10 Agosto 2018
“O cadáver de Raynéia, a garota que pagava seus estudos vendendo brigadeiros, já foi sepultado em sua terra natal de Pernambuco”, lamenta Sergio Ramírez, escritor premiado e protagonista da revolução nicaraguense, quando encabeçou o Grupo dos Doze, formado por intelectuais, empresários, sacerdotes e dirigentes que apoiaram a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), ao narrar o trágico desfecho da história de Raynéia Gabrielle da Costa Lima Rocha, estudante de medicina brasileira que se juntou ao grande número de mortos pela repressão e violência vivida na Nicarágua, em artigo publicado por La Jornada, 09-08-2018. A tradução é do Cepat.
A localidade de Lomas de Monserrat até há pouco fervia de paramilitares encapuzados. Muito perto dali se encontra a Universidade Nacional Autónoma, tomada por estudantes desde os inícios do protesto cívico que sacode o país. Sempre foi iminente um ataque para os desalojar, o que aconteceu, enfim, na tarde de sexta-feira, 13 de julho.
Os estudantes correram para se refugiar na vizinha Igreja da Divina Misericórdia, e os disparos incessantes continuaram até a madrugada do sábado, dia 14, agora contra a igreja, deixando dois mortos.
Os encapuzados continuaram em Lomas de Monserrat, após a operação limpeza contra a universidade, e no dia 23 de julho ainda estavam ali.
Nessa noite, Raynéia da Costa, de 31 anos, originária de Pernambuco, estudante do sexto ano de medicina, após terminar seu turno como estagiária em um hospital, compareceu junto com seu noivo, Harnet Lara, em uma festa nesse local.
Bela como uma modelo de revista de modas, como se vê nas fotografias de seu mural no Facebook, havia chegado a Manágua seis anos atrás, recém-casada com um nicaraguense de quem depois se separou.
Para sustentar seus estudos, fabricava brigadeiros, trufas de chocolate e coco, e quando seus companheiros a viam se aproximar sorridente oferecendo sua bandeja de doces, assobiavam em sua homenagem Garota de Ipanema.
Após a festa, perto da meia-noite, os noivos abandonavam o local: ela à frente conduzindo seu carro, um pequeno Suzuki, e ele atrás no volante do seu. Ao escutar disparos, Harnet acelerou e a encontrou sentada no asfalto, banhada em sangue. Já ferida, havia conseguido se deslizar para fora do veículo.
Ao perceber três paramilitares encapuzados, com as armas em posição, se aproximou com as mãos para o alto. Carregou-a nos braços para o seu carro, sem que os mascarados o impedissem, para a conduzir ao hospital mais próximo. É o que relatou aos estagiários que a receberam na sala de emergências, alguns deles companheiros de sala de Raynéia.
Foi tudo inútil. Havia recebido um disparo lateral de alto calibre, na altura das costelas, que lhe afetou o coração, o diafragma e parte do fígado.
Agentes da polícia se apresentaram no hospital, em busca do noivo, para o levar para reconstruir a cena, mas os médicos o impediram devido a seu estado de choque. Só recebeu alta no dia seguinte.
A polícia acusou primeiro a um guarda da segurança do local, ao qual não identificou. Mas, depois, apontou Pierson Gutiérrez, de 42 anos de idade, oficial do Exército até 2009, e professor de taekwondo, de quem foi apreendida uma carabina M4, de uso militar.
Gutiérrez, militante do partido oficial, é empregado da Petronic, que funciona sob o guarda-chuva da Albanisa, a empresa responsável pelo comércio do petróleo venezuelano. Possui seus escritórios em Lomas de Monserrat.
Desde que abandonou o hospital, não se sabe de Harnet. A terra o tragou. O Susuki da vítima desapareceu da cena do crime. Também desapareceram os paramilitares de Lomas de Monserrat. As câmeras de vigilância da vizinhança foram desmontadas. O acusado foi apresentado sub-repticiamente nos tribunais no dia primeiro de agosto, quando é feriado obrigatório, pois se celebra o padroeiro de Manágua, São Domingos de Gusmão. A audiência aconteceu a portas fechadas.
Os romances ruins sempre resultam incongruentes. E mal contados. No texto de acusação, a promotoria começa culpando a vítima por sua própria morte ao dirigir de forma descontrolada e com atitude suspeita. E em relação ao executor, explica que vinha de procurar, naquelas horas, um local para abrir uma escola de taekwondo. Recordou-se no caminho que conhecia alguns guardas da segurança trabalhando em Lomas de Monserrat, e foi lhes oferecer capacitação em defesa pessoal e uso de armas de fogo. Eram, então, 10h40 da noite.
Seus conhecidos eram dois, a serviço da Displuton S.A., uma empresa de segurança também abrigada pelo guarda-chuva da Albanisa, cada um deles armados com uma escopeta calibre 12. Desse modo, completa-se o trio de paramilitares mencionados por Harnet.
É então quando fica selada a sorte de Raynéia. Devido ao comportamento e movimento errático do veículo, os guardas sentiam que suas vidas estavam em risco, disse, complacente, a promotoria.
Pierson, diligente em proteger seus amigos, pegou em seu carro a carabina M4, colocou-se atrás de um poste de iluminação e disparou contra o Suzuki.
A promotoria acusa o executor por homicídio, que merece uma pena de 15 anos, menor que a de assassinato. A defesa ainda pede uma diminuição para 10 anos, com a qual logo o assassino estaria livre, digamos, por razões de saúde, como é comum quando se trata destes julgamentos arranjados.
Enquanto isso, o cadáver de Raynéia, a garota que pagava seus estudos vendendo brigadeiros, já foi sepultado em sua terra natal de Pernambuco.
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Nicarágua. A garota de Pernambuco. Artigo de Sergio Ramírez - Instituto Humanitas Unisinos - IHU