04 Fevereiro 2019
Seminário promovido pelo Boston College, nos Estados Unidos, aborda a formação sacerdotal. Seu documento final encoraja as dioceses a resistirem à “pressão de aumentar os números aceitando seminaristas indiscriminadamente”. Também adverte os formadores sobre os perigos de “formas de piedade que tendem a uma perfeição ‘desencarnada’ ou negligenciam o envolvimento com o mundo”.
O comentário é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, nos Estados Unidos. O artigo foi publicado em Commonweal, 24-01-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Muitos símbolos do catolicismo mudaram, recuaram ou até desapareceram, para serem substituídos por outros. Mas não o padre católico. A presença da Igreja na educação, na cultura e no trabalho social pode não ser tão visível como antes, mas o papel do padre permanece evidente. Quando a maioria das pessoas pensa no catolicismo, elas ainda pensam em um homem de colarinho romano.
Um seminário promovido pelo Boston College, que ocorreu entre setembro de 2016 e meados de 2018, produziu um interessante documento sobre o sacerdócio e o ministério, com um notável conjunto de propostas sobre a formação dos futuros sacerdotes.
O documento, publicado na última edição de 2018 da revista Origins, intitula-se "To Serve the People of God: Renewing the Conversation on Priesthood and Ministry" [Servir o povo de Deus: renovando a conversa sobre sacerdócio e ministério]. O grupo que o produz inclui homens e mulheres, católicos leigos e ordenados, estudiosos e agentes de pastoral. Ele foi presidido por Richard Gaillardetz, do Departamento de Teologia do Boston College, e Thomas Groome e Richard Lennan, da Escola de Teologia e Ministério do Boston College.
A introdução do documento de 9.000 palavras deixa claro que o foco está na formação dos padres diocesanos, não dos membros de ordens religiosas ou de novos movimentos eclesiais, como o Caminho Neocatecumenal. O foco também está nos Estados Unidos: os autores reconhecem que algumas de suas propostas podem não ser aplicáveis a outros países.
A primeira parte do documento, “Ministério na vida da Igreja”, aborda os fundamentos eclesiológicos do ministério na vida da Igreja – a sacramentalidade da Igreja e a natureza eclesial de todos os seus ministérios.
A segunda parte é dedicada a “Um perfil do padre bem-formado”, apresentando o padre em todos os seus aspectos: como pregador, como líder do culto e da oração, como líder colaborativo, como representante público da Igreja e como praticante da caridade pastoral.
A terceira parte, “Moldando o futuro”, trata do recrutamento e da formação dos padres. É a parte mais interessante, porque desenvolve propostas concretas. Ao abordar o futuro dos seminários diocesanos, o documento afirma que “a estrutura fechada do seminário, muitas vezes isolada do mundo cotidiano das famílias (...) pode isolar os seminaristas”.
Ecoando o que o Papa Francisco tem dito muitas vezes, o documento encoraja as dioceses a resistirem à “pressão de aumentar os números aceitando seminaristas indiscriminadamente”. Também adverte os formadores sobre os perigos de “formas de piedade que tendem a uma perfeição ‘desencarnada’ ou negligenciam o envolvimento com o mundo”.
Isso os encoraja a abordar a necessidade de que os futuros padres tenham “a capacidade de relação com uma grande variedade de mulheres e homens”. Uma boa formação clerical deve apoiar a maturidade afetiva e o desenvolvimento psicossexual, e “deve promover diretamente alternativas ao ‘manto de silêncio do celibato”.
O documento também recomenda que a formação não seja uma responsabilidade apenas dos ordenados, e que os seminaristas sejam treinados junto daqueles que estão se preparando para outros ministérios eclesiais.
A parte final de “Moldando o futuro” aborda as questões da formação permanente, do novo ambiente do ministério (nada bom para “lobos solitários”), e a necessidade de estar aberto a desenvolvimentos futuros na disciplina do ministério: “O ministério ordenado da Igreja tem uma história precisamente porque mudou ao longo do tempo. Esse fato sugere que mais mudanças podem ser esperadas enquanto o futuro se desenrola”.
Em geral, o documento do Boston College tem duas ênfases principais. A primeira é a necessidade de ver o ministério como uma obra colaborativa entre padres e outros ministros, não apenas pelos óbvios problemas causados pela falta de padres, mas também por razões teológicas: os autores enfatizam a natureza eclesial de todos os ministérios. A distinção entre os ministérios ordenado e não ordenado não deveria ser mal entendida como a distinção entre o profissional e o amador.
A segunda ênfase está na necessidade de repensar as nossas abordagens à formação, para ir além do seminário monolítico – uma inovação do Concílio de Trento que persistiu sem muitos ajustes por mais de 400 anos.
É difícil repensar a formação sacerdotal hoje sem levar em consideração as recentes controvérsias na “teologia do laicato”. Hoje, pode-se encontrar tanto clericalismo entre alguns leigos pós-Iluminismo e pré-Vaticano II quanto entre os próprios clérigos. A teologia do laicato do documento do Boston College está principalmente implícita. Ela parece pressupor que o ministério leigo trabalha em colaboração com o ministério ordenado, não como um substituto dele. Mas também implica que agora há um laicato católico maduro e instruído que não está mais disposto a ser considerado como naturalmente inferior ao clero.
Esse documento do Boston College também reflete a atmosfera da divisão intraeclesial em que agora ocorrem os debates sobre o sacerdócio. Quando os autores escrevem na introdução que “não existe um consensus fidelium” em relação à ordenação de mulheres ou de homens casados, eles estão meramente dizendo a verdade. Pode levar muito tempo para que tal consenso surja.
É claro, houve uma longa tradição de padres casados nos primeiros séculos da Igreja (como ainda existe nas Igrejas Católicas orientais), mas quantos católicos comuns sabem disso hoje?
“Servir ao povo de Deus” insiste na necessidade de os católicos falarem de uma transformação que já está em andamento. Nas últimas décadas, houve uma redistribuição dos papéis de liderança envolvendo o diaconato permanente restaurado pelo Vaticano II, novos ministérios leigos masculinos e femininos, e os novos “movimentos eclesiais”, nos quais a distinção entre membros leigos e ordenados é muito menos relevante.
Mas essa redistribuição de poder está ocorrendo na ausência de um real desenvolvimento magisterial de ensino sobre o ministério na Igreja. Uma pluralidade de ministérios e figuras ministeriais se desenvolveu em grande parte extra legem – isto é, sem uma regulação teológica e jurídica abrangente.
Para seu crédito, Roma não quis limitar a ação do Espírito, por isso deixou muito espaço para a experiência. Mas muitos desses novos ministérios surgiram como resultado da emergência da falta de clero. Note-se que isso só foi possível quando as Igrejas locais dispunham de recursos financeiros para contratar pessoal leigo (masculino e feminino) para cargos de cuidado pastoral anteriormente confiados exclusivamente ao clero. Igrejas pobres simplesmente não podem se dar ao luxo de fazer isso – ou pelo menos não do mesmo modo.
Em uma escala maior, os bispos em partes ricas do mundo, sem um número suficiente de padres locais, agora importam clérigos de países pobres que parecem ter um superávit, pelo menos em comparação conosco [nos Estados Unidos]. Os resultados podem variar, mas, mesmo quando funciona bem, isso levanta questões morais sobre a relação entre a Igreja nos países ricos do Ocidente e a Igreja no mundo em desenvolvimento. Pode parecer apenas uma outra forma de extração de recursos.
A história da Igreja pode ser vista como uma história de reformas do clero: a imposição do celibato clerical na Igreja Católica Romana foi uma luta de séculos; levou décadas para construir e formar seminários diocesanos depois de Trento.
Nós não temos razão para duvidar de que uma nova reforma da formação clerical levará muitos anos para ser implementada. O que torna ainda mais importante começarmos agora. Tanto o escândalo do abuso clerical quanto a falta de padres no Ocidente exigem que a Igreja pós-Vaticano II aborde uma questão que o Vaticano II nunca focou: a seleção e a formação dos padres.
O Vaticano II elevou o episcopado (pelo menos na teoria) à colegialidade com o papa e chamou o laicato à santidade e a um papel muito mais ativo tanto na Igreja quanto no mundo. Mas o baixo clero ficou preso no meio como uma espécie de reflexão tardia (vale a pena lembrar que foi apenas na terceira sessão do Concílio, em 1964, que 50 párocos foram convidados a participar – e então apenas como “auditores”. Eles eram muito menos visíveis do que os observadores ecumênicos e até mesmo do que os leigos convidados).
O documento do Boston College é um lembrete valioso da necessidade urgente da Igreja de reexaminar a forma como ela prepara os seus ministros. Como o ministério é em si colaborativo, esse reexame do futuro do ministério também deve ser colaborativo, envolvendo representantes do baixo clero e do laicato, assim como dos bispos. Um sínodo – por definição, um tipo de colaboração – seria a maneira ideal para lidar com essa questão importante e negligenciada.
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Alto clero, baixo clero e laicato: como renovar o sacerdócio e o ministério. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU