18 Setembro 2018
“Nesta festa de Nossa Senhora das Dores, recordemos de todos aqueles que, nas nossas comunidades, nas nossas sociedades, clamam de dor, de raiva e de frustração. A lista é longa. A sua angústia é intensa. Mas não é longa demais nem intensa demais para a obra de salvação de Cristo.”
A afirmação é do cardeal Vincent Nichols, arcebispo de Westminster e primaz da Igreja da Inglaterra, em homilia na missa celebrada nesse sábado, 15 de setembro, festa de Nossa Senhor das Dores, na capela do Seminário de Poznán, durante a Assembleia Plenária dos presidentes das Conferências Episcopais da Europa (CCEE). A tradução é de Moisés Sbardelotto.
No fim de agosto, há poucas semanas, o Papa Francisco se dirigiu à Irlanda por ocasião do Encontro Mundial das Famílias, em Dublin. Eu tive o privilégio de viver uma grande parte desse evento.
Foi notável, ao contrário de qualquer outra visita papal, para o meu conhecimento.
Como é habitual, os dias que antecederam a chegada do Santo Padre foram repletos de notícias negativas na mídia sobre os problemas que afligem a Igreja, sobre a hostilidade que esperava pelo papa, sobre o no declínio da prática de fé que caracteriza a Europa ocidental.
Na minha experiência de outras visitas papais, como a do Papa Bento XVI ao Reino Unido em 2010, essas vozes negativas deram lugar a uma expressão positiva e calorosa de boas-vindas ao papa e de alegria na fé da Igreja.
Na Irlanda, isso não aconteceu. A voz enfurecida dos sobreviventes de abuso e crueldade infantis continuaram sendo ouvidas. A mídia continuou a sua concentração nos erros do passado, e a crítica à Igreja, especialmente a nós, bispos, foi constante. As notícias da Pensilvânia aumentaram o desânimo e as críticas, assim como os fatos em torno do cardeal McCarrick. Foi perturbador, para dizer o mínimo.
Pouco a pouco, uma verdade importante assumiu contornos mais nítidos: eu estava errado quando esperava que a voz da alegria e da acolhida vencesse as vozes da raiva e da condenação. Ambas as vozes devem ser ouvidas. Ambas devem encontrar um eco nos nossos corações. Ambas são a voz de Jesus, que clama na sua Igreja e no mundo de hoje.
De modo verdadeiramente extraordinário, o Papa Francisco abraçou ambas as vozes. De algum modo, na sua pessoa, ele as manteve juntos, prestando atenção em cada uma, respondendo a cada uma, sendo autêntico em relação a cada uma dessas vozes. Foi um testemunho extraordinário, um testemunho da profunda paz da sua alma, que certamente está firmemente enraizada no Senhor.
De nossa parte, reconhecemos imediatamente a voz do Senhor naqueles que proclamam a sua alegria no dom da fé e na Igreja. A sua maravilhosa acolhida ao Sucessor de São Pedro, na pessoa do Santo Padre, é uma expressão da sua fé em Nosso Senhor, que – como sabem – está sempre ao lado da sua Igreja. N’Ele, eles colocaram novamente a sua confiança. Através d’Ele, com Ele e n’Ele, eles louvam o seu Pai celeste e se esforçam para viver a sua fé todos os dias.
Em tudo isso, a voz dos fiéis é sempre um grande testemunho, não só aos olhos do mundo, mas também para nós, seus pastores.
Mas a segunda voz também deve ser ouvida. É a voz do sofrimento, da raiva, da condenação. É a voz daqueles que sofreram abusos e maus-tratos dentro da comunidade da Igreja, a voz daqueles que nós, pastores, desapontamos por não termos conseguido protegê-los dos lobos no nosso meio. É a voz de muitos que sofrem, cuja necessidade nós reconhecemos e a quem queremos ajudar no espírito de solidariedade. Essa é também a voz de Jesus. Se tentarmos evitar essa voz, recusando-nos a escutá-la com um coração aberto, então estaremos fechando nossos corações ao próprio Senhor. Quando essa voz for realmente ouvida dentro da família da Igreja, nós também começaremos a conhecer esse sofrimento, tentando tomar um pouco do seu fardo e carregando agora o peso da nossa vergonha e da nossa dor.
Em tudo isso, e para todos aqueles que sofrem, Maria é a nossa Mãe das Dores. Hoje, ouvimos como ela estava aos pés da cruz, naquele lugar de enorme dor. Ela não vacilou. Ela queria estar perto d’Aquele que estava suportando a dor de todos os pecados. Ela abriu o seu coração que estava transpassado. E aqui está algo extraordinário: é precisamente nesse lugar de dor e de sofrimento que nasce a Igreja: “Mulher, eis o teu filho”. “Eis a tua mãe!”
No entanto, João não era o filho de Maria, e Maria não era a sua mãe. Não na ordem da natureza, da carne e do sangue. Mas ali, aos pés da cruz, criam-se novos laços, novas relações que vão além da carne e do sangue.
Agora, verdadeiramente, em Cristo, Maria é nossa mãe, João é nosso irmão. De fato, em Jesus somos uma única família, uma família forjada na dor, face a face com o pecado, na superação desse mal, uma família em que se ouve a voz do sofrimento ao seu lado, misturada com a voz da alegria e da felicidade.
A Carta aos Hebreus também nos leva para esse mesmo lugar: uma nova vida que nasce do fato de se encontrar diante do mal que foi feito, do mal que nós fizemos. Há um só que tem o poder de nos salvar e que veio ao nosso meio como o Cristo, aquele que, em nosso nome, oferece orações e súplicas, em voz alta e com lágrimas silenciosas.
Hoje, nesta festa de Nossa Senhora das Dores, recordemos de todos aqueles que, nas nossas comunidades, nas nossas sociedades, clamam de dor, de raiva e de frustração. A lista é longa. A sua angústia é intensa. Mas não é longa demais nem intensa demais para a obra de salvação de Cristo.
Hoje, decidamo-nos a abrir os nossos corações não só à alegre voz dos fiéis, mas também à raiva sofrida daqueles que querem que os escutemos; a ouvir de novo, a escutar de novo, com grande discernimento; a prestar atenção e a aprender. Então, saberemos como responder melhor. Deles é a voz de Cristo, clamando a nós do deserto. A ti, Senhor, abrimos os nossos corações. Que o nosso clamor chegue a ti. Amém.
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Cardeal de Londres: ''As vozes da raiva e da condenação das vítimas de abuso também são a voz de Jesus, que clama na sua Igreja e no mundo de hoje'' - Instituto Humanitas Unisinos - IHU