20 Julho 2018
"Para ser claro, esse tipo de comportamento abusivo não se limita aos seminários diocesanos. As ordens religiosas também são lugares onde os homens podem abusar do poder, mesmo de formas sexuais. Também, para ser claro, pelo menos na minha experiência, essas situações não são comuns, nem na vida diocesana nem na vida religiosa, e estão longe de ser 'desenfreadas'", escreve James Martin S.J., autor do livro Building a Bridge, em artigo publicado por America, 16-07-2018. A tradução é de Victor D. Thiesen.
As revelações dos repugnantes abusos de seminaristas e jovens sacerdotes católicos ao longo de muito tempo tornam essa leitura verdadeiramente perturbadora. Nos últimos anos, ouvi histórias sobre a casa de veraneio do cardeal (então bispo e arcebispo) McCarrick, onde ele convidava (ou subornava, ou forçava) seminaristas a compartilharem uma cama com ele. Além disso, tinham que massageá-lo e chamá-lo de “tio Ted”. Na época eram rumores infundados, e eu não conhecia ninguém com informações em primeira mão. (Caso contrário, eu teria relatado).
Só para constar, McCarrick também era alguém que eu, como muitos católicos norte-americanos, admirava tanto por seu trabalho pastoral, quanto pela defesa da justiça social. Sempre gentil, tanto comigo quanto com todos ao seu redor.
Em uma peregrinação a Lourdes, uma década atrás, observei alguém importuná-lo, durante um café da manhã, sobre um belo ponto de teologia por quase meia hora. McCarrick tratou a pessoa com tanta paciência, dignidade e cuidado, enquanto ela continuava a repreendê-lo, que depois lhe perguntei como era capaz de ser assim.
Esse caso mostra a complexidade mistificadora do seu lado humano. De maneira alguma isso desculpa o que ele fez aos jovens seminaristas e sacerdotes.
Então, como isso pôde acontecer?
Aqui, quero me concentrar em um aspecto particular: a maneira como o sigilo na Igreja encobre casos do que podemos chamar de “abuso de adultos”, distinto de “abuso infantil”. No caso de abuso infantil, pelo que entendi (eu não sou psiquiatra ou psicólogo), a criança maltratada pode ser muito jovem, confusa ou ter medo de falar sobre o assunto, o que explica por que muitas vezes se veem relatos que são expostos décadas depois do ocorrido.
Porém, como poderiam os seminaristas e padres adultos não relatarem essas coisas? Da mesma forma, como poderia o bispo McCarrick ganhar espaço com tanta facilidade? Aqui vou oferecer apenas algumas explicações. Isso não pretende ser uma análise exaustiva.
Para ser claro, esse tipo de comportamento abusivo não se limita aos seminários diocesanos. As ordens religiosas também são lugares onde os homens podem abusar do poder, mesmo de formas sexuais. Também, para ser claro, pelo menos na minha experiência, essas situações não são comuns, nem na vida diocesana nem na vida religiosa, e estão longe de ser “desenfreadas” - uma palavra que um repórter usou numa conversa comigo recentemente. O caso de McCarrick deveria assustar a todos, mas isso não acontece.
Agora, como os seminaristas e os padres poderiam relatar essas coisas?
Primeiro, alguns relataram, mas foram ignorados. O Times informou que Boniface Ramsey, o respeitado padre dominicano, relatou esses incidentes ao núncio papal (o oficial encarregado de recomendar nomeações episcopais ao Vaticano), mas foi ignorado. Por quê? Por várias razões. Como vimos na crise de abuso infantil do clero, a tendência trágica era que os líderes da Igreja confiassem nas pessoas que já conheciam. O bispo McCarrick pode ser mais conhecido do núncio do que o padre Ramsey. Além disso, na época, esses tipos de comportamentos malignos eram frequentemente considerados "problemas morais", isto é, pecados pelos quais alguém poderia pedir desculpas e ser perdoado (muitas vezes há uma ênfase grosseiramente equivocada no “perdão” em casos de abuso). Finalmente, pode ter havido um desconforto ou repugnância com o aspecto homossexual, e portanto, um desejo de que as acusações simplesmente “desaparecessem”. Ignorar relatos deste tipo de abuso é um pecado.
Segundo. Pode ter havido um enorme constrangimento entre os seminaristas e padres que foram forçados a dormir com McCarrick. Talvez a vergonha de isso acontecer com uma vítima adulta - que poderia ter sido mais fisicamente capaz de "se defender" dos avanços - é maior do que a de uma criança indefesa. O abuso nunca é culpa da pessoa que é maltratada, mas, mesmo assim, a vergonha pode persistir. "Por que eles não deram um soco no rosto dele quando ele disse aquilo?", é uma pergunta que ouço com frequência sobre esses casos. Da mesma forma, pode haver um sentimento de não ser "homem suficiente" para resistir. Finalmente, se as vítimas forem gays, elas podem sentir vergonha de sua própria sexualidade. Juntos, esses fatores contribuem para mais constrangimento.
Em terceiro lugar, alguns desses ex-seminaristas e jovens padres nessas dioceses ainda podem estar em ministério pastoral ativo. Trazer detalhes desagradáveis sobre alguém poderoso pode fazer com que eles temam ser vistos como “criadores de problemas” ou “queixosos” em suas dioceses, ou entre seus irmãos padres. McCarrick também era um dos homens mais poderosos da Igreja dos EUA, bispo de uma das principais sedes da Igreja universal e amigo pessoal de vários Papas. O que dizer algo sobre ele poderia fazer de sua carreira?
Da mesma forma, muitos ex-seminaristas podem ser difíceis de se rastrear e não querem participar do episódio, pois também se sentem envergonhados. Isso torna os relatórios do Times ainda mais importantes.
Todas essas explicações não são desculpas. E, como eu disse, até onde eu sei, os tipos de casos notórios como o de McCarrick não são comuns.
Isso me leva à segunda questão: como poderia ter subido tão rapidamente na hierarquia da Igreja com estas acusações feitas contra ele?
Primeiro. A tendência humana é a de aceitar a palavra das pessoas que conhece (a mesma tendência contribuiu para a crise do abuso infantil: tomar a palavra do padre sobre a dos pais).
Segundo, a tendência histórica de alguns líderes da Igreja em ver esses abusos principalmente como “problemas morais”, onde um pedido de desculpas e uma promessa de se arrepender e consertar os caminhos é suficiente.
Em terceiro lugar, o desconforto em lidar com qualquer coisa que se assemelhe à homossexualidade.
Quarto, a relutância de alguns membros da hierarquia da Igreja em lidar com a sexualidade de qualquer forma.
Quinto, o talento, o intelecto e a ética de trabalho do bispo McCarrick fizeram dele um candidato “desejável” para promoção à Arquidiocese de Newark e depois a Washington, D.C.
Mas, finalmente, a resposta é “pecado”. Como eu disse, esta não é uma análise completa, mas qualquer análise deve usar essa palavra. Há muitos pecados: os pecados dos núncios e de todos os líderes da Igreja que desconsideraram, minimizaram ou simplesmente ignoraram esses relatos, os pecados de todos que estavam no poder, que fecharam os olhos aos muitos anos de abuso de poder, e, finalmente, os pecados do próprio McCarrick, que não se tornou um líder fiel, mas um abusivo.
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James Martin: como o caso McCarrick pôde acontecer? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU