30 Mai 2018
"O que deveria fazer a igreja, privada das estruturas de poder da cristandade? Se precisarmos superar um milênio e meio em que as coisas foram feitas de uma única maneira, como poderemos conseguir? Onde podemos encontrar ajuda e modelos alternativos? É provável que a resposta, para o século XXI, possa ser encontrada na Ásia", escreve William Grimm, padre, editor da ucanews.com, 02-05-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
Quando eu tinha 16 anos, um professor nos fez ler algumas obras que não faziam parte do currículo escolar. Entre estas estavam as Confissões de Agostinho e a Canção de Rolando, um poema épico do século XI (ou talvez antes), escrito por um anônimo francês.
A famosa frase de Agostinho, "Tu nos fizeste para Ti, Senhor, e o nosso coração não encontra a paz até que descansemos em ti", destacava-se entre as linhas. Eu não sabia que era famosa, eu só sabia que me agradava. Afinal, o "coração inquieto" podia valer como definição da adolescência, e aquele verso foi útil para dirigir a minha vida para a esperança.
A Canção de Rolando narra sobre os cristãos na época de Carlos Magno (742-814), e da guerra nos Pirineus contra os mouros (designados com termo pagãos). Os cavaleiros de Carlos Magno derrotam completamente os inimigos, tomam suas cidades e "conduzem os pagãos à pia batismal" (já se passaram mais de cinquenta anos, e ainda me lembro daquele verso). Qualquer um que se recusasse a ser batizado era morto ou até mesmo queimado.
O nosso professor não colocava em confronto santo Agostinho e Rolando, mas eu, o único cristão presente na aula, sentia-me atraído por ambos porque de alguma forma me tocavam de perto. Tomando-os em consideração juntos, eu percebi que algo muito errado tinha acontecido entre o século IV e a Idade Média: o cristianismo tinha se transformado em cristandade.
Ao invés de ser um caminho para encontrar a paz do coração em Deus, a igreja havia se tornado um poder institucionalizado - sinônimo de opressão, medo e privilégio – que exigia subjugação ao invés de fé. Se eu fosse outra pessoa, essa descoberta poderia ter sido suficiente para me fazer escolher um percurso de saída da igreja. Mas, graças às palavras de Santo Agostinho, eu sabia que a fé era algo maior, que tendia para a paz do coração.
Desde que eu percebi a transição para a cristandade, tornei-me hipersensível às suas manifestações na vida da comunidade cristã do passado e dos dias de hoje. Não há escapatória. Considerar a igreja mais importante que Cristo e sua palavra, ser obcecados com o poder sobre os indivíduos e as comunidades, desrespeitar os direitos humanos, estar dispostos a sacrificar as pessoas para o bem da organização ou por ideias e regras abstratas, manter um sistema de castas que marca distinções entre os filhos de Deus de acordo com o papel desempenhado na igreja: todos estes são traços característicos do regime de cristandade. [...]
Há tempo chegou a hora para a igreja por um fim àquele câncer crescente que dificulta a missão do evangelho, a missão de ser a paz do coração para o mundo. A igreja deveria ocupar-se de Deus, e não a si mesma. É o mundo, mais do que a igreja, que está libertando o cristianismo da cristandade, embora o catolicismo, a partir do Concílio Vaticano II, já tenha tentando alguns passos incertos nessa direção.
A afirmação da autonomia espiritual, ética e intelectual por indivíduos e sociedades - com um êxodo concomitante da cristandade nas suas formas católica, ortodoxa e protestante - é talvez um prenúncio da morte da cristandade. Finalmente!
O que deveria fazer a igreja, privada das estruturas de poder da cristandade? Se precisarmos superar um milênio e meio em que as coisas foram feitas de uma única maneira, como poderemos conseguir? Onde podemos encontrar ajuda e modelos alternativos? É provável que a resposta, para o século XXI, possa ser encontrada na Ásia. [...]
Exceto pela imposição forçada da cristandade em algumas situações específicas (Filipinas - além da América Latina – por parte da Espanha), a Igreja na Ásia está relativamente a salvo desse infortúnio. Quando as outras potências europeias quiseram explorar a Ásia, o fizeram principalmente em nome de Mamon, e não tanto para a glória da igreja. Os ingleses no Sul da Ásia, os franceses no Sudeste do continente e os holandeses na Indonésia estavam mais interessados em lucros do que em almas.
Essa falta tanto de capacidade como de vontade - política, militar, filosófica e espiritual - para impor a cristandade na Ásia significa que sua influência aqui é, em sua maior parte, marginal. Isso especialmente em lugares como o Japão, que nunca foi sujeito a potências ocidentais e onde o batismo nunca representou uma vantagem econômica ou social, como forma de se aproximar dos dominadores e mercadores europeus. A escolha de ser batizado era, embora em graus diversos, e só às vezes, inteiramente, um ato livre de fé motivado pelo desejo de encontrar consolo em Deus. E essa escolha era e é feita em um contexto de minoria sem poderes: não existe nenhuma pressão social que force para se tornar cristãos. Pelo contrário, no máximo, a solicitação é em sentido contrário: para não realizar aquele ato radical que é o batismo. Muitas vezes, até mesmo hoje, essa pressão se apresenta em forma de evidente perseguição.
Enquanto o secularismo está se tornando a atitude religiosa dominante no Ocidente, é provável que os cristãos acabem sendo mais semelhantes àqueles da Ásia. Sem apoios sociais e culturais, sem incentivos ou mesmo expectativa de um compromisso cristão, tal compromisso deve ser aprofundado ou vai acabar morrendo. Só a fé pessoal, e não a cristandade, poderá sustentá-lo.
O afluxo de missionários do Ocidente, que está prestes a extinguir-se, deve ser invertido. Isso não quer dizer continuar a atual prática de importação de sacerdotes da Ásia e da África para sustentar a instituição ocidental diante da diminuição do número de sacerdotes e religiosos/as. Isso significa abrir com humildade a igreja da já decrépita cristandade para permitir a entrada de modalidades asiáticas de ensinamento e até mesmo de comando. Será necessário abandonar o paternalismo e o racismo alimentados pela cristandade, aquela mentalidade pela qual a igreja ocidental é a verdadeira igreja, enquanto as outras igrejas são autênticas apenas enquanto refletirem aquela Ocidental. Por outro lado, os cristãos nas outras partes do mundo devem superar o sentimento de inferioridade que foi imposto a eles por não ser exemplos adequados de cristandade. Eles também devem rejeitar qualquer vestígio de cristandade que possa estragar o seu modo de ser Igreja.
Os cristãos asiáticos nos lembram que a igreja é uma comunidade de todos aqueles que escolheram seguir Cristo, tal como apresentado pelas Escrituras e pela tradição, e vivenciaram aquela fé na história, buscando, compartilhando e celebrando a paz do coração com o mundo e para ele. Essa busca e esse compartilhamento se concretizam em um serviço humilde, em um diálogo respeitoso e na abertura ao Espírito de Deus que opera fora dos limites da cristandade, e até mesmo do cristianismo. [...]
O Papa Francisco começou a trazer homens (e por enquanto só aqueles, não ainda mulheres) das margens da cristandade para a liderança da igreja. É um começo, mas há ainda muito caminho a percorrer. De qualquer forma, não podemos contar com os papas ou a administração central do mundo católico, em Roma, para romper as correntes da cristandade. Cada um de nós deve analisar a si mesmo e ao modo como vivemos a nossa fé, para entender como foi amplo e profundo o nosso envolvimento na cristandade. Depois, é preciso iniciar o longo e difícil processo de libertação daquele cativeiro.
Os cristãos da Ásia podem servir de modelo; uma paz crescente do coração será o sinal de que estamos conseguindo.
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O cristianismo asiático pode nos salvar do regime de cristandade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU