29 Março 2018
Continua a reflexão de Ghislain Lafont sobre o “sacrifício simbólico” (leia aqui as partes 1, 2 e 3). Neste quarto post, ele retoma a intuição de uma “eucaristia no Paraíso” e a interpreta como “chave hermenêutica” de toda a história da salvação, até a plenitude de Cristo e a missão da Igreja. Um texto belo, forte e tocante.
O artigo foi publicado no blog Come Se Non, do teólogo italiano Andrea Grillo, 19-03-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Por Ghislain Lafont
As minhas duas reflexões anteriores (aqui e aqui) tentaram evidenciar o lado essencial do sacrifício: ele é um agente de humanização, pois permite um ato de reconhecimento não só do Deus que é e que fala, mas também de si e dos outros. Ele estrutura uma sociedade de sujeitos, certamente desiguais, porque o Deus revelado é reconhecido e aceito por eles como Deus na medida em que o ser humano encontra a própria identidade e seu lugar na sua autenticidade e limitação.
Mas a desigualdade aqui não impede, mas sim permite a comunhão verdadeira entre três temas: Deus, o eu e os outros. Trata-se, portanto, de um sacrifício simbólico, que também pode ser chamado de sacramental.
Gostaria de tentar dizer aqui que toda a teologia sacramental poderia ser pensada à luz desse primado, colocando provisoriamente entre parênteses o aspecto da redenção do pecado; certamente, trata-se apenas de uma “epoché”, não de uma supressão: mas ela me parece necessária, se quisermos avançar.
O livro do Gênesis nos fala do “início”, da constituição primitiva da humanidade. Joguemos por um instante o jogo desse início e imaginemos sua sequência. O que teria acontecido naquele jardim em que o homem e a mulher teriam resistido à tentação e vivido pacificamente, após a renúncia da serpente?
Na realidade, após a superação da tentação, o homem e a mulher não são mais os mesmos: eram inocentes e como tais permanecem, mas não são mais ingênuos, nem sobre Deus que, como benfeitor, fez-se interlocutor, nem sobre si mesmos, porque sua nudez natural tornou-se nudez consciente. Embora não tenham o conhecimento do bem e do mal, compreendem, no entanto, que estão sob a palavra de Deus: é precisamente isso que agora os define. Eles estão à escuta: Deus, que havia falado das árvores, daquelas doadas com largueza e daquela que ele havia reservado para si, talvez dirá outras coisas? Como manifestará novamente o dom que ele quer fazer a eles, como solicitará novamente sua liberdade? E será preciso esperar uma nova intervenção da serpente? Em termos de sacrifício: o que a palavra de Deus fará objeto de dom e o que fará objeto de proibição? Como o sacrifício simbólico entrará em jogo ao longo do tempo? Como chegará à sua plenitude?
Assim, parece legítimo imaginar que o Éden, como lugar eucarístico, também conhece o tempo de uma história sagrada, que pode colocar a humanidade, pouco a pouco, na órbita de uma comunhão perfeita. Em última análise, Deus não deixaria de falar antes de ter dito tudo, e esse “tudo”, como sabemos, é seu Filho.
O início da Carta aos Hebreus poderia ter dito sobre as pessoas inocentes aquilo que diz sobre as pessoas pecadoras:
“Nos tempos antigos, muitas vezes e de muitos modos Deus falou aos antepassados por meio dos profetas. No período final em que estamos, falou a nós por meio do Filho. Deus o constituiu herdeiro de todas as coisas e, por meio dele, também criou os mundos. O Filho é a irradiação da sua glória e nele Deus se expressou tal como é em si mesmo. O Filho, por sua palavra poderosa, é aquele que mantém o universo” (Hb 1, 1-3; trad. Bíblia Pastoral).
Se é assim, o termo final da economia iniciada no Éden deveria ser um tríplice e perfeito reconhecimento: de Deus como Pai, de si como filho no Filho e dos outros como irmãos e irmãs, em uma comunhão que tende ao infinito. E o resultado dessa economia teria sido o mesmo que no início: um amor suficiente para escutar a palavra em um movimento de acolhida da novidade e de consentimento com a perda de algumas aquisições, até que Deus fosse tudo em todos e que todos fossem tais em si mesmos. Em segundo plano, o fiel descobre a configuração da dinâmica divina em que cada pessoa está voltada ao outro, a partir do outro e com o outro, em uma circularidade infinita.
O pecado aconteceu, como fonte de divisão, de isolamento, de morte, de ódio, de destruição e não cessa de se multiplicar, inscrevendo-se na terra e nas sociedades. Mas, como disse, gostaria de deixar esse aspecto provisoriamente fora da minha reflexão.
Com efeito, o que chama a atenção na leitura do Gênesis é a imediaticidade do perdão. O homem não morre imediatamente, não desaparece. Deus continua falando com ele, mesmo que sob a forma de um juramento. O homem e a mulher geram e, se o pecado continua, Deus reage renovando sua aliança. Se o episódio dramático de Caim e Abel manifesta o fracasso da fraternidade, chega um terceiro filho, Set, início de uma nova estirpe. Se esta se esgotar, tudo recomeçará após o dilúvio com Noé.
Uma pedagogia construtiva se desenvolve dentro de uma multiplicação do pecado. Este não é negado, sua obstinação é reconhecida, os remédios imaginários são denunciados, mas uma reeducação moral e litúrgica é elaborada mediante uma Lei adaptada à fraqueza dos seres humanos; a revelação continua, mediante a Profecia, que é um convite a um comportamento adequado ao ponto em que nos encontramos. Sempre é renovada uma proposta da Palavra, por isso o convite ao sacrifício simbólico é sempre atual e permanente: este é o único lugar possível de encontro e de reconciliação. Este convite talvez seja a chave hermenêutica fundamental de toda a Bíblia. Então, vem Jesus.
Jesus, que é inocente, é assimilado aos seres humanos em busca de reconciliação com Deus: é o sentido do batismo em que ele reconhece como todos os outros uma vocação divina. Ele é declarado Filho predileto e é investido da missão de salvação: estabelecer o Reino universal graças à conversão de Israel. Como Adão na sua plenitude original, ele é submetido à prova: escuta palavras que não vêm de Deus e que o desviariam do serviço que deve fazer, substituindo-o por um poder imaginário. Ele opõe a elas a palavra que veio de Deus. Assim, ele se manifesta em uma situação de sacrifício simbólico: ele escuta e continuará escutando, modelando sua conduta sob a inspiração do Espírito.
As pessoas o reconhecerão como um profeta, aquele que diz as palavras de Deus e que, em um primeiro tempo, mostra os sinais extraordinários da própria missão. Estes sinais não são um fim em si mesmos: se olharmos para Jesus apenas como um taumaturgo que faz milagres, não se obtém aí a mensagem do Reino do qual os milagres são apenas uma porta simbólica. De fato, eles são o sinal de que o Reino de Deus está próximo, que é preciso ouvir aquele que o anuncia e remodelar a espera adotando sua palavra profética, mesmo que nos convide a provas difíceis: ir além da letra do período anterior e reinterpretar a Lei e as tradições à luz daquilo que Jesus propõe. Viver a liturgia (o sábado e as tradições) à luz não só daquilo que era, mas também daquilo que deve vir e que Jesus revela.
Ao redor de Jesus, podem ser identificados quatro grupos: as multidões, ávidas por uma salvação imediata para cada um e para todo o povo; os discípulos chamados, que se revelam de boa vontade, mas de fraca inteligência sobre a pessoa de Jesus; os fariseus, talvez os mais próximos de Jesus em nível de conhecimento e de interpretação da Lei, no entanto, pouco dispostos a se deixarem convencer e que a hostilidade dos outros leva ao ódio; por fim, algum indivíduo tomado em geral entre os pobres, capazes de compreendê-lo: o paralítico, o cego de nascença, outro cego (o mesmo?) Bartimeu, a idosa no templo, o centurião aos pés da cruz, Maria, mãe de Jesus.
Jesus acaba morrendo, nas mãos daqueles que deveriam acolhê-lo, mas que permaneceram em seu imaginário religioso. Até o fim, ele permanece à escuta e, quando Deus permanece em silêncio, ele não abandona a invocação do Pai. A Cruz, assim, é a ação simbólica por excelência. A Ressurreição, sem dúvida, é a resposta do Pai: o “Tu és meu Filho”, pronunciado no início, chega aqui à sua plenitude.
A Igreja poderia ser descrita como a comunidade que recebeu o testemunho apostólico da morte e ressurreição de Jesus como ato fundador da última etapa da história da salvação, aquela que leva a humanidade ao Reino de Deus.
Seguindo o exemplo de São Paulo, no capítulo 12 da Carta aos Romanos, ela poderia ser definida como “sacrifício espiritual”, em uma espécie de atmosfera de humildade, de caridade recíproca, de gestão comedida do saber: é isso que a torna agradável a Deus.
Esse texto, por outro lado, é frequentemente citado pelo Concílio Vaticano II. A Igreja nunca cessa de meditar sobre esse Mistério de Jesus no qual se identifica com sua vida cotidiana: aprofunda-o, defronta-o com os conhecimentos, com as exigências, com as derrotas do mundo presente, a fim de tornar sua missão mais verdadeira.
A constituição Gaudium et spes dava, por assim dizer, um retrato desse sacrifício espiritual no mundo contemporâneo, ou seja, na segunda metade do século XX. Em certo sentido, a Laudato si’ é uma releitura parcial e atualizada dela no primeiro quarto do século XXI: nela, descreve-se uma situação da qual se propõe uma análise, tenta-se um discernimento e define-se uma ação.
Tal compreensão do Mistério nunca acabou, porque o tempo sempre traz sua contribuição. Como diz o número 8 da constituição Dei Verbum sobre a Revelação, a contemplação, o estudo, o senso cristão, o impulso dos bispos fazem progredir essa compreensão, especialmente porque o Espírito Santo orienta na Igreja e para o mundo a “voz viva do Evangelho”.
O texto ao qual me refiro descreve bem esse jogo da memória que a Igreja faz: ao mesmo tempo ancorada ao passado do Cristo e aberta ao seu futuro e a tudo o que pode revelar seu sentido.
A partir daí, vemos melhor em que consiste o sacrifício espiritual da Igreja. Trata-se, acima de tudo, de “escutar” a mensagem de salvação que ressoa continuamente nela, adquirindo uma familiaridade com a Palavra, de acordo com o versículo do Salmo 119 (118), tão caro ao cardeal Martini: “Tua palavra é lâmpada para os meus pés e luz para o meu caminho”. Ela revela sem cessar o Cristo à Igreja.
Este é, sem dúvida, o lugar da oração comum e pessoal. Essa escuta implica também a vigilância de um espírito profético, pois, enquanto o fim não chega, há espaço para o aprofundamento criativo de que fala o texto citado pela Dei Verbum 8: a escuta requer um discernimento espiritual.
Em segundo lugar, esse sacrifício consiste em viver de acordo com a norma evangélica da caridade, como viu bem o fariseu honesto que recolhia a última palavra profética de Jesus (Mc 12, 28-34). No seu famoso texto sobre o sacrifício (De civitate Dei, X, 1-7), Santo Agostinho compreendeu e expressou bem tudo isso. E correlacionou esse sacrifício espiritual com o sacrifício litúrgico da Igreja.
O que é, então, a Eucaristia nessa perspectiva? Ela poderia ser descrita assim: na oração dirigida a Deus, ela é celebração memorial da caridade crucificada do Cristo; da sua continuação no mundo presente através da escuta e da vida; da comunhão misteriosa que vai daquilo que Cristo sofreu àquilo que seus membros sofrem hoje; da antecipação simbólica do momento em que tudo estará cumprido.
É absolutamente necessário conservar, em uma teologia eucarística, sem dúvida, a reciprocidade constante entre a comunidade evangélica, que se empenha no sacrifício espiritual, e a comunidade litúrgica, que faz memória do Cristo. Uma não existe sem a outra, em uma relação de reciprocidade, e aquilo que constitui o vínculo, em todo o caso, é a realidade do sacrifício simbólico, rejeitado por Adão e tornado perfeito por Jesus.
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Nova teologia eucarística: o primado do sacrifício eucarístico. Artigo de Ghislain Lafont (parte 4) - Instituto Humanitas Unisinos - IHU