25 Setembro 2018
O candidato petista é tutelado pelo temor da perda da hegemonia; o eleitor do campo progressista, tutelado pelo temor da real ameaça fascista.
O artigo é de Fran Alavina, doutorando do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da USP, publicado por Outras Palavras, 19-09-2018.
O avanço da corrida presidencial e a chegada de uma disputa aberta no seio do campo progressista (Haddad versus Ciro) revela o labirinto que o PT montou para si mesmo e, por conseguinte, para boa parte da esquerda nestas eleições. A indecisão, muitas vezes precoce, que é possível observar nas dúvidas entre os eleitores que não sabem para quem deve ir o dito voto útil — se Ciro ou Haddad — é já uma expressão dos meandros deste labirinto.
De fato, esta precocidade do famigerado “voto útil” já revela por si só a pobreza das condições atuais da vida política nacional. Ela revela ainda que os eleitores — falo aqui do campo progressista — estão, por antecipação, dispostos a abandonar seu candidato preferido, em favor de uma decisão secamente pragmática. Se do outro lado o ódio parece ser o afeto político mais forte, do lado de cá o temor é o afeto político da vez. Acuados em suas próprias convicções, aqueles que não se consideram reacionários, se veem obrigados a fazer de sua escolha um não escolha, posto que já aceitam não votar em quem querem de fato — mas naquele em que a condição obriga por necessidade que lhes ultrapassa. Vê-se, pois, que já não se trata de resistência ao golpe, pois a resistência nunca se move pelo temor. Aí já se encontra uma primeira derrota que as forças protofascistas nos impõem. Nossa possível vitória não será uma vitória completa, já iniciamos perdendo.
Do vislumbre desta conjuntura, ainda no ano passado nasceu aquela aspiração, quase ingênua, diga-se de passagem, de uma coalização que unisse todas as forças que se consideram à esquerda no campo político. Ingênua, uma vez que esta unidade sempre anunciada como urgente, nunca se realiza. E, agora, além de não se realizar pode mesmo chegar ao fratricídio.
Observando com certo cuidado os caminhos que nos trouxeram até aqui, pode-se afirmar que a unidade do campo progressista não se realizou por uma série de fatores, um dos principais, além dos interesses personalistas, foi o problema de com quem ficaria o lugar de comando dessa pretensa unidade à esquerda. Na medida em que as forças são diferentes em tamanho, mas equivalentes em importância, se abriria uma disputa pela hegemonia. Cálculo político dos mais simples: o que se ganharia e o que se perderia; quem se enfraqueceria e quem se fortaleceria com esta unidade. Diante dos números desse cálculo, o PT, por antecipação, e nem por um instante, pensou em abandonar o posto hegemônico. Uma certa arrogância de que se vê capaz de seguir sozinho e que se considera naturalmente a cabeça desta unidade.
O PT julgou que perder a hegemonia — e o lugar privilegiado de fala em nome da esquerda — equivaleria a enfraquecer a justa e devida defesa de Lula contra os mecanismos persecutórios que o levaram ao cárcere físico. O temor da perda da hegemonia leva então o PT a uma de suas contradições mais visíveis: a oscilação ente o discurso purista e o discurso do especialista de esquerda da realpolitik.
Agor, que, pela primeira vez em mais de uma década, a burocracia petista se vê instada a disputar com um concorrente real os votos do campo progressista e da centro-esquerda, a máquina partidária começa a apelar uma vez mais para o discurso purista e da legitimidade de fala e ação. A crítica de que Ciro Gomes não é um legitimo candidato da esquerda será usada à exaustão pelos petistas mais imunes a uma autocrítica. Todavia, se contra o discurso purista, apresentarmos as associações contraditórias do PT (Haddad abraçado com Eunício Oliveira no Ceará e com Renan Filho em Alagoas, para ficarmos nos exemplos mais próximos em que o PT anula seu próprio discurso do golpe) nossos amigos petistas dirão, sem medo de serem felizes, que são necessidades da realpolitik, governabilidade e todo aquele rosário de escusas que já conhecemos. Ora, se isto retira toda e qualquer aspiração purista e de autenticidade que o petismo reclama para si, cai por terra a justificação da hegemonia. Em outras palavras, pode o petismo atirar pedras em Ciro, pela escolha de sua vice, ou por seu irmão Cid Gomes também estar no mesmo palanque que Eunício Oliveira?
A manutenção da hegemonia se expressa, ainda, na incapacidade da burocracia petista em realizar uma crítica sincera dos seus erros. Como a autocrítica não é feita, pelo medo da perda da hegemonia, o partido não é capaz de nos apontar nada de novo.
A cereja do bolo desta incapacidade atávica em que o petismo se meteu está no mote da campanha: O Brasil feliz de novo. O “de novo” esconde a incapacidade de apresentar algo realmente novo, daí o apelo ao passado recente como se o PT fosse capaz de operar novamente tudo aquilo que de bom realizou antes e tudo aquilo que poderia ter feito e não fez. É o que nos é prometido, e caso não aceitemos os questionáveis abraços de Haddad nos fiadores do impeachment, logo nos mostram ou os erros e percalços de Ciro, ou a necessidade do tal “voto útil”: numa ação quase desesperada de convencimento mecânico. Mas porque o PT assim começa a agir?
Chegamos, então, ao otimismo ingênuo e à tutela como os muros do labirinto. Como o temor é o afeto político que de fato reina entre nós, o único otimismo capaz de ser esboçado é ingênuo e até certo ponto desalentado. Ingênuo, na hipótese de que não se trata de cinismo, posto que nossas condições políticas são outras, a conciliação de antes não é mais possível de ser refeita. Para que o PT pudesse se apresentar de fato credenciado a repetir o que fez e realizar o que não fez era preciso que estivéssemos nas mesmas condições de 18 anos atrás e que o partido tivesse, de fato, apreendido com seus erros se reformulando. Porém, como esta reformulação depende de uma autocrítica sincera e esta não aconteceu por medo da perda da hegemonia, restou então propor a repetição por meio da tutela.
Como se apresenta Haddad, senão como um tutelado, ainda mais após a perda da eleição municipal. É tutelado não só pelo caráter discricionário de sua escolha, mas pelo fato de que carisma não se herda, tal como não é certo que herde os votos de Lula. Quanto mais difícil for a transferência dos votos maior será a força da tutela. Tão tutelado quanto o eleitor do campo progressista na perspectiva do tal voto útil: o candidato petista é tutelado pelo temor da perda da hegemonia; o eleitor do campo progressista tutelado pelo temor da real ameaça fascista.
Neste labirinto, uma coisa é certa, não há vencedores. A única maneira de sair dele não é dar longas voltas pelos muros até encontrar uma saída, mas colocá-lo abaixo. Como fazê-lo? A primeira ação de derrubada é não se deixar levar pelo discurso petista calcado no temor da perda da hegemonia. Se o PT perder a hegemonia no campo progressista não será o fim do mundo, mas talvez a única maneira do partido de fato se reformular, estabelecendo uma autocrítica sincera, pois lhe restará reconhecer que não é mais possível caminhar entre o discurso purista e as práticas de especialista de esquerda da realpolitik.
É evidente, que a esta altura do texto, muitos leitores dirão, já quase no ataque ao autor: “mais com uma esquerda dessa, quem precisa de direita?”. Ora, os que assim pensam já estão completamente imersos nos mecanismos da lógica hegemônica do PT, incapazes de se abriram à crítica já a desmerecem por antecipação, apelando para a lógica simplista: se fosse realmente dos nossos, se estivesse ao nosso lado não diria isso. Confundido, assim, tutela com lealdade. E antes que digam que eu sou cirista de carteirinha segue o link do texto com as minhas considerações sobre Ciro Gomes.
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Hegemonismo, doença senil da esquerda - Instituto Humanitas Unisinos - IHU