencialismo puro e as pessoas receberam a ajuda e votou em Nayib. Construir poder popular exclusivamente de cima é se condenar ao fracasso, cedo ou tarde. E podemos facilmente nos ver no espelho do Brasil e Venezuela.
Para os Estados Unidos, nenhum dos três candidatos constituiu uma ameaça, não obstante, paradoxalmente, seja Calleja, o candidato da ARENA e dono da Selectos, o único que em nível empresarial dispute com Walmart o monopólio do comércio, no varejo. Mas, pela experiência destes últimos dez anos, o mais recomendável teria sido Hugo, já que assim se continuaria garantindo o protesto popular frente ao modelo neoliberal. Nayib constitui uma incógnita, o que gera incerteza. E Calleja poderia facilmente desencadear a mobilização social, que é aquilo que, junto com as “caravanas”, o império considera a principal ameaça a ser evitada.
As relações com a República Popular da China, sim, são um elemento de preocupação, já que desestabiliza os Estados Unidos, a ordem regional vigente e é um desafio aberto a sua dominação, ainda que a partir do marco de uma mesma economia-mundo capitalista. Interessantemente, o governo Funes começou desafiando a oligarquia, ao abrir relações com Cuba, e o governo Sánchez Ceren conclui desafiando os Estados Unidos, ao abrir relações com a China Popular.
É possível prever cenários futuros a respeito da Frente e sua digestão desta crise:
Há a possibilidade de uma situação em que se combine falta de renovação com fragmentação. Em caso de existir resistência a abandonar os cargos de direção – e isto é o mínimo que a população demanda para voltar a confiar neste instrumento político –, certamente se ampliará o horizonte de fragmentação interna, e de punição popular nas eleições de 2021.
O segundo cenário é o de não haver renovação, mas que se mantenham unidos. É o cenário da trincheira, do autismo. Seria a repetição do que aconteceu depois da também derrota eleitoral, do ano passado, nas eleições legislativas e municipais, nas quais se perdeu San Salvador e se reduziu a fração legislativa, e não foram realizadas mudanças. Dirigiram o conflito interno, mas não recuperaram o favor popular e, certamente, continuarão diminuindo eleitoralmente nas próximas eleições de 2021.
Um terceiro cenário é que haja renovação, mas divididos. Ou seja, que um setor encampe a renovação e consiga o apoio da militância para a impulsionar – inclusive a partir de uma visão claramente social-democrata –, mas isto leve a uma ruptura inclusive pública com outro setor que se aferre a uma visão mais conservadora.
Um quarto cenário, o mais positivo, mas por sua vez talvez o mais distante, é que haja renovação e, ao mesmo tempo, os diversos agrupamentos se mantenham unidos. Isto permitiria dar coesão à militância, renovar os vínculos com os setores populares e dar início a um processo de democratização que revitalizaria o instrumento político no novo panorama surgido a partir destas eleições presidenciais.
No caso de Nayib, já está sendo qualificado como peão do império. E quanto mais for atacado, mais será empurrado para essa direção. Nayib é uma pessoa de esquerda democrática, social-democrata. E do que fizermos como esquerda influenciará que seja um social-democrata de direita, de centro ou de esquerda. O governo de Nayib será ideológica e politicamente um governo em disputa.
Existem basicamente dois cenários:
A oposição.
Uma possibilidade é que se defina uma linha de desgaste para Nayib e se trabalhe para desqualificar o governo. Isto será fortemente criticado pelos setores populares e conduzirá, cedo ou tarde, a um maior isolamento. Certamente, a ARENA buscará na FMLN um aliado firme para descarrilhar o governo de Nayib. Tomara que a FMLN não se preste a este serviço. O perigo está em se tornar, de fato ou de direito, sócio menor de uma aliança anti-Nayib, conduzida por FUSADES-ANEP-ARENA.
O apoio crítico.
O próximo governo de Nayib será um governo em disputa, entre setores de direita e setores de orientação popular. O tanto que irá avançar ou retroceder dependerá da pressão popular e as alianças. Neste marco, é chave a busca de um acordo, desde já, antes que assuma o governo em junho, que compreenda o compromisso de garantir os programas sociais, um rumo independente em política exterior, a não privatização da água, etc. Isto será certamente aplaudido pelos setores populares e permitirá uma valorização positiva do esforço.
É necessário estender pontes para o novo bloco emergente de poder, para buscar influenciar e participar da luta pelo futuro rumo. Os gringos compreenderam bem isso e já estão dando seu apoio, e certamente a União Europeia fará o mesmo, também os recém-chegados chineses e isto o colocará no mapa do que ocorre na Venezuela e Nicarágua.
Finalmente... entre as pessoas, como entre as forças políticas, quando se perdeu o rumo, o mais adequado é retornar às nossas raízes.
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El Salvador. O desafio urgente da esquerda - Instituto Humanitas Unisinos - IHU