01 Outubro 2018
“O discurso racista e xenófobo dos líderes ultra já não se disfarça mais nem suaviza graças ao sucesso nas urnas dos partidos que o propagam, arrasando tudo o que vem pela frente, inclusive os códigos de identidade da esquerda radical”. A análise é de Eduardo Febbro, em artigo publicado por Página/12, 30-09-2018. A tradução é de André Langer.
A parte restante de 2018 e os primeiros cinco meses do próximo ano serão uma eufonia para os eleitores europeus cujos sentidos foram contaminados pela ardente xenofobia dos partidos de extrema direita. A reorientação retórica da esquerda radical da Alemanha e da França com respeito à questão da imigração não fará outra coisa senão levar ao ápice um assunto que se alimenta diariamente com a crise dos migrantes no Mediterrâneo e os mais recentes sucessos eleitorais da ultradireita em países como Itália, Áustria ou Suécia.
Na França, a ex-Frente Nacional, agora rebatizada como Agrupamento Nacional, colocou os estrangeiros na proa de seu barco eleitoral. As pesquisas para as eleições europeias de maio de 2019 colocam o partido de Marine Le Pen em uma posição ideal. À direita e à esquerda, seus rivais, Os Republicanos e o dissidente Partido Socialista, ainda não se recuperaram da derrota nas eleições presidenciais de 2017, nem superaram suas divisões internas. Com essa perspectiva, o Agrupamento Nacional pretende repetir a façanha das eleições europeias de 2014, quando se tornou o maior partido na França. Para isso, conta hoje com um modelo de sucesso que marca o caminho: sua nova referência, o ultraxenófobo político italiano da Liga, Matteo Salvini.
Seu credo atualizado é o do “naufrágio silencioso” da Europa e da França sob a influência da imigração. A ideia de uma Europa naufragada deslocou a ideia da “substituição” (eles, os estrangeiros, substituirão a “nossa cultura”). Marine Le Pen já não dissemina mais seus ataques sozinha. Agora, ela conta com aliados de luxo com a Liga de Salvini, o FPÖ na Áustria (Partido Liberal do vice-chanceler austríaco Heinz-Christian Strache), a Hungria do xenófobo Victor Orban, os alemães da AfD (Alternativa para a Alemanha, 12,6% do votos nas eleições parlamentares), os extremistas poloneses e suecos. Com eles, disse Le Pen há algumas semanas, “defendemos com unhas e dentes a nossa nação e a nossa civilização”.
A esses movimentos da raiz nacional populista veio se somar outro aliado inesperado: o de algumas esquerdas radicais europeias que questionaram o princípio que sempre defenderam de uma Europa “de fronteiras abertas”. A figura mais forte da esquerda radical alemã e uma das líderes do partido Die Linke, Sahra Wagenknecht, anunciou a criação de seu próprio movimento, o Aufstehen (Levantar-se), com o qual se propõe a derrotar a extrema direita.
Mas com esse projeto removeu o dogma das fronteiras e a entrada de estrangeiros no mercado de trabalho da Alemanha. Wagenknecht afirmou que “quanto mais imigrantes econômicos houver, isso equivale a mais competição para conseguir um emprego no setor de baixos salários”. Muito suavemente, ali se dissemina o velho perfume reacionário da ultradireita dos anos 80, quando dizia, por exemplo, “os franceses primeiro” ou “eles tiram os nossos empregos”. Mais profundamente, o que a líder alemã está dizendo é que os migrantes prejudicam os trabalhadores locais e diminuem os salários.
Na França, embora com retóricas mais decorativas, a esquerda radical de Jean-Luc Mélenchon optou por um caminho similar. Entre outros deslizes que dividiram o partido, A França Insubmissa, Mélenchon disse que “a onda de migrantes pode representar muitos problemas para os países que os recebem”. Também opôs o proletariado nacional aos imigrantes “explorados” por empreendedores oportunistas. Nessa visão parece haver um inocente, o proletariado local, e um culpado, o imigrante, que rebaixa os salários porque aceita a exploração. Uma espécie de subproletariado composto por estrangeiros que acaba prejudicando o nacional. Ninguém menciona, é claro, que esse suposto subproletariado faz os trabalhos sujos e pesados que a classe trabalhadora nacional não faz há décadas.
A esquerda europeia está definhando em todos os lugares, enquanto seu rival histórico, aquele que causou os estragos mais sangrentos durante o século XX, cresce com urnas transbordando. A onda do populismo marrom está arrastando tudo o que vem pela frente, inclusive os códigos de identidade da esquerda radical. A ultradireita xenófoba e antieuropeia que se sonha a si mesma como a grande muralha contra os outros e segura vencedora das eleições europeias, já não esconde mais suas ideias em tecidos finos. Ela saiu com a língua suja a campo aberto, como faz Orban na Hungria ou Salvini na Itália. Eles são os artífices “do triunfo dos povos” (Marine Le Pen).
Philippe Olivier, conselheiro político de Marine Le Pen, explica que a atual “divisão” não passa mais pela esquerda e pela direita, mas se trata de um antagonismo “entre globalizadores e nacionalistas”. Esse é o eixo central de suas reelaboradas narrativas, onde, para eles, a esquerda tradicional, a socialdemocracia e a direita são “globalizantes”, ao passo que eles são pura identidade e soberania. Sem rodeios, Olivier alega: “nosso fundo de comércio é a imigração. Os franceses querem que nos livremos dos imigrantes”. Marine Le Pen completa com uma ironia selvagem essa enciclopédia do ódio como metodologia eleitoral quando diz: “Nenhum rincão da França se salvará dos imigrantes. Em breve haverá migrantes até mesmo no Castelo de Versalhes” (antiga sede da realeza).
Nesse contexto e sem ninguém à esquerda ou à direita que os ameace, seu inimigo número um é o centro liberal que derrotou a extrema direita nas eleições presidenciais francesas de 2017 (Marine Le Pen foi para o segundo turno), o presidente Emmanuel Macron. O chefe de Estado é definido pelo lepenismo como um homem que “dirige a França cercado de mercenários de supermercados”.
As transformações que foram acontecendo nesses anos confluem em um espelho assustador. Antes, as esquerdas radicais e as extrema direitas convergiam em temas como o repúdio à tecnocracia da Comissão Europeia, os privilégios das elites, os orçamentos asfixiantes e até mesmo as críticas ao liberalismo. Uma espécie de soberanismo populista comum e a arrasadora energia dinâmica da xenofobia política fizeram-nas convergir inclusive no tema da imigração.
Ou seja, que, com isso, a esquerda radical está deixando de lado um dos últimos princípios solidários e humanistas. A solidariedade era um antídoto contra a xenofobia. Nada parece ser capaz de desmantelar as mandíbulas desse grande monstro poliforme que está prestes a engolir toda a Europa.
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A onda do populismo marrom. Artigo de Eduardo Febbro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU