17 Dezembro 2018
Com cerca de duas semanas como Pontífice, em março de 2013, o Papa Francisco pronunciou uma frase que rapidamente se tornaria um dos seus maiores sucessos de citações: "Isto é o que vos peço: que sejam pastores com 'cheiro das ovelhas'"
O comentário é de Jamie Manson, publicada por National Catholic Reporter, 15-12-2018. A tradução é de Victor D. Thiesen.
Francisco falou essas palavras a milhares de padres que haviam se reunido no Vaticano para a Missa anual do Crisma, liturgia tradicionalmente realizada na manhã da Quinta-Feira Santa que celebra a santidade do sacerdócio.
A frase se tornou um refrão comum para qualquer católico progressista testemunhando a promessa do pontificado de Francisco.
Mas eu nunca consegui digerir muito bem a metáfora. Claro, Francisco estava sugerindo que os membros do clero não deveriam permanecer distantes das pessoas que servem. Mas o que ela dizia sobre os leigos? Somos um rebanho simples e perdido totalmente dependentes de orientação de nossos padres e bispos?
A metáfora do Bom Pastor funciona muito bem para Jesus. Ele é, os cristãos creem, plenamente divino, a Luz do Mundo, o Alfa e o Omega. Mas a analogia se depara com todos os nossos humanos em demasia, falíveis, e às vezes até mesmo criminosos, padres e bispos.
Nunca a disposição clerical de Francisco ficou tão exposta do que na maneira com que tratou com o caso do cardeal australiano George Pell, que foi considerado culpado na quarta-feira, 12 de dezembro, em cinco acusações de "ofensas sexuais a crianças."
No primeiro mês de seu pontificado, Francisco tinha colocado Pell para servir no então novo Conselho de Cardeais, grupo de nove conselheiros conhecidos informalmente como "C9". Em 2014, Francisco nomeou Pell para um mandato de cinco anos como prefeito da Secretaria para a Economia, Dicastério da cúria romana que tem autoridade sobre todos os assuntos econômicos da Santa Sé e do Estado do Vaticano.
No início de 2016, surgiram notícias de que Pell estava sendo investigado por abusar sexualmente de crianças quando era padre e depois arcebispo. Em outubro de 2016, três policiais australianos voaram para a Itália a fim de entrevistar Pell, que havia se recusado a voltar para a Austrália para o interrogatório devido à "saúde debilitada".
Em junho de 2017, Francisco concedeu o pedido de Pell para uma licença de suas responsabilidades da Secretaria da Economia para que ele pudesse voltar para a Austrália com objetivo de se defender contra as acusações.
Depois de um pré-julgamento em maio de 2018, uma corte australiana ordenou Pell a se defender em dois julgamentos por múltiplas acusações de abuso sexual de menores: uma para acontecimentos em Melbourne na década de 1990 e outra para casos em Ballarat na década de 1970. A decisão desta semana foi em relação aos abusos de Pell em Melbourne. Seu segundo julgamento será realizado em março de 2019.
Em meio a esses anos de interrogatórios, acusações e julgamentos, Francisco optou por permanecer em silêncio e manter Pell em suas posições no C9 e na cúria.
De acordo com Gerard O'Connell, correspondente do Vaticano para a revista America, "Francisco aplicou o princípio do direito conhecido como 'in dubio pro reo' (‘a dúvida favorece o acusado'), insistindo que uma pessoa deve ser considerada inocente até que se prove culpa. O Papa não removeu cardeal Pell de seus postos no Vaticano porque isso seria o equivalente a uma admissão de culpa."
Ao contrário da Igreja dos EUA, onde uma acusação credível é suficiente para tirar um padre do Ministério, na visão de Francisco, mesmo um pingo de dúvida sobre a culpa de um prelado é suficiente para mantê-lo.
Esta não é a primeira vez que Francisco favoreceu um membro acusado de seu C9. Francisco também manteve o cardeal chileno Francisco Errázuriz no Conselho. Ele foi acusado de encobrir padres abusadores quando era arcebispo de Santiago, incluindo o notório abusador Fernando Karadima, que foi condenado a uma vida de oração e penitência em 2011 e, finalmente, destituído em setembro de 2018.
Errázuriz era o "defensor mais poderoso" de Karadima, de acordo com um artigo de Soli Salgado publicado pelo NCR em 2015.
O artigo declara que "as acusações contra Errázuriz afirmam que o cardeal estava plenamente consciente e mesmo assim optou por ignorar o abuso em 2003."
“Eu sou o primeiro a julgar e a punir uma pessoa sobre a qual pese esse tipo de acusação”, disse Francisco sobre Errázuriz na época. “Mas, neste caso, não há nenhuma prova contra ele, ao contrário, e eu lhes digo isso de coração. Não se deixe enganar por aqueles que só olham para a confusão, que olham para o escândalo.”
O caso Karadima voltaria a assombrar Francisco em janeiro de 2018, quando ele defendeu vigorosamente o bispo Juan Barros, que as vítimas de Karadima dizem ter testemunhado o abuso. Francisco tornou Barros bispo em 2015.
“No dia em que me apresentarem uma prova contra Dom Barros, falarei com vocês. Não há uma única prova contra ele. É calúnia. Está claro?”, disse Francisco na época.
Embora Francisco se desculpou mais tarde às vítimas de Karadima por chamá-los, basicamente, de mentirosos, este foi outro exemplo do Papa que privilegia padres abusivos sobre leigos abusados.
Mesmo em meio a toda esta podridão em seu Conselho de Cardeais, Francisco manteve Errázuriz e Pell em seus lugares privilegiados, esperando as autoridades civis decidirem sua culpa ou inocência antes de remover esses homens de suas posições.
Foi só depois de Pell ter sido considerado culpado na quarta-feira que o Vaticano decidiu anunciar que Errázuriz e Pell não estariam mais servindo no C9. Mas mesmo o anúncio fez soar como se o Papa estivesse simplesmente reorganizando seu Conselho ao invés de sugerir que eles haviam sido removidos devido a atividade criminosa, nefasta, ou, de abuso sexual.
Na verdade, Greg Burke, diretor do Sala de Imprensa da Santa Sé, disse que Francisco tinha escrito aos dois homens em outubro os agradecendo por seu serviço.
Pell manterá seu posto na cúria?
"Essa é uma boa pergunta", disse Burke, quando perguntado durante uma coletiva na quarta-feira, apenas algumas horas após a condenação de Pell.
"A Santa Sé tem o maior respeito pelas autoridades judiciais australianas. Estamos cientes de que há uma ordem de supressão, e respeitamos essa ordem ", acrescentou Burke, se referindo a uma ordem judicial australiana proibindo a mídia de publicar notícias sobre o julgamento de Pell como forma de manter imparcialidade.
Mas ser condenado por abuso sexual num julgamento, enquanto aguarda um segundo julgamento sobre as mesmas acusações - detalhes tornados públicos -, o suficiente para ser expulso da cúria? Aparentemente, não no mundo de radical privilégio clerical do Vaticano.
A principal questão é: por que Pell não foi removido no momento em que foi convocado para julgamento, senão antes? Não deveria ter demorado tanto, e, se demorou, foi pela abordagem de Francisco em privilegiar Pell.
Em uma de suas muitas diatribes contra o clericalismo, disse Francisco numa homilia em dezembro de 2016:
“Existe este espírito de clericalismo na Igreja: os padres se sentem superiores, se afastam das pessoas. [Eles] não têm tempo para escutar os pobres, os sofredores, os encarcerados, os doentes. O mal do clericalismo é uma coisa muito triste.”
A estratégia de Francisco em favorecer o acusado cheira a clericalismo. Dá ao clero um odor de superioridade e ignora descaradamente os gritos daqueles que sofreram abusos horríveis. A próxima vez que Francisco apontar um dedo para os males do clericalismo, se espera que aponte o dedo para si mesmo em relação aos casos de Barros, Pell e Errázuriz.
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Papa Francisco mostra seu clericalismo ao tratar do caso cardeal Pell, opina jornalista americana - Instituto Humanitas Unisinos - IHU