Por: Ricardo Machado | 10 Outubro 2018
“A minha história é a história de centenas de milhares de brasileiros. É possível que parte deles estejam contaminados pelo temor, afeto que reverbera o ódio de um projeto político covarde e autoritário. A todos estes, meu amor, minha tristeza e minha absoluta solidariedade, afinal não cabe julgar quem a dureza da vida embruteceu. Os tempos são difíceis. Mas a todos aqueles que nunca se preocuparam com a próxima refeição e que espalham mentiras e desinformação, ofereço-lhes minha existência indolente, insolente e desajustada. Somos, sim, milhões de desajustados no país do ‘ajuste fiscal’”, escreve Ricardo Machado, jornalista e doutorando em Comunicação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS.
Cuidado, somos perigosos! Somos tão perigosamente ameaçadores quanto a beleza de Juliete Binoche em Perdas e danos, filme da década de 1990 dirigido por Louis Malle, em que sua personagem, Anna, envolve-se amorosamente com o pai do próprio noivo. Vocês pretendem nos amedrontar, mas nós é que somos o monstro a assombrá-los, simplesmente porque, como diz a certa altura um diálogo do filme, “Cuidado, pessoas sofridas são perigosas, pois sabem que podem sobreviver”.
Cuidado, somos perigosos! Particularmente sobrevivi, por acaso e por destino, a um aborto que havia sido planejado depois de minha mãe ter perdido três filhas para a pobreza. Duas por problemas de saúde, uma devido a um desastre – não há outra palavra. A casa onde minha família morava, muito simples e de madeira, pegou fogo. O ano era 1982, ela residia na periferia da região metropolitana de Porto Alegre, não havia luz elétrica. Uma vela caiu e pegou fogo na cortina e em instantes não havia mais casa. Minha mãe trabalhava à noite, o adicional noturno ajudava no sustento da casa. Meu irmão, à época com 14 anos, cuidava da minha irmã com nove. Somente ele sobreviveu. O pai do meu irmão, anos antes, havia ameaçado minha mãe de morte, várias vezes havia enfiado o revólver em sua boca. Ela criou coragem e fugiu, foi morar em uma casa de duas peças, numa pensão. O pai do meu irmão, semanas depois, foi lá durante o dia e levou os poucos móveis que ela tinha comprado, com um longo “carnê”, enquanto ela trabalhava e meu irmão estava na escola. Esse clássico brasileiro, o pai ausente, disse para a dona da pensão que a minha mãe teria “voltado pra casa”. Mentira. Desolada diante daquele que seria um novo lar, ela se dirigiu até a delegacia para denunciar o furto e teve como retorno, a sensível atenção(sic) do delegado: “sai daqui vagabunda!”. Sabem o que aconteceu? Ela sobreviveu, tinha um jeito, digamos assim, de gente indolente, desajustada, sabe.
Cuidado, somos perigosos! Pois bem, por acaso e por destino, como disse, nasci um ano e meio depois do incêndio, numa segunda-feira gelada de maio. Quando soube que estava grávida de mim, minha mãe chorou a noite toda, estava desempregada, não sabia o que fazer. Quando nasci, prematuro, os médicos disseram que eu poderia ter muitos problemas de saúde. Preocupada, não queria que o filho morresse pagão, minha mãe foi à Igreja, mas o padre disse que não dava para me batizar, afinal ela era “mãe solteira” (essa espécie de “estado civil” cunhado pela família tradicional brasileira). Levou-me ao terreiro. Fui batizado por um espírito da floresta, Caboclo Cacarandi, de uma mãe de santo negra e encantadora como a noite, chamava-se “Vó Preta”. Cresci assim, meio selvagem, um tipo meio indolente, daqueles desajustados mesmo. Mas eu precisava de roupas para vestir, aí minha vizinha, que é minha madrinha, doou uma série de roupas da filha dela, nascida dois anos antes, e eu cresci bem lindo com um monte de roupinhas cor de rosa. Minha outra vizinha, mulher negra e também de coração enorme, ofereceu-se para cuidar de mim quando minha mãe voltasse a trabalhar. Assim o fez, por anos, com amor e sem cobrar um único centavo. Recentemente eu casei e ela foi comigo ao altar, pois minha mãe, depois de muitas lutas, aos 68 anos, jogou a toalha, pela primeira e última vez na vida.
Cuidado, somos perigosos! Fui alfabetizado com cadernos de papéis recicláveis, que, no final dos anos 1980, eram de péssima qualidade (folhas muito escuras), mas com um custo baixíssimo, que cabia no orçamento. Oito anos mais tarde, aos dezesseis de idade, comecei a trabalhar. Trabalhava de dia e estudava à noite. Caminhava uns nove quilômetros por dia entre a minha casa, o meu trabalho, a escola e a minha casa de volta. Uma rotina que começava às 7h e se encerrava às 23h30. Anos mais tarde, naquela idade que os filhos da classe média saem da faculdade, aos 22/23 anos, eu entrei no curso de jornalismo. Ter trabalhado em dois empregos – um no mercado formal de trabalho e outro como bolsista/monitor/estagiário na universidade onde estudava – permitiu que eu concluísse o curso rapidamente. Aos 27 estava formado. Há 18 anos trabalho e estudo, hoje estou no doutorado em uma universidade pública e vejo gente que defende a “meritocracia” contratar empregado que sequer sabe usar a norma culta da língua portuguesa no Currículo Lattes. No Brasil, a meritocracia é uma miragem no horizonte dos não abastados. São necessárias muitas gerações para superar o déficit histórico que separa quem a vida inteira precisou lutar para viver de quem simplesmente vive. O cenário é ainda pior para pessoas negras e indígenas, diariamente violentados por causa da cor da pele, onde o fascismo social ressoa com mais força nas estruturas de Estado.
Vocês deveriam realmente ter cuidado conosco! Aprendi com minha mãe, a pessoa mais inteligente que já conheci, mas cujo direito à alfabetização foi negado por ter entrado no mundo do trabalho como empregada doméstica aos oito anos de idade, que o fetiche do dinheiro – que leva à fama, à vaidade, à vilania – é um caminho em direção ao fundo do poço. Por isso não somos melancólicos, por isso não tememos, por isso resistiremos, por isso o autoritarismo é um programa que nasce derrotado. No fundo, todos eles sabem que nunca serão capazes de derrotar a todos nós, por isso vociferam espalhando a única coisa que seus corações são capazes de produzir: ódio.
Cuidado, sobretudo, porque somos realmente perigosos! A minha história é a história de centenas de milhares de brasileiros. É possível que parte deles estejam contaminados pelo temor, afeto que reverbera o ódio de um projeto político covarde. A todos estes, meu amor, minha tristeza e minha absoluta solidariedade, afinal não cabe julgar quem a dureza da vida embruteceu. Os tempos são difíceis. Mas a todos aqueles que nunca se preocuparam com a próxima refeição e que espalham mentiras e desinformação, rezando diante do altar das fake news, ofereço-lhes minha existência indolente, insolente e desajustada. Somos, sim, milhões de desajustados no país do “ajuste fiscal”. Somos os filhos do terreiro a lavar, com lágrimas e uma impávida coragem, da Floresta Amazônica à Candelária, o sangue derramado pelos criminosos de gravata. Não perdemos a guerra e não seremos tomados pela melancolia. Somos uma espécie de Juliette Binoche tropical, que sabe que no fundo somos nós quem sobreviveremos numa existência alegre. Não somos ingênuos de esperar florescer o jardim na escuridão do inverno. Já aprendemos, desde muito cedo, que a vida é um processo contínuo de luta, dor e gozo. Sabemos do tempo antes do próprio tempo. A primavera sempre chega e não há flor que nasça na Quinta da Boa Vista que não cresça na janela do barraco na Rocinha. A nossa força vem da certeza de que há sempre primavera depois do inverno. É bom mesmo ter cuidado conosco, somos terrivelmente persistentes e isso é um perigo irremediável.
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Cuidado, somos perigosos! - Instituto Humanitas Unisinos - IHU