20 Julho 2018
“Este dia 19 de julho de 2018 marca 39 anos da derrubada da sangrenta dinastia dos Somoza”, escreve o jornalista e escritor Eric Nepomuceno.
“Mas, a verdade é que não há muito o que celebrar na pequena e tão dolorida Nicarágua. O país vive sob outra dinastia, a que agora é capitaneada pelo comandante Daniel Ortega e sua senhora esposa”, lamenta.
O artigo é de Eric Nepumoceno, publicado por La Jornada, 19-07-2018. A tradução é do Cepat.
Dia 19 de julho de 1979 foi uma quinta-feira. Em Paris, onde eu estava, era verão. Na Nicarágua, um inverno de mentira: em Manágua, como definiu Eduardo Galeano, o verão é eterno. É a única cidade do mundo, dizia, onde as mães dizem aos filhos: toma logo a sopa, antes que fique quente.
O grande-grande jornalista uruguaio Ernesto González Bermejo havia convidado, Martha e eu, para um jantar com Régis Debray, em seu apartamento de exilado parisiense. Contudo, Debray nunca apareceu: havia voado para Manágua, no dia anterior, informado de que a revolução sandinista havia triunfado.
E foi longe, em Paris, pela televisão, que os três, Ernesto, Martha e eu, vimos como os sandinistas tomavam Manágua e como o quinteto que integrava a junta de governo assumia o poder.
Dos cinco, um era, digamos, civil - o único que eu conhecia -, Sergio Ramírez, escritor do esplêndido livro de contos Charles Atlas también muere.
Dos outros quatro, três representavam um ramo da guerrilha armada, e o quarto, Tomás Borge, era o único sobrevivente dos fundadores da Frente Sandinista de Libertação Nacional, em um já então distante 1961, sob a condução de Carlos Fonseca Amador.
Seis meses depois, voltei à Nicarágua que eu havia conhecido em 1975, mas a verdade é que já era outro país, outro tempo, e a pequena e bela Nicarágua, de gente suave e cordial, vivia o início de uma nova era, de inovações impensadas.
Recordo que uma das primeiras medidas da revolução sandinista foi suspender o semestre letivo. Assim, aqueles que estavam em determinado grau escolar foram enviados ao interior, para ajudar a alfabetizar.
Ou seja, uma parte do país, a letrada, foi enviada a descobrir outro país, o dos iletrados. E a Nicarágua finalmente se conheceu.
Julio Cortázar, certa vez, acompanhou uma dessas incursões. Recordarei para sempre seus ares de assombro e beleza quando perguntou a uma jovenzinha, que tinha uns 12 ou 14 anos, o que ela mais gostava na escola onde, enfim, aprendia a ler e escrever. A menina o olhou, abriu um sorriso luminoso, e respondeu: Os sapatos. É que nunca havia tido um.
Minhas recordações daqueles tempos se sucedem e se somam, e todas apontam para meus anos jovens, para tempos de fé e esperança.
Em 1990, após uma longuíssima temporada de cerco implacável - imposto pelo governo de Ronald Reagan e a indiferença da América Latina, com as solitárias exceções de Cuba e México -, os sandinistas foram derrotados nas urnas.
A guerra civil iniciada pela ‘contra’, como eram chamados os contrarrevolucionários armados, financiados e treinados por Washington, corroeu a pequena, bela e sofrida Nicarágua.
Venceu Violeta Barrios de Chamorro, viúva do jornalista Joaquín Chamorro, que soube fazer uma oposição tão corajosa como digna à dinastia dos Somoza, e que lhe custou a vida.
Foi o primeiro grande legado da revolução sandinista: a democracia. Souberam perder com aparente dignidade.
E digo aparente, porque a verdade não foi exatamente assim, como se veria depois.
Este dia 19 de julho de 2018 marca 39 anos da derrubada da sangrenta dinastia dos Somoza.
Mas, a verdade é que não há muito o que celebrar na pequena e tão dolorida Nicarágua. O país vive sob outra dinastia, a que agora é capitaneada pelo comandante Daniel Ortega e sua senhora esposa.
As conquistas sociais alcançadas nos primeiros anos da então revolução sandinista sofreram um retrocesso brutal, dramático.
É espantoso ver como um dos líderes daquela revolução se transformou: de libertador em repressor, de desbravador de caminhos em verdugo de esperanças e realidades. De negócios mais que nebulosos com os chineses para construir um canal que unirá a corrupção mais deslavada à corrupção mais evidente, ou da regressão mais brutal em legislações inovadoras e necessárias, a Nicarágua é hoje um país cuja memória de conquistas alcançadas há alguns poucos anos é mil vezes melhor que o presente.
Sim, concordo, a revolução sandinista fez o que pôde, e se não fez mais foi porque um poder mil vezes mais poderoso a impediu, por fora e por dentro, mas seu final-final traição foi a traição de alguns de seus construtores, que ao redor do principal verdugo, Daniel Ortega, liquidaram seus últimos vestígios.
A pequena Nicarágua está à beira da catástrofe.
Trago nos olhos a alegria com que vimos, há exatos 39 anos, em uma distante e calorosa Paris, o triunfo de uma revolução que nasceu limpa, jovem e justa, e trago na alma a dor de constatar como terminou. Hoje, quinta-feira, 19 de julho de 2018, há muito para recordar e nada para celebrar. Nada.
Se até o então comandante guerrilheiro Humberto Ortega, irmão mais velho do dinástico Daniel, pede que renuncie e convoque eleições antecipadas, e não é ouvido, bom, bom, é preciso recordar Ernesto González Bermejo, em uma Paris distante. E lamentar sua ausência.
Porque daquela data histórica não restaram mais que recordações. Recordações traídas.
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19 de julho, data amarga para a Nicarágua - Instituto Humanitas Unisinos - IHU