04 Janeiro 2019
O prefeito da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada, o cardeal João Braz de Aviz, reconhece agora que o Vaticano tinha desde 1943 documentos sobre a pedofilia do fundador dos Legionários de Cristo, Marcial Maciel. O religioso foi investigado entre 1956 e 1959. “Quem o encobriu era uma máfia, eles não eram Igreja”, disse ao ser entrevistado pela revista católica Vida Nova. João Braz esteve em Madri há um mês para encerrar a assembleia geral da Confederação Espanhola de Religiosos (Confer). “Tenho a impressão de que as denúncias de abusos crescerão, porque só estamos no começo. Encobrimos isso por 70 anos e foi um enorme erro”, afirma.
A reportagem é de Juan G. Bedoya, publicada por El País, 02-01-2019.
Os Legionários de Cristo renascem de suas cinzas, com uma nova estrutura, após 12 anos de expiação e dez desde a morte de seu fundador, o padre Marcial Maciel, amigo de vários papas e o maior predador sexual na história recente da Igreja. Apresentado durante anos por João Paulo II como apóstolo da juventude e mimado por incontáveis bispos e cardeais, muitos deles espanhóis, Bento XVI o penalizou em 2006, meses depois da morte do Pontífice polonês, a se retirar ao México para o resto de sua vida, dedicado “à penitência e à oração”. Morreu sem pedir perdão dois anos mais tarde, quando uma comissão de investigação já havia revelado sem sombra de dúvidas suas atividades criminosas e uma vida de crápula tolerada pelo Vaticano.
O El País publicou em 2006 que o fundador legionário havia sido investigado entre outubro de 1956 e fevereiro de 1959 por encargo do cardeal Alfredo Ottaviani, à época o grande inquisidor romano. Maciel estudou na Universidade Pontifícia de Comillas, à época com sede na Cantábria, de onde foi expulso com alguns colegas sem que os jesuítas tomassem medidas adicionais. A inspeção do Vaticano foi supervisionada pelo claretiano basco e futuro cardeal Arcadio Larraona. Durante esse tempo, Maciel foi suspenso como superior geral, e expulso de Roma. Larraona enviou seus inspetores ao seminário de Ontaneda, entre outros centros. Não adiantou nada e Maciel voltou a cometer seus crimes, com mais poder. Ratzinger também não agiu em 1999, apesar das evidências depositadas sobre sua mesa de presidente da Congregação para a Doutrina da Fé, o Santo Ofício da Inquisição do passado.
As denúncias de suas incontáveis vítimas, que mais tarde ganharam a companhia das mulheres com as quais o padre Maciel teve filhos, ficaram mais fortes até se tornarem insuportáveis ao Vaticano. Ninguém tomou medidas. “Não se processa um amigo do Papa”, disseram os que deveriam intervir, em primeiro lugar o cardeal Josep Ratzinger, hoje Papa emérito. Maciel também era seu amigo, além de confessor do Papa polonês em várias ocasiões. “Esperavam que Deus lhes retirasse do atoleiro com a morte de João Paulo II e a do acusado”, disse em 1999 uma de suas vítimas e denunciante, Alejandro Espinosa, que teve a infelicidade de ser presa predileta do fundador legionário no frio casarão do seminário de Ontaneda (Cantábria).
Marcial Maciel Degollado (Cotija, Estado de Michoacán, México, 1920-2008), era cotado para santo até que vários dos seminaristas dos quais abusou se uniram para clamar desesperadamente ao Vaticano. “É um guia eficaz da juventude”, dizia sobre Maciel João Paulo II quando as denúncias já eram públicas. Apenas uma semana antes de Ratzinger notificar a abertura de uma investigação, o célebre fundador festejou seus 60 anos de sacerdócio em um ato do qual participaram o Papa e seu secretário de Estado, cardeal Angelo Sodano.
Maciel chegou à Espanha no final dos anos 40 do século passado para estender sua função, protegido pelo à época ministro das Relações Exteriores do ditador Francisco Franco, o democrata-cristão Alberto Martín Artajo. Vinha avalizado pelo Papa Pio XII, que o recebeu em 1941, logo após fundar, com apenas 21 anos, os Legionários de Cristo e o Regnum Christi, inicialmente com o nome de Missionários do Sagrado Coração e da Virgem das Dores.
Ricardo Blázquez, cardeal arcebispo de Valladolid e presidente da Conferência Episcopal Espanhola (CEE), foi um dos cinco inspetores encarregados em 2010 por Bento XVI de depurar a organização, na qual fizeram carreira outros pedófilos junto ao fundador. Algumas das vítimas acreditaram à época que o Papa eliminaria os Legionários da maneira como funcionavam, para refundá-los com outro carisma. Assim declarou ao EL PAÍS o sacerdote Félix Alarcón, ex-dirigente legionário em vários países, ele mesmo vítima de abusos quando era criança. “O Vaticano recebeu 240 documentos que evidenciavam que a situação era conhecida muito antes do reconhecimento de que era conhecida. Nossa denúncia é de 1988, e enquanto Ratzinger era cardeal, essa terrível batata quente era passada de um lado para o outro, sem que nenhuma medida fosse tomada. Acho que a Legião tal como a entendíamos deveria ser eliminada”, disse em sua casa em Madri.
Existiu um antecedente, com o Vaticano na primeira fila de culpa e penitência por encobrir uma rede de pedófilos nas Escolas Pias do aragonês são José de Calasanz, fundador da Ordem de Clérigos Regulares Pobres, conhecidos agora como esculápios. Um dos pedófilos, o padre Stefano Cherubini, teve tanto poder de encobrimento que chegou a ser superior da ordem, derrubando o fundador. Os esculápios foram punidos com a extinção e Calasanz morreu aos 91 anos em Roma ainda em desgraça. Oito anos depois, a congregação foi reabilitada. O escândalo não impediu que Calasanz fosse elevado aos altares. Em 1948 foi declarado patrono universal das Escolas cristãs por Pio XII.
O conhecimento público dos escândalos de pedofilia dentro dos Legionários de Cristo, até então um dos grandes movimentos do novo catolicismo, fez com que o Vaticano promovesse, por fim, a chamada “tolerância zero”, o lema com o qual o cardeal alemão Ratzinger ganhou o pontificado. Não foi ouvido e acabou renunciando ao cargo, em um gesto sem precedentes em séculos.
A punição a Marcial Maciel e sua organização foi rigorosa, mas não a extinguiu. Entre outras exigências, além da proscrição do fundador, os legionários deixariam de comemorar as diversas efemérides de Maciel; deveriam deixar de chamá-lo “nosso pai” e ignorar seu nome em público; eliminar de seus colégios todas as fotografias em que ele estivesse sozinho e com João Paulo II, e deixar de vender seus livros. Houve uma exceção por respeito à “liberdade pessoal”: quem desejasse conservar “de maneira privada” alguma fotografia do fundador, ler seus escritos e escutar suas conferências, poderia fazê-lo, porém discretamente.
Com esse longo processo de purgação e depuração, e eliminados os colaboradores mais próximos de Maciel, o Vaticano acaba de aprovar os novos estatutos da Legião, que a reconhecem “canonicamente como Sociedades de Vida Apostólica de direito pontifício” e como “uma federação formada e governada colegiadamente entre os Legionários de Cristo, as Consagradas e os Laicos Consagrados, com voto consultivo dos laicos, que se associarão individualmente à Federação”. Seu órgão de governo se chamará Colégio diretivo.
Longe de perder associados, durante a crise a Legião cresceu 3%. Hoje são 21.300 membros seculares, 526 consagrados, 63 laicos consagrados, 1.537 legionários de Cristo e 11.584 membros adolescentes em uma organização chamada ECYD. Em sua obra educativa (154 colégios, 5 academias internacionais, 14 universidades civis e quatros eclesiásticas), se formam 176.000 alunos.
Na Espanha, são responsáveis pelo santuário diocesano de Nossa Senhora de Sonsoles em Ávila e possuem seminários em Ontaneda (Cantábria) e Moncada (Valência). Também possuem a Universidade Francisco de Vitoria, em Pozuelo (Madri); a rede de colégios Everest e Cumbres; a organização Highlands; a rede de colégios Mão Amiga, e a agência de notícias Zenit.
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Vaticano escondeu pedofilia do fundador dos Legionários de Cristo por 63 anos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU