18 Abril 2018
Pode uma ilha ser considerada sujeito de direitos humanos? Na Bahia, uma população negra e empobrecida acha que sim. Ao fazê-lo, afasta-se do capitalismo — e se aproxima de Espinosa.
O artigo é de Boaventura de Sousa Santos, sociólogo, publicado por Outras Palavras, 17-04-2018.
A Ilha da Maré é uma ilha de 5.712 habitantes, mulheres e homens negros (93% da população declara-se “preta” ou “parda”, as designações usadas pela estatística oficial), localizada na Baía de Todos os Santos, pertencente ao município de Salvador. Parte da Ilha é um quilombo, terra para onde fugiram os escravos das plantações das redondezas em busca da liberdade. Os habitantes dedicam-se à pesca e à mariscagem e os seus manguezais constituem a peça central da economia local.
O seu riquíssimo ecossistema tem sido destruído desde os anos de 1960 pela poluição causada pelas indústrias e empresas multinacionais construídas em volta da zona de operação portuária do Complexo de Aratu, a poucos quilômetros da ilha. O problema assumiu nos últimos anos proporções de desastre ambiental e de calamidade de saúde. Ondas de fumaça residuais pestilentas expelidas sem filtros e trazidas pelo vento, carga e descarga nos navios de minérios e produtos químicos altamente tóxicos sem qualquer precaução acabando por se espalhar no ar (odores de enxofre e gases de amônia) e no mar onde também se faz a lavagem dos navios, tudo isto tem contribuído para que tanto a saúde como o modo de vida destas populações pobres venham sendo inexorável e paulatinamente destruídos.
Uma agência oficial tem denunciado a presença acentuada no solo e nas águas de oito contaminantes: arsênio, cádmio, chumbo, cobre, cromo, ferro, mercúrio e zinco. Vários tipos de cancro têm incidência muito superior à média e começam a atingir os mais jovens. O governo brasileiro tem-se recusado a fazer estudos epidemiológicos que possam estabelecer um nexo de causalidade entre a poluição e a doença. Medidas corretivas e preventivas estão previstas na lei, mas não há vontade política para as aplicar.
Estamos perante uma repugnante atuação de racismo ambiental pois, como disse certa vez um político, afinal, “é uma ilha de pretos”. Os imperativos do “desenvolvimento” têm total precedência sobre a saúde e o modo de vida das populações. Quanta lucidez entre os habitantes sobre o que lhes está a acontecer! Quanta raiva pelo sofrimento injusto! Quanta dignidade serena na decisão de não desistir e continuar a lutar! “Dói na alma tudo o que a gente sente, mas temos vontade de viver” (M.A., 58 anos).
Como sair deste inferno? E se a ilha em si mesma (os seus habitantes paisagens, manguezais, ecossistemas, cultura tradicional de pesca e mariscagem) fosse declarada como um sujeito de direitos humanos e fosse protegida enquanto tal? Uma utopia? Não, uma aposta arriscada e uma luta difícil, mas portadora de esperança realista. As mulheres e os homens da Ilha da Maré podem estar na linha da frente de uma nova concepção da natureza e dos direitos humanos que está a emergir em diferentes partes do mundo.
A sua luta pela vida digna e uma relação harmoniosa com a natureza é uma luta por todos nós, pela sobrevivência do planeta e da vida posta em causa pelo capitalismo selvagem do nosso tempo, apostado em concluir a predação indiscriminada dos recursos naturais iniciada pelo colonialismo histórico. Sendo uma luta por todos nós, tem de ser também uma luta de todos nós. É, pois, equivocado falar de solidariedade para com as mulheres da Ilha da Maré. Trata-se antes de nos juntarmos a elas nesta luta e correr os riscos que isso implica. Eis alguns dos passos deste itinerário exigente.
O pensamento ocidental cartesiano sobre a natureza é tão dominante quanto excepcional. Todas as culturas com que a expansão colonial europeia se encontrou a partir do século XVI tinham da natureza uma concepção mais próxima da de Espinosa do que da de Descartes: a natureza como ser vivo (a natura naturans) a que pertencemos e cujo bem estar é condição do nosso próprio bem estar; a natureza não nos pertence, nós é que pertencemos à natureza.
A dicotomia ocidental natureza-sociedade esconde uma hierarquia nos termos da qual tudo o que é natural ou está mais próximo da natureza é considerado inferior, incluindo os seres humanos, sejam eles mulheres ou negras e negros. Essa hierarquia justificou e continua a justificar a opressão, a exclusão social, a discriminação, em suma, o sofrimento injusto. Não poderemos salvar o planeta nem preservar a vida digna se não nos dispusermos a aprender com os excluídos e oprimidos; se não formos capazes de assumir que as mulheres da Ilha da Maré são as nossas mestras, as garantes do nosso futuro.
Graças à luta das populações mais excluídas pelo desenvolvimento capitalista (povos indígenas, afrodescendentes, mulheres, camponeses) está emergindo uma nova geração de direitos humanos centrada na ideia de que seres não humanos, mas essenciais à vida dos humanos, têm direitos humanos em nome próprio, com uma lógica específica e uma abrangência mais ampla que a dos seres humanos, sejam eles indivíduos ou coletividades. Pelo seu âmbito, pode considerar-se pioneiro neste domínio o artigo 71 da Constituição do Equador de 2008, um artigo vinculado à filosofia da natureza dos povos indígenas, natureza que para eles, longe de ser um recurso natural incondicionalmente disponível e apropriável, é a terra mãe (pachamama em quechua), origem e fundamento da vida e, por isso mesmo, centro de toda a ética de cuidado. Diz o art.71:
A natureza, ou Pacha Mama, onde se cria e realiza a vida, tem direito a que lhe seja integralmente respeitada a existência, a manutenção e regeneração dos seus ciclos vitais, bem como a sua estrutura, funções e processos evolutivos. Qualquer pessoa, comunidade, povo ou nacionalidade poderá exigir das autoridades públicas o cumprimento dos direitos da natureza. Os procedimentos para interpretar e aplicar tais direitos estarão de acordo com os princípios estabelecidos pela Constituição. O Estado incentivará as pessoas naturais e jurídicas, e bem assim os coletivos, a protegeram a natureza, e promoverá o respeito por todos os elementos que constituem um ecossistema.
Trata-se de um exemplo de grande alcance do que designo por sociologia das emergências. É sabido que este preceito constitucional tem sido sistematicamente desrespeitado na última década em nome do objetivo de sempre (desde o século XVII): os imperativos do desenvolvimento capitalista. Trata-se, no entanto, de uma inovação jurídica e constitucional que está inscrita na luta da humanidade porque corresponde a um espírito do tempo insurgente, anti-capitalista, anti-colonialista e anti-patriarcal que está a emergir nas margens das ideias e políticas dominantes, e que vai aflorando noutros lugares e noutros contextos.
O caso mais recente e notável é o da concessão de direitos humanos ao rio Whanganui (também chamado Te Awa Tupua), um rio sagrado para os povos indígenas Maori da Nova Zelândia porque considerado seu antepassado. Ao fim de 140 anos de negociações, o rio foi reconhecido pelo Estado como uma entidade viva que deve ser protegida de modo a garantir a continuidade da sua existência em plenitude. O ministro que conduziu as negociações, “as mais longas da história da Nova Zelândia”, afirmou no final delas: “Te Awa Tupua terá a sua própria identidade jurídica, com todos os direitos, deveres e responsabilidades de qualquer pessoa jurídica”. Reconhecendo a inovação jurídica e política, o ministro acrescentou: “A decisão de conceder personalidade jurídica a um rio é singular … e conforme à concepção que os iwi têm do rio Whanganui, desde sempre reconhecendo Te Awa Tupua em suas tradições, costumes e práticas”.
Este reconhecimento de um pluralismo jurídico e da necessidade de tradução intercultural entre várias concepções de direito e de ser vivo titular de direitos não é uma mera declaração vazia, como de algum modo acabou por acontecer com o art. 71 da Constituição do Equador. Pelo contrário, os acordos incluíram uma indenização ao povo Maori pelos danos causados ao rio no valor de 80 milhões de dólares neozelandeses e 1 milhão para estabelecer o quadro legal do rio. Poucos meses depois e com base nos mesmos argumentos, a Nova Zelândia concedeu personalidade jurídica e direitos humanos autônomos à montanha Taranaki. Nos termos da lei, “As oito tribos Maori locais serão os guardiães da montanha sagrada que eles consideram um antepassado e membro da família …O novo status jurídico da montanha implica que qualquer abuso ou dano causado à montanha é considerado um abuso ou dano à própria tribo”. Longe de ser uma idiossincrasia neozelandesa, também na Índia e noutros países estão surgindo lutas jurídicas para conceder estatuto de ser vivente e titular de direitos humanos a entidades não humanas, consideradas pela cultura ocidental como parte do mundo natural. Res extensa, na terminologia de Descartes.
Esta inovação de legalidade intercultural não poderia deixar de provocar a resistência de políticos conservadores e de juristas. Um dos políticos da oposição interpelou a Primeira Ministra com sarcástica ironia: não será absurdo atribuir personalidade jurídica e direitos humanos a algo que não tem cabeça, nem membros nem sexo? A resposta não se fez esperar: e uma empresa ou corporação tem cabeça, membros e sexo? Mas a resistência está longe de resultar apenas de concepções convencionais do direito e da natureza. Esta nova geração pós-humana de direitos humanos altera completamente os termos e os montantes de indemnização a pagar por danos causados ao bem-estar destes seres vivos agora titulares independentes de direitos. Por exemplo, a indenização a pagar por uma empresa que contamina um rio não se pode limitar ao valor do peixe que se deixou de poder pescar porque o rio morreu. Tem de envolver a restauração de todos os ecossistemas ligados ao rio e suas margens, e com isso a indemnização a pagar aumenta exponencialmente. Já em 1944, Karl Polanyi demonstrava no seu livro Grande transformação que se as empresas capitalistas que causam danos irreparáveis à natureza tivessem de indenizar adequadamente seriam inviáveis financeiramente.
As mulheres e os homens da Ilha da Maré podem analisar estes casos e decidir se, ante a omissão do Judiciário brasileiro, vale a pena organizar uma petição à Comissão Interamericana de Direitos Humanos no sentido de que seja conferido estatuto de pessoa jurídica titular de direitos humanos à Ilha da Maré no seu todo. Em face dos exemplos que referi, não poderão ser tidos como juridicamente lunáticos. Pelo contrário, atuarão com os pés bem na terra. Ou melhor, na lama.
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Da Ilha da Maré a outro mundo possível. Artigo de Boaventura de Sousa Santos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU